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terça-feira, novembro 23, 2010

Frei Betto e S. Teresa

Neste mundo decaído, as idéias nunca são encontradas em forma pura, mas sempre misturadas ao seu contrário. Não há mal sem alguma mistura de bem, ou bem sem alguma mistura de mal. O que poderia ilustrar melhor esse princípio do que a recente edição do Livro da Vida de S. Teresa D’Ávila pela Penguin/Companhia, com prefácio de Frei Betto? Eu estranharia menos ver um prefácio de Richard Dawkins. A junção de duas figuras na minha mente tão díspares praticamente me obrigou a comprar o livro.

Frei Betto tem, descubro agora, uma longa história com S. Teresa; já disse querer se casar com ela; depois propôs a celebração de um novo homem que seria o rebento das núpcias dela com Che Guevara. Enfim, o presente prefácio, intitulado “A Sedução de Teresa”, tem história.

Curiosamente, ele também é uma mistura de bem e mal, o que mostra que a realidade é mais complexa que meu preconceito. Nunca poderia imaginar um teólogo da libertação, petista fanático, dizendo algo como “Em suma, Teresa me ensinou que Deus não se exilou no Céu; ao contrário, habita o coração humano.” Não existe nenhuma descoberta que nos afaste mais da tentação do socialismo do que essa; pois se o homem tem uma finalidade transcendente ao seu alcance seja quais forem suas condições externas, então a luta pelo socialismo fica, no mínimo, relativizada.

Há outras boas citações no curto prefácio, mas nada muito fora do comum. É quando ele se mete a falar de história e a interpretá-la que sua visão de mundo definitivamente imanente (ou seja, disposta a direcionar mesmo o transcendente para fins terrenos) se faz sentir. Para ele, S. Teresa foi uma “feminista avant-la-lettre” que abriu espaço para mulheres numa igreja até então medieval e machista. Por pouco não foi condenada pela Inquisição, enquanto outras visionárias menos sortudas como Madalena da Cruz foram. O que ele não conta é que essa tal Madalena, que era considerada santa e milagreira por muitos em sua época (gente de pouca monta, como a imperatriz Isabel, esposa de Carlos V), ao sofrer uma doença que parecia que lhe tiraria a vida, confessou voluntariamente que seus êxtases e milagres eram fruto de um pacto que fizera com o demônio. Resultado: a Inquisição à condenou à... você ia dizer fogueira? É o que Frei Betto leva a entender, tendo citado a fogueira poucas linhas antes; mas o fato é que a Irmã Madalena foi condenada, três anos depois dessa confissão, à reclusão em um convento, onde morreu em paz anos mais tarde.

No todo, a situação da mulher na Idade Média tinha suas injustiças: só podiam se tornar proprietárias se o marido morresse, por exemplo; e o machismo cultural sem dúvida existia. Lamentavelmente, como as universidades eram só para clérigos, mulheres não cursavam (havia exceções, contudo). Além disso, as guildas (ancestrais de nossos sindicatos, o que dá uma idéia de sua atividade) também costumavam proibir a entrada de mulheres. Ao mesmo tempo, tinham uma liberdade talvez até maior do que teriam na Idade Moderna. Havia mulheres empreendedoras, havia mulheres com autoridade sobre homens (mesmo em instituições eclesiásticas), autoras mulheres (por exemplo Christine de Pizan, que é provavelmente a primeira feminista do Ocidente - escreveu o clássico “A Cidade das Mulheres” como forma de protesto contra as tiradas machistas de Jean de Meun, um dos autores mais populares da época), místicas mulheres. S. Catarina de Siena dava broncas abertas no papa. A freira Hildegard de Bingen foi das mais importantes compositoras musicais do século XII; além disso escreveu visões místicas e tratados de medicina. A vida era mais simples e, digamos, mais “brutal” na Idade Média; para o bem e para o mal. A violência era maior, mas também o eram a doçura espontânea e a liberdade. A mulher era menos delicada e isolada da vida corrente; vide a esposa de Bath nas Canterbury Tales. Existiam normas mas os casos anômalos também não eram raros; os grandes Estados nacionais, que futuramente imporiam uniformidade em tudo (desde línguas até moedas passando pelos costumes) ainda estavam se consolidando. As próprias caçadas às bruxas, que vitimaram muitas mulheres, são fruto da Idade Moderna. O consenso medieval entre as pessoas educadas era de que bruxaria simplesmente não existia; crer em bruxaria era superstição.

S. Teresa teria, além do feminismo, inaugurado um novo jeito de se relacionar com Deus: finda a frieza da escolástica, com suas categorias “pagãs” (agora Frei Betto considera isso algo ruim?), se iniciaria uma relação íntima com Deus. Ele por acaso ignora a integral continuidade de S. Teresa e os místicos medievais? Ricardo de S. Vítor, Boaventura, Walter Hilton, João de Ruysbroeck, Richard Rolle, Henrique Suso, enfim, uma bela lista que inclui também mulheres como Juliana de Norwich (que chamava a Deus de mãe), S. Brígida da Suécia, S. Catarina de Siena, Catarina de Gênova; tudo isso só de medievais, para não entrarmos na era dos Padres da Igreja. S. Teresa desenvolveu e sistematizou a realidade mística que já era vivida e conhecida. A Idade Média não “fechou” a religião na teologia especulativa; ela criou a teologia, é verdade: ousou usar a razão para investigar e conhecer mais a fundo os conteúdos da fé; mas isso de forma alguma limitava ou impedia a mística. Pelo contrário: na Idade Média, ao contrário do que aconteceria na modernidade, a mística ainda era vista como algo próximo do ser humano. Tanto que temos inclusive leigos com experiências místicas (Margery Kempe, autora da primeira autobiografia em inglês, é um bom exemplo). Com a modernidade, cada vez mais a mística foi vista como uma exceção distante da experiência comum, acessível a uns poucos escolhidos por Deus e perigosa para todo o resto; preconceito que apenas no século XX começou a ser verdadeiramente superado (com obras como, por exemplo, “Perfeição Cristã e Contemplação” do Pe. Garrigou-Lagrange).

Teologia e mística são coisas bem diferentes, de fato, mas uma não exclui a outra (S. Boaventura é um exemplo de quem escreveu sobre ambas). Mesmo um escolástico cuja obra é principalmente especulativa, como S. Tomás de Aquino, era alguém com bastante vivência mística, de tal maneira que chegou a afirmar que, perto do que essa via lhe tinha revelado, sua obra teológica e filosófica, um dos maiores patrimônios intelectuais do Ocidente, era “como palha”. E mais, místicas posteriores a ele como S. Catarina de Siena, usavam a teologia S. Tomás em suas obras místicas, evidência do rico intercâmbio entre essas duas áreas tão distintas. A própria S. Teresa partia de uma base teológica muito influenciada por S. Tomás. O exagero da escolástica, que desaguou num academicismo árido, foi sem dúvida um equívoco da Idade Média tardia, mas não era de forma alguma o que se propunha como ideal pela Igreja. Muito pelo contrário: eram comuns as advertências quanto aos perigos da curiosidade acadêmica esvaziada de sentido espiritual; em termos mais modernos, a cultura e a erudição por si só não salvam e muito menos santificam.

A obra de S. Teresa é intensamente pessoal, como bem aponta Frei Betto. Nela há uma preocupação em retratar a experiência pessoal e as particularidades de seu caso. A ausência dessa pessoalidade torna muito do que autores mais antigos escreviam um pouco frustrante para quem, nos dias de hoje, procura neles uma alma com quem se identificar (claro que também não é algo totalmente ausente da mentalidade antiga e medieval; é só pensar num Agostinho, num Abelardo ou ainda em autores seculares como Geraldo de Gales, que imbuem suas narrativas históricas e observações sociais com diversas observações pessoais). Mas isso não a torna moderna e antropocêntrica, em oposição a uma Idade Média teocêntrica.

A preocupação máxima, o valor maior de S. Teresa, é Deus; a grande marca para ela de que o indivíduo se aproxima da perfeição é parar de pensar em si mesmo - parar de querer que os outros falem bem dele - o que é óbvio - mas também deixar de querer que os outros não falem bem dele; enfim, esquecer-se de si mesmo e focar-se em Deus que é de onde vem todo o bem. A mística de S. Teresa, nesse sentido, finca o pé no terreno propriamente cristão, voltado para o Criador mas sem perder a identidade da criatura. O grande perigo da mística (na visão cristã) é que ela pode se dirigir, se não embasada numa formação teológica e doutrinal (novamente, o intercâmbio entre especulação e vivência), à dissolução da pessoa no Todo, o que acaba na constatação de que a existência (e portanto a multiplicidade e a individualidade) é má ou ilusória, que o Criador pessoal é mau e que portanto a verdadeira salvação é unir-se ao Deus escondido e impessoal anterior à divisão ser e não-ser; o homem é como uma gota que se mistura ao oceano e portanto deixa de ser gota. Místicos importantes como Mestre Eckhart foram condenados por causa disso (se a condenação foi justa ou se ele apenas usou a linguagem de forma mais livre para se referir ao inefável não é algo sobre o qual eu esteja minimamente capacitado para opinar). Para o Cristianismo, a pessoa (seja divina ou humana) tem um estatuto de realidade primária diferente das outras grandes tradições espirituais, nas quais ela é mais uma casca de uma realidade una e impessoal que a tudo engole. S. Teresa é, assim como a tradição em que ela se encaixa, teocêntrica; mas isso não quer dizer que ela negue ou anule o homem de sua perspectiva.

Frei Betto, enfim, parece subordinar a sabedoria de S. Teresa a lutas históricas (pelo feminismo, pelo “antropocentrismo”, contra uma igreja hierárquica e uma teologia abstrata) que ela supostamente ilustra. Depois dela, Deus deixaria de ser “um conceito” e viraria “uma experiência”. Só que tanto para os teólogos medievais quanto para a mística moderna ele não era (e não é) nem um nem outro.

sábado, outubro 02, 2010

Astrologia

O argumento mais forte pare se dar crédito à astrologia, na minha opinião, é sua universalidade histórica e cultural. Todas as culturas (ou quase todas), em todas as épocas, viram alguma relação entre a os astros e a vida humana. O que tornaria esse argumento ainda mais forte é mostrar que as diferentes tradições, as diferente astrologias (babilônica, chinesa, ptolomaica, asteca), concordam entre si, ou ao menos se complementam. Fora esse fato, que levou, aqui no Ocidente, ao desenvolvimento de todo um sofisticado sistema de análise, sobra a evidência pessoal de quem já teve consultas reveladoras com astrólogos (seja para descrição do caráter, seja para previsão de tendências futuras na vida da pessoa). Mas esse tipo de evidência funciona só para quem teve a experiência. Para quem ouve o relato, ficam muitas incertezas (o quanto foi revelação real e o quanto sugestão?); quanto mais longe se é da pessoa, menor é a força da experiência pessoal dela.

Experiências pessoais existem para absolutamente todos os tipos de crença: astrologia, leitura de mãos (um homem que conheço foi a um astrólogo, e muito tempo depois a uma leitora de mãos, e recebeu a mesma descrição de seu caráter, em termos nada banais, de ambos), espiritismo, pentecostalismo, candomblé, catolicismo, simpatias mil, etc. No fim das contas, nenhum deles pode ter poder decisivo para um ouvinte. Em primeiro porque nunca se tem certeza que, de fato, algo extraordinário aconteceu. Em segundo porque, mesmo que se aceite o evento extraordinário, não se sabe se a interpretação dada por quem a vivenciou é correta (isso vale tanto para o ouvinte quanto para o sujeito). Será que a força benevolente que o fez se sentir em casa no terreiro de umbanda não era um demônio querendo arrastar sua alma para o inferno?

Claro que a astrologia tenta se dissociar de experiências “espirituais” desse tipo e se apresentar como uma ciência, na qual a experiência em questão não é um sentimento ou contato sobrenatural mas a constatação de que o astrólogo, lendo o mapa astral, sabe coisas sobre o cliente que não teria como saber, ou que fez previsões acertadas. Mesmo assim, a experiência humana comum é falível o bastante para nos deixar céticos. Peguem o exemplo da sangria: essa prática medicinal foi usada por milênios e em várias culturas. E vejam só: não só ela não curava doença nenhuma, como danificava a saúde do paciente, aumentando o risco de morte e dificultando a recuperação. E mesmo assim os melhores médicos, geração após geração, não percebiam. Pô, Aristóteles achava que os corpos caíam com velocidade diretamente proporcional ao peso, e muitos seguiram a linha dele; tem coisa mais obviamente falsa que essa crença? Para quem já sabe é óbvio; mas para a experiência casual humana pode parecer plausível. Isso é o bastante para, no mínimo, criar um bom ceticismo com relação a teorias cujo mecanismo proposto não podemos observar diretamente. Precisamos de uma experiência mais rigorosa do que a corriqueira.

O que a astrologia afirma é uma correlação constante entre a disposição dos astros no momento do nascimento e o caráter da pessoa. Isso é uma baita afirmação. Vejam: todo mundo aceita que os astros tenham influência sobre a vida na Terra. O sol bate, as plantas crescem, os homens sentem calor; uma estrela brilha, o amante sente-se inspirado a escrever um poema. Os fótons enviados pelos astros celestes a Terra podem ter efeito - direto ou indireto - inclusive sobre o bebê que acaba de nascer (e também sobre homens em todas as fases da vida); nada disso é muito polêmico. O polêmico é afirmar que esse efeito é previsível, ou seja, que a correlação entre os dois eventos (caráter da pessoa e disposição dos astros) é constante. É como afirmar que um pequeno objeto jogado de uma certa altura, ao bater no chão, irá sempre para o mesmo lado, o que sabemos não ser o caso; o número de micro-variáveis é tanto que algo genérico e maior como a temperatura do dia não influencia o processo de nenhuma forma previsível.

A posição dos astrólogos de que não se trata necessariamente de uma causalidade astro-pessoa, mas apenas de uma correlação cuja causalidade é desconhecida, é perfeitamente defensável. Mas a própria correlação precisa de mais evidências. Um bom exemplo seria procurar correlação entre os signos e comportamentos observáveis. Certo signo tende a ser mais audacioso? Então que tal medir sua correlação com acidentes de carro, ou com abertura de novas empresas? Outro tende a ser mais preocupado? Que tal medir sua correlação com problemas cardíacos? São só exemplos. O caráter (quero dizer, todas as características de sua personalidade) do indivíduo tem relação com seu comportamento. Sendo assim, dado que os astros têm relação com o caráter, então eles têm relação com o comportamento, que é algo mensurável. Nunca vi estudo que mostrasse relação clara de signo com comportamento algum. Também admito que nunca procurei muito, embora eu imagine que, se a evidência fosse forte, ela seria mais comentada publicamente. Por isso, não acredito em astrologia.

Isso tudo diz respeito à astrologia enquanto disciplina científica; mas não quer dizer que é imoral praticá-la. E de fato, se ela se restringir a esse plano puramente científico, não há porque condená-la moralmente (a não ser do modo trivial: é errado se dedicar ao estudo do falso - mas é óbvio que quem estuda não acha que é falso...). O problema moral só pode existir se a astrologia se coloca como algo além de uma mera ciência; como algo mais diretamente ligado ao plano sobrenatural. A simbologia astrológica se presta a esse tipo de leitura, assim como a ligação do astrólogo a disciplinas esotéricas, e a constante ligação histórica dela a cultos religiosos também. Aí ela se torna outra coisa: uma tentativa de violar a ordem espiritual, buscando a comunicação com espíritos para aprender verdades sobre a vida na Terra; a tentativa do homem de submeter o mundo espiritual ao seu poder, e que lança o homem num abismo de ilusões no qual ele está cada vez mais sob o poder de algo que não é nada bom. E isso sim, é digno da condenação moral dada por muitas religiões, inclusive o Cristianismo.

domingo, setembro 05, 2010

Desmontando Eutífron

Muita gente conhece o chamado “dilema de Eutífron”, que nos força a escolher entre uma de duas opções: ou a lei moral é criação de Deus e pode ser mudada por qualquer capricho seu; ou então Deus não pode mudá-la, e nesse caso ela é superior a Deus.

Nenhuma das duas possibilidades é muito satisfatória. A segunda nos obriga a aceitar um Deus que não é onipotente, que conhece algo superior a si. E a primeira nos obriga a dizer que a moral é o produto arbitrário de uma vontade toda-poderosa. Se amanhã Deus decidir que beber água é imoral e estuprar é meritório, então assim será.

Um dos grandes méritos da tese da lei natural é dar uma solução plenamente satisfatória ao dilema. Segundo ela, a moralidade — o certo e o errado — decorre da natureza do ser humano (não vou aqui entrar no mérito de como isso se dá — meu ponto não é defender a lei natural, só mostrar como ela desmonta o dilema). Sendo assim, da natureza humana como ela é, conclui-se que estuprar é destrutivo ao bem humano e beber água contribui com ele. Portanto o primeiro é mau e o segundo bom.

Deus pode mudar isso com um ato de vontade? Não. Enquanto o homem continuar como ele é, a moral continua a mesma. Mas quem criou o homem? Deus. E Deus pode certamente mudar a natureza humana, ou até extinguir a espécie, caso no qual a moral também acabaria.

Mudar a ética sem mudar o homem carrega consigo uma contradição, algo que Deus não pode fazer (não por alguma limitação de seu poder, mas porque a contradição, embora aparentemente, verbalmente, pareça ser algo, na verdade não é nada. “Solteiro casado” parece se referir a alguma coisa, mas na verdade é uma expressão sem significado).

Assim, Deus criou a ética ao criar a espécie humana. A lei natural foi instituída no Jardim do Éden, e não no Monte Sinai, onde ela foi apenas revelada (como ajuda para o intelecto fraco do homem caído).

sexta-feira, agosto 27, 2010

O Fogo Divino, os Santos e os Pecadores

"Partiram de Sucot e acamparam em Etam, na periferia do deserto. O Senhor os precedia, de dia, numa coluna de nuvens, para lhes mostrar o caminho; de noite, numa coluna de fogo para iluminar, a fim de que pudessem andar de dia e de noite.” Êxodo 13, 20-21

"A coluna de nuvens que estava na frente postou-se atrás, metendo-se entre as tropas dos egípcios e as de Israel. Para uns a nuvem era tenebrosa, para outros iluminava a noite, de modo que durante a noite inteira uns não podiam ver os outros.” Êxodo 14, 19-20

Já defendi em outro lugar - e é uma tese em nada estranha à autêntica tradição cristã - que a punição do inferno está intrinsecamente ligada ao estado da alma ao qual ele corresponde: amar uma criatura mais do que ao Criador. Preferir um bem finito e relativo ao Bem absoluto, que é a única fonte possível da felicidade humana, é condenar-se à miséria eterna. A dor sensível é decorrência do mau moral.

Hoje quero explorar um ponto ligado a essa idéia: a dor dos condenados e o deleite dos santos provêm do mesmo objeto. Toda a diferença entre a alma em estado de beatitude e a alma condenada reside na disposição delas perante Deus. Quero ilustrar isso com a imagem do fogo, muito cara à tradição católica, que é composta basicamente da Bíblia, dos ensinamentos magisteriais e dos escritos de santos e místicos.

A primeira imagem que nos vêm à cabeça quando falamos de fogo num contexto cristão é o Inferno. A dor dos condenados sendo consumidos por seus próprios crimes, remorsos e desejos maus é comumente representada pelo fogo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O próprio Cristo, por exemplo, explica a parábola do joio e do trigo: “O joio são os filhos do maligno. [...] Como se junta o joio para ser queimado ao fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os anjos e eles recolherão do Reino todos os escândalos e todos os promotores da iniquidade, e os jogarão na fornalha de fogo, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13, 38.40-42). O remorso e o desespero de se saberem claramente maus consome a alma dos condenados; os desejos desordenados de sua vida agora queimam com intensidade máxima; com a morte, a alma dirige-se, determinada e sem titubeios, àquilo que amava em vida. O fogo é uma imagem particularmente forte: é aquilo que a tudo consome e destrói, implacável e doloroso.

Mas essa imagem aparece também em outro contexto: para falar de Deus. A mesma passagem acima continua: “É então que os justos brilharão como o sol no reino do Pai.” João Batista batizava com água, mas anunciava alguém que viria batizar “no Espírito Santo e no fogo”. O Espírito Santo, quando desce aos apóstolos (pouco depois da ascensão de Jesus ao céu), aparece como “línguas de fogo”; e não podemos nos esquecer da sarça em chamas que fala a Moisés e várias outras imagens do Antigo Testamento.

Cristo diz que veio “pôr fogo à terra”. Pensamos em primeiro lugar na justiça terrível a ser feita contra os maus e impenitentes. Mas esse mesmo fogo efetua a salvação dos justos. Explica S. Paulo: “Se sobre este fundamento [Jesus Cristo] alguém edifica ouro, prata, pedras preciosas ou madeira, feno, palha, a sua obra ficará manifesta, pois em seu dia o fogo o revelará, e provará qual foi a obra de cada um. Se a obra constituída sobre o fundamento resistir, o autor receberá o prêmio, e aquele cuja obra for consumida sofrerá o dano; ele, todavia, se salvará, mas como quem passa pelo fogo.” (1Coríntios 3, 12-15). Aqui a oposição não é entre os justos e os condenados, mas entre os justos que se santificam ainda em vida e aqueles que, embora estejam no caminho bom, embora ergam suas obras no fundamento de Jesus Cristo, ainda deixam muito a desejar. É o fogo o teste que revela a obra de ambos. E aqueles cuja obra não resistir ainda terão que passar “pelo fogo” mais uma vez, isto é, pela purificação além-morte, pelo mesmo fogo dos condenados, mas numa duração finita. Em suma, o estado que se convencionou chamar de Purgatório. O fogo consome, mas também purifica e endurece. A argila temperada no fogo (imagem minha), resiste àquilo que quebraria a argila mais frágil.

O fogo também é usado para representar o amor, como no “fogo que arde sem se ver” de Camões. S. Tomás de Aquino usa a mesma imagem para o efeito do fogo: aquecer. Assim como o mesmo fogo age com maior força no que está perto do que no está distante, assim também a caridade ama com maior fervor aqueles que estão unidos a nós do que aqueles mais distantes; e sob esse aspecto o amor pelos amigos, considerado em si mesmo, é mais ardente e melhor do que amor pelos inimigos.” (ST, II-II, q. 27, a. 7). “Deus é amor”, diz S. João. E o que é o fogo do amor-caridade senão o próprio Deus enquanto vive e age na alma humana? Com efeito, o coração de Cristo é sempre representado, na arte sacra, como um coração em chamas.

Nessa mesma linha, o misticismo ocidental usa a imagem do fogo para descrever a ação do Espírito Santo. João de Ruysbroeck (não sei se é o primeiro a usar a imagem a seguir; mas é o primeiro que me lembro diretamente), monge flamengo do século XIII, bota nestes termos: “Se um homem quiser penetrar mais fundo, com seu amor ativo, nesse amor de fruição: então todas as potências de sua alma devem ceder, e devem sofrer e pacientemente suportar a Verdade e o Bem penetrantes que são o próprio Deus. Assim como [...] o ferro é penetrado pelo fogo; de modo que ele faz, pelo fogo, as obras do fogo, pois ele queima e brilha como o fogo. [...] E no entanto cada um permanece com sua própria natureza. Pois o fogo não se transforma em ferro, e o ferro não se transforma em fogo, embora sua união seja não-mediada; pois o ferro está dentro do fogo e o fogo está dentro do ferro...”. Essa imagem é muito rica, e mais tarde rendeu um novo elemento: é pela ação do fogo que o ferro se torna moldável, ou seja, dócil à ação do Espírito na alma que produz a transformação espiritual e moral do indivíduo no próprio Deus (theosis). Como o metal que participa do fogo, a criatura participa do Criador, ainda que ambos preservem suas naturezas. O Céu, lembrou Bento XVI esses dias, é viver no amor de Deus.

E o Inferno é rejeitar esse amor. Voltemos à Bíblia: na parábola do semeador que joga suas sementes pelo caminho, é o mesmo sol que faz as plantas nascerem e crescerem e que faz com que aquelas que crescem em solo pedregoso sequem e morram. Quero, com tudo isso, apenas apontar um fato: depois dessa vida, nos encontramos com Deus. E o estado da nossa alma consiste na nossa reação a esse encontro. Para uns é o fogo do amor unitivo, para outros o da purificação esperançosa e para ainda outros o fogo da destruição. Santos e condenados se encontram na presença de Deus. A distância que os separa é a distância espiritual entre amar o Bem ou detestá-lo. Para os egípcios a coluna de nuvens/fogo cegava e aterrorizava; para os judeus, guiava e protegia. É como escreveu C. S. Lewis: “No final há apenas dois tipos de pessoa: as que dizem para Deus ‘seja feita a Vossa vontade’, e aquelas a quem Deus diz, no fim: ‘seja feita a vossa vontade’”.

segunda-feira, julho 12, 2010

Quem Causa a Causa Primeira?

A pergunta sempre aparece nas conversas do dia-a-dia. Alguém dá o argumento da causa primeira para provar que Deus existe e o outro retruca: “E quem causou Deus?”. Minha conclusão: o argumento foi ou mal entendido, ou mal apresentado.

Tudo o que existe precisa de uma causa. Portanto, para não se regredir ao infinito, é preciso uma causa primeira. Essa causa primeira é Deus. Convencidos? Eu não estou. Se tem uma coisa que esse argumento não prova é a existência de Deus. O ateu sagaz já percebeu: “Bom, se tudo precisa de uma causa, então Deus também precisa. E se nem tudo precisa de uma causa, por que o universo precisaria?” Vamos esclarecer melhor o ponto, pois nele escorregam muitos apologetas. Bem sei que nenhum ateu sairá da discussão convencido e rumo à igreja; mas o fortalecimento da base racional da fé tem sua importância nesse processo.

Ao argumento. A princípio, não se afirma que tudo precisa de uma causa; isso não é uma premissa. Analisando os seres do universo, como homens, cavalos e prótons, veremos que eles precisam de uma causa. O que os caracteriza? É o fato de que sua essência é diferente de sua existência. Termos estranhos, que precisam ser explicados e justificados para que saiam do campo dos contos de fada e entrem na filosofia. Dizer que a essência de um cavalo difere de sua existência significa dizer que mesmo que se conheça perfeitamente o que o cavalo é (digamos, a descrição perfeita de seu DNA com todas as possíveis variações), nem por isso saber-se-á se existe ou não algum cavalo no mundo. Pode ser que todos tenham morrido; pode ser que nunca tenha havido cavalo nenhum. Como descobrir se os cavalos existem? Não é pela mera análise de suas características. Temos que sair pelo mundo à procura deles. Sua existência (o fato deles existirem) não é dedutível de sua essência (o que eles são, a descrição de suas qualidades). Assim como penso em cavalo, posso pensar em unicórnio. Um existe e o outro não. Mas não há nada nas idéias de um e de outro que me diga isso.

Todos os seres do universo são que nem o cavalo e o unicórnio. Suas existências não estão dadas por suas essências. Chamamos a esses seres de contingentes: podem existir ou não existir. Logo, o universo, que é o conjunto, a complexa malha causal que une todos os seres, também é contingente. Ele poderia ser diferente do que é, e mais, poderia simplesmente nunca ter existido.

Todo ser contingente precisa de outros seres que o gerem e preservem. O cavalinho precisa da égua e do garanhão para nascer, e do feno para comer. O universo também. Se ele poderia tanto existir como não existir, é preciso um fator externo a ele que faça com que ele exista. Ou esse ser que causa o universo também é tal que sua existência seja distinta de sua essência, o que não resolve nosso problema (pois ele também precisa de uma causa), e podemos simplesmente classificá-lo como parte do universo; ou esse ser é de tipo diferente: ele é tal que sua existência está contida em sua essência. Se o conhecêssemos perfeitamente, concluiríamos sem sombra de dúvida, dedutivamente, que ele existe. Não é um mero ser contingente, e sim um ser necessário; um ser tal que seria impossível que ele não exista, pois isso contrariaria sua própria essência.

Não conhecemos diretamente o ser necessário para concluir sua existência a partir de sua essência. Mas dado que existem seres contingentes, o necessário tem que estar na origem do processo, se não ele nunca teria um motivo para começar (pois o motivo precisaria de um motivo e assim por diante). Este é o núcleo do argumento, e é o que deve ser discutido; notem que Deus nem deu as caras.

O último passo, que é o que gera objeções imerecidas, é dizer: “este ser é Deus”. Estamos só dando um nome ao ser necessário. Poderia ser “Javé”, “Alá”, “Rama”, “Google”. O problema verdadeiro reside no passo anterior, que é dizer que sem o ser necessário não poderia haver seres contingentes, afirmação com a qual concordo. Negá-la seria dizer que do nada absoluto pode aparecer um universo, o que basicamente obriga-nos a aceitar que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, e que nosso raciocínio, com base nas idéias de causa e efeito, e os princípios básicos da lógica que guia nossos pensamentos, não têm relação nenhuma com a realidade. E nesse caso, não só a prova do ser necessário seria falha, como mesmo toda a ciência e todos os nossos pensamentos seriam incapazes de nos comunicar qualquer coisa de verdadeiro.

Chamar o ser de "Deus" só aponta para o fato de que esse necessário concorda em gênero, número e grau com o que os teístas dizem a respeito do Deus no qual acreditam: ele é a causa de tudo, nada existe independentemente dele e é impossível que ele deixe de existir. O filósofo e o crente estão falando da mesma coisa; esse reconhecimento é, em geral, ponto pacífico; a questão é saber se o argumento que o filósofo está fazendo procede.

terça-feira, agosto 04, 2009

O Inferno é uma Raspadinha de Limão

O inferno é um assunto muito delicado hoje em dia. Inclusive, acho que é dos temas que mais geram resistência contra o Catolicismo. Esse é um ponto da sensibilidade humana que mudou muito. Séculos atrás, o inferno era a coisa mais natural do mundo; é, os maus são punidos eternamente mesmo e é isso, nada para se fazer drama, então trate de ser bom para não terminar lá. Hoje, mesmo quem acredita no inferno só o faz às custas de muito choro e ranger de dentes. “Mas como, todas aquelas pessoas, não é possível, são apenas seres humanos falíveis, não posso aceitar, é horrível demais!”

Embora tenha sua dose de sentimentalismo (o mundo moderno é muito sentimental!), acho que a sensibilidade contemporânea tem o seu ponto. Ser torturado eternidade adentro parece algo abusivo. Hesitaríamos em condenar mesmo os piores homens da história - Stalin, Mussolini, HITLER!!! - a uma pena desse tipo; o que dizer de homens comuns que, se bem que não foram nenhum modelo de virtude, também não cometeram grandes pecados? Quem seria capaz de condenar o sujeito “gente boa” da aula de inglês a torturas piores do que as piores que somos capazes de imaginar, não por um dia ou um bilhão de milênios, mas para todo o sempre?

A justificativa tradicional de que o pecado é uma ofensa a Deus, que tem dignidade infinita, e que portanto merece punição infinita não cola hoje em dia. Acho que o que falta, muitas vezes, é ressaltar o caráter voluntário e auto-infligido do inferno. O melhor jeito de se entender um conceito novo é com uma imagem ilustrativa. No meu caso, foi um sonho. Não; um pesadelo.

Consistia de dois elementos. O primeiro era eu. Na vida desperta tenho, a todo instante, inúmeros desejos e sensações. No sonho, tinha apenas um: sede. Uma sede muito forte, próxima da obsessão. Havia um calor no meu peito (na parte superior, logo abaixo da garganta), uma chama insuportável, um fogo dominador que precisava ser apagado, custe o que custar, por algo líquido e gelado. Meu ser se resumia a esse desejo. Esse é o primeiro elemento.

O segundo era um fluxo horizontal infinito de raspadinha de limão voadora. Imaginem um cano largo (diâmetro de uma cabeça humana, mais ou menos), suspenso na altura dos nossos ombros, com água passando. Agora tirem o cano e imaginem que a água continua a passar no mesmo formato cilíndrico. Era isso, só que ao invés de água era raspadinha de limão estupidamente gelada. Mas não dessas de praia, cujos cristais de gelo são grandes e bem distintos um do outro; pense numa raspadinha mais fragmentada, na qual os minúsculos cristais estão tão juntos que quase formam uma pasta; quem já tomou frozen margarita sabe do que estou falando. Agora só falta trocar o sabor da margarita pelo de limonada industrial, bem doce, dessas que são vendidas no McDonald’s ou no Burger King.

O resultado era matemático: entrei de cabeça, sedento, a boca aberta recebendo a raspadinha incessante que me invadia goela abaixo, sendo desnecessário engolir. Tão voraz estava que a velocidade do fluxo parecia pouca, de forma que eu me precipitava para frente para sorver ainda mais daquele gelinho salvador.

Era uma torrente implacável. O jato impiedoso cobria minha cara e descia pela minha traquéia impedindo a respiração. Contudo, a sede não passava. A pequena chama ainda queimava no meu peito. Talvez um pouco mais de velocidade, um pouco mais de voracidade... não adiantava. Fiquei sem ar e com ânsias de vômito. Seria uma boa idéia parar um pouquinho, fechar a boca, engolir e virar a cara de lado para respirar, mas na minha obsessão a única coisa que importava era saciar aquele desejo. A dor da falta de ar e a ânsia nauseante aumentavam sem que a sede diminuísse. O mergulho crescentemente insuportável nessa avalanche de limão me custava o ar vital sem retornar benefício algum. Eu sabia que a sede era insaciável e que estava em meu poder sair daquilo, mas não o fazia.

Logo acordei. A sede incontrolável, felizmente, fora criação do sonho, e dela restou apenas a imagem. Esse pesadelo maluco é para mim o melhor exemplo dos sofrimentos auto-infligidos, dos cursos de ação fracassados dos quais, embora reconheçamos o fracasso, não nos desviamos, obstinados num desejo mais forte que nosso melhor julgamento. O inferno, que é um estado da alma e não um lugar geográfico, deve, segundo penso, ser mais ou menos assim (só que com desejos e frustração existencial um pouquinho maiores).

Ilustração final, um trecho de Sto. Agostinho que li há alguns anos (no tratado “Sobre o Livre-Arbítrio”) e que pela primeira vez marcou essa idéia em minha mente:

“Certamente, o próprio fato de um desejo desordenado governar a mente já é, em si, uma punição nada desprezível. Arrancada da riqueza da virtude por forças opostas, a mente é arrastada pelo desejo desordenado à ruína e à pobreza; ora tomando coisas falsas por verdadeiras, e até defendendo essas falsidades repetidamente; ora repudiando o que antes acreditara e mergulhando de cabeça em novas falsidades; ora negando o assentimento a, e afastando da mente, argumentos claros; ora desistindo de encontrar a verdade e se delongando nas sombras da estupidez; ora tentando entrar na luz do entendimento mas logo desistindo, exausta.

“Nesse meio-tempo, a cupidez instaura um reinado de terror, assolando a vida e a mente humana com tempestades vindas de todas as direções. O medo ataca de um lado e o desejo do outro; de um lado, ansiedade; de outro, uma felicidade enganosa e vazia; de um lado, a agonia de perder o que se amava; de outro, a paixão por se adquirir o que não se tinha; de um lado, a dor da injúria recebida; de outro, o desejo ardente de vingança. Para onde quer que se vire, a avareza pode pinicar, a extravagância arruinar, a apatia esmagar, a obstinação incitar, a opressão enervar, e incontáveis outros males povoar e correr soltos pelo reino do desejo desordenado. Podemos, em suma, considerar essa punição algo trivial - uma punição que, como você vê, todos aqueles que não aderem à sabedoria sofrerão?”

terça-feira, março 17, 2009

O Sacrifício da Quaresma

Estamos na Quaresma, que é tempo de jejum, esmola e oração. É um tempo de fazer sacrifícios, isto é, se abster de algum prazer lícito, de alguma coisa boa, por amor a Deus. Acho que esse é um dos pontos mais difíceis de se aceitar da doutrina católica. Sacrifício?? Qual é a finalidade disso?

Fazemos sacrifícios em outras áreas da vida. Valores importantes são difíceis de se alcançar, e requerem que deixemos de lado (sacrifiquemos) valores menores. Uma mulher enfrenta, para emagrecer, jejuns muito piores do que os da quarta-feira de cinzas e da sexta-feira santa. Contudo, há uma diferença importante aí: o sacrifício da mulher que quer emagrecer é conseqüência de como a realidade se estrutura. Deixar de comer um doce gostoso é, pela própria natureza do funcionamento do metabolismo humano, o meio pelo qual ela deixará de acumular gordura. Há uma relação causal objetiva em jogo. Já um sacrifício para Deus visa atingir que fim? Parece ser algo arbitrário, e por isso diferente dos sacrifícios da vida comum, que são o meio necessário para o fim desejado. Por que Deus pede sacrifícios e não prazeres?

Há boas razões para que seja assim. A primeira delas é totalmente humana. Um soldado, por exemplo, toma banho frio e dorme em cama dura. Em si mesmo, isso em nada contribui para a força ou habilidade do soldado. Seu objetivo é a disciplina do caráter. O soldado abre mão, agora, de pequenas coisas das quais poderia usufruir, para fortalecer o controle sobre suas próprias ações de modo que, na hora em que surgir uma tentação à qual ele não possa ceder (fugir da batalha, por exemplo), ele siga firme em seu dever. O mesmo vale para os pequenos sacrifícios da Quaresma: abstendo-se do lícito, fortalece-se a vontade para se abster do ilícito.

Já outro motivo é mais diretamente ligado a Deus. Todas as coisas criadas são boas; refletem, em alguma medida e cada uma de um jeito, a bondade infinita de Deus. É bom, portanto, que o homem goste delas. Contudo, o amor por uma coisa criada nunca deve superar o amor pelo Criador, que é a fonte de todo o bem. Esse é o risco que o homem sempre corre: amar mais o bem menor do que o bem maior; pecado é isso, e nossa natureza tem uma certa tendência a pecar. Conforme vivemos a vida, aproveitando os diversos bens do universo, invariavelmente supervalorizamos alguns deles e tiramos o valor de outros. Em especial, nos prendemos demais às criaturas e esquecemos do Criador. O sacrifício de alguns bens e prazeres nos faz lembrar que, por melhores que sejam os bens criados, são todos relativos e incompletos, se comparados ao Bem Incriado.

Por fim, o sacrifício da Quaresma nos lembra e nos leva a imitar a vida e a paixão de Cristo, que esteve disposto a passar por todo o tipo de privação por amor aos homens. Dada nossa condição caída, com tendência ao pecado, viver bem implica passar por sofrimentos, “carregar nossa cruz”. Ao fazer isso, participamos da obra redentora de Cristo. Ao mesmo tempo, o exemplo de sua ressurreição nos dá a garantia de que esse sofrimento é compensado, com uma vida mais verdadeiramente feliz agora e uma eternidade junto de Deus, que aprendemos a amar cada vez melhor.

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Ciência VS. Qual Religião?

Detesto debates de “Ciência e Religião”. As religiões são muito diferentes umas das outras. Algumas são nocivas à ciência (o Islã que vemos hoje em dia, certos tipos de protestantismo fundamentalista, etc); mas acontece que a própria ciência deve sua existência a uma religião em particular: o Cristianismo. Não digo isso meramente porque a Igreja Católica foi, por séculos, a maior patrocinadora da ciência no mundo, e nem porque muitos dos maiores cientistas da história foram cristãos. Falo de algo mais profundo: dos princípios metafísicos do Cristianismo, que foram de onde a ciência nasceu. Há um motivo pelo qual isso não se deu na Grécia Antiga e nem no Islã (que teve uma respeitável idade de ouro), mas na Europa medieval.

Por que a ciência não nasceu entre os filósofos gregos e romanos? Porque suas próprias idéias impediam tal concepção. Duas correntes podem ser discernidas. Numa delas (pitagóricos, platônicos e derivados), reinava a idéia de que o mundo observável pelos sentidos é pouco real, se comparado ao mundo das idéias e das relações lógicas. O conhecimento é possível apenas acerca de idéias eternas e imutáveis; o mundo à nossa volta, com suas incessantes mudanças, permite apenas opiniões incertas, e nem vale a pena se dedicar muito ao estudo dele. Alternativamente, outra visão (aristotélicos e estóicos) era a de que o mundo é fixo, eterno, e não poderia ser de outro jeito. A experiência dos sentidos é pouco importante, pois é a metafísica que nos diz como as coisas são.

Aristóteles deu um grande avanço, é verdade; frisava a importância da observação. Mas ainda vigorava em seu pensamento, e no de seus seguidores, uma idéia muito fixa de como o mundo tem que ser para se encaixar em certos pressupostos metafísicos. Assim, a observação extensa e detalhada caminhava junto de afirmações patentemente falsas (ex: um corpo mais pesado cai mais rápido que um mais leve). Já conhecemos a estrutura básica do universo; a observação preenche essa estrutura, sem nunca questioná-la. O Motor Imóvel de Aristóteles não é um criador livre, mas o princípio motriz de um mundo eterno e necessário. Que tudo é composto de quatro elementos, que o universo extra-lunar é uma grande engrenagem incorruptível, composta de esferas de éter; essas e outras premissas básicas só seriam questionadas, pouco a pouco, séculos mais tarde, depois que a cultura clássica (difundida pelo Império Romano) fosse penetrada pelo Cristianismo.

E o Islã? Diferentemente da filosofia grega, o Islã acredita na criação do mundo; ou seja, o universo não é algo eterno e necessário; é uma criação de Alá, e poderia, portanto, ser diferente do que é. O problema é que, para o muçulmano, todo evento é ação direta de Alá. Não existem leis da natureza: é Alá que faz com que, neste momento, a pedra caia; no momento seguinte, sua vontade pode mudar. A vontade de Alá não se pauta por nada, nem por ela mesma. Ordena o que antes proibira. Não há segurança; a razão humana é falha e duvidosa. Houve no Islã ótimos filósofos e pensadores; não eram, entretanto, bons muçulmanos. Fé e razão são inconciliáveis. Com o fortalecimento da ortodoxia religiosa, sua cultura caiu no fideísmo obscurantista do qual jamais saiu.

No Cristianismo, o mundo também é fruto da vontade livre de um Criador. Contudo, esse Criador não é um tirano caprichoso que manda e desmanda, mas um pai bondoso e racional. O universo é um sistema ordenado, no qual o funcionamento de cada parte, ainda que possa ser atribuído em última análise a Deus, é o resultado de causas segundas contidas no próprio universo. O mundo é sujeito a leis inteligíveis, mas não é necessário ou eterno; precisamos descobri-lo, e para isso temos que usar os cinco sentidos, com base nos quais a razão infere leis gerais. Diferentemente do Islã, não há antagonismo entre o cultivo da inteligência e da fé. Pelo contrário: houve grandes filósofos que foram santos e homens de virtude reconhecida.

O universo não precisava existir, mas existe, e segue uma ordem racional, reflexo da Razão que o criou. Seu funcionamento é observável e mensurável, e portanto cognoscível, mas tem que ser descoberto pelos sentidos. É essa posição metafísica que conduziu ao nascimento da ciência. De fato, a ciência experimental, ou seja, que não se contenta em observar e anotar fenômenos, mas faz testes, elabora perguntas para a natureza, surgiu na Europa medieval (o próprio termo “ciência experimental” foi cunhado por Roger Bacon, um frade franciscano inglês do século XIII).

É óbvio que esta não é uma explicação fechada da origem da ciência. As contribuições científicas da cultura clássica grega e da cultura islâmica são inegáveis (a esfericidade da Terra e o heliocentrismo são descobertas gregas; e foram pensadores islâmicos que lançaram as bases da ciência ótica). Mas nada que se compare à produção científica ocidental da Idade Média em diante. Premissas de fundo têm o poder de direcionar nosso pensamento sem que o percebamos, e é no plano histórico que as diferentes direções tomadas pelas várias culturas aparecem claramente.

Ao se debater “Ciência e Religião”, opondo os avanços da ciência moderna ao Cristianismo, combate-se a própria metafísica da qual a ciência nasceu, e sem a qual sua existência futura é incerta.

terça-feira, agosto 05, 2008

Negando a Hipótese Deus

A ciência natural está sempre sujeita a revisões. A teoria que ontem parecia sólida pode, hoje, revelar-se imprecisa, até errada. É exatamente esse caráter incerto das teses científicas, sempre abertas a novos testes, que garante a eficácia da ciência em elucidar cada vez melhor o funcionamento do mundo.

Toda teoria científica tem, ao menos em tese, algum vínculo lógico com a realidade observável, ou seja, faz alguma previsão testável acerca do universo. Mas há também vínculos entre as diversas teorias. Se amanhã descobrirem que o Tiranossauro Rex nunca existiu, que os paleontólogos misturaram ossos de diferentes dinossauros, isso implicará mudanças na forma como entendíamos outros dados da natureza. A tese de que uma certa espécie de lagarto se alimentava dos restos de comida entres os dentes do T-Rex também terá de ser revista. Ainda assim, com ou sem o T-Rex, nossa concepção do universo permanece em larga medida a mesma; alguns ajustes serão necessários, mas a idéia geral permanecerá.

Agora suponha novos experimentos que revelem erros profundos em nosso entendimento atual da lei da gravidade. Todos os testes, e todas as aplicações da teoria na tecnologia, funcionaram por motivos casuais e não-relacionados. É algo, sem dúvida, muito improvável (embora logicamente possível). Se acontecesse, a mudança na nossa concepção de como o universo funciona seria enorme. Muitas outras teorias teriam de ser revistas; toda a física sofreria uma revolução. Sem a teoria da gravidade, todas as nossas idéias e pensamentos que pressupunham a validade da teoria antiga estariam minados.

Isso é verdade nas ciências naturais; e é ainda mais radical na metafísica, a ciência (embora não ciência empírica) que investiga, não como se dão os processos da realidade observável, mas sim a estrutura básica e fundamental dessa realidade. Quando falamos em causa e efeito, em substâncias, essências, acidentes (que são as características não-essenciais dos seres), possibilidade, necessidade, e mesmo na idéia básica de “ser”, estamos utilizando conceitos metafísicos. Aceitamos, ordinariamente, que a realidade à nossa volta seja composta de diversos seres distintos, com propriedades determináveis, que atuam uns sobre os outros em relações causais; aceitamos que cada ser humano é uma pessoa, distinta de seus pensamentos e ações (embora esses também acabem por mudar quem ela é) e com uma existência contínua no tempo. Quando encontro meu amigo depois de uma semana, ele acumulou diversas pequenas diferenças, mas ainda é a mesma pessoa.

Aceite-se essa idéia básica da realidade, e a existência de Deus segue-se necessariamente. A própria relação de causalidade já nos leva, em poucos passos, à necessidade da causa primeira. Os diversos seres contingentes, ao ser necessário. Não dá para aceitar os primeiros, sem aceitar o segundo. Isso do ponto de vista puramente lógico (da ordem do pensamento). O mesmo ocorre do ponto de vista ontológico (da ordem das coisas): se não existe Deus, se não existe um princípio absoluto criador e ordenador de toda a realidade, então não tem como a realidade ser ordenada e inteligível. E a premissa de que a realidade é inteligível está na base da própria ciência natural.

O universo sem Deus (ignorando o problema de sua existência, que deve ser encarado como pseudo-problema criado pela mente humana) é um fluxo constante de eventos. Não há substâncias, entidades, que agem umas sobre as outras; há apenas uma série de eventos e fenômenos sem nenhuma ordem entre si. É a mente que cria ordem nos dados caóticos da experiência. Nossa linguagem e pensamento, que ainda seguem a velha metafísica, estão em contradição com a realidade. A distinção entre sujeito e objeto, entre um ser e suas qualidades, são ilusórias: imaginamos a realidade composta de entidades fixas e ordenadas, quando na verdade tudo é mudança não-inteligível.

O ser humano é parte dessa mudança constante. E a concepção do homem como uma pessoa, sujeito racional com existência contínua ao longo do tempo, é tão ilusória quanto os demais conceitos metafísicos. Ele também é fluxo, de desejos e impulsos. Não há pessoa por trás. Pedro, ontem, era o aglomerado de impulsos X; hoje, o que chamamos de Pedro é o aglomerado Y, um outro estado mental. Além disso, é óbvio que o homem não é, de forma alguma, algo ontologicamente diferente do resto da realidade; é, assim, como tudo mais, um produto de forças alheias a ele. Não há escolha; não há nem propriamente ação. Os movimentos humanos seguem a mesma necessidade de todo o resto; motivos, intenções e finalidades são ilusões criadas conforme o fluxo da realidade segue seu curso. A vida humana não constitui uma narrativa; não há um “eu” contínuo sob os fenômenos, e muito menos um sujeito que altere a realidade.

Volta-se, assim, à concepção de Heráclito, filósofo pré-socrático que dizia ser impossível fazer qualquer afirmação. A realidade é como um rio que corre: sempre o mesmo rio, mas nunca a mesma água. No momento em que afirmamos algo, a realidade já mudou, e o sujeito, nós, já mudamos. Portanto toda afirmação é falsa.

Muitos ateus tratam a existência de Deus como se fosse a existência do T-rex, com poucas ou nenhuma conseqüência para o resto do universo. O grande homem invisível e poderoso que fica lá em cima pode existir ou não; tudo continua na mesma. É uma hipótese a ser testada.

Esse ser do qual falam (“super-poderoso, que tudo sabe, invisível”) não é Deus, mas apenas uma criatura imaginária. Deus é infinitamente superior a essa descrição; é o próprio princípio criador e ordenador de tudo o que existe. Não há evidência possível para sua existência, pois a existência de qualquer coisa já o prova. Se Ele não existe, então a realidade como a pensamos carece da base metafísica que precisa para se sustentar, e é muito diferente daquilo que nossa linguagem e pensamento comum representam.

domingo, maio 04, 2008

Deus ou Partícula-Deus?

Enquanto escrevo este texto (e enquanto você lê), desenvolve-se na Suíça um projeto revolucionário: a construção do Grande Colisor de Hádrons, um gigantesco acelerador de partículas. Seu objetivo é encontrar a elusiva partícula Bóson de Higgs. Até agora, ela tem sido suposta pela teoria física, sem nunca ter sido observada. Se conseguirem comprovar empiricamente sua existência, então a física conseguirá explicar muitos fenômenos, e fechar muitas de suas lacunas. Alternativamente, se as coisas derem errado, produzir-se-á um pequeno buraco negro que engolirá o planeta inteiro (eu escreverei um texto muito revoltado a respeito!!).

Há muito o que se dizer sobre o projeto. Do ponto de vista econômico, poderia questionar o gasto de bilhões de euros para realizá-lo. Não que ele não seja interessante, mas será que vale o que custa? No entanto, deixarei de lado esse ponto. Meu interesse aqui é filosófico.

O poder explicativo do bóson de Higgs é tão grande que já foi até chamado de “partícula-Deus”. Apesar do sentido humorístico do nome, ele representa um tipo de pensamento nada incomum: conforme a física se torne capaz de explicar os fenômenos do universo, e a explicar como surgiu o universo, então ela desbancará Deus. Se tudo pode ser explicado em termos puramente naturais, para quê Deus? Se descobrirmos qual a partícula fundamental do universo, a base e a origem de todo o resto, então o problema de Deus desaparece; os argumentos da existência de Deus revelar-se-ão furados: acreditava-se que a causa primeira era Deus, quando na verdade ela é o bóson de Higgs.

Quem assim pensa não entendeu direito os argumentos da existência de Deus. Não compreendeu que a ciência natural não pode nem sequer tocar a questão da existência de Deus, e que os argumentos, por sua vez, não dependem da validade de nenhuma teoria científica particular.

A prova da existência de Deus parte da constatação de que os seres do universo são contingentes. Isto é, poderiam não existir. Não há nenhuma contradição lógica em se imaginar que não existam homens ou cachorros. Por muito tempo, não havia nem homens nem cachorros. Homens e cachorros são, portanto, contingentes. Todo ser contingente necessita de um ser que não ele próprio como causa de sua existência; como o universo inteiro é o conjunto dos seres contingentes, ele próprio precisa de algo externo a si que seja a causa de sua existência; e é a esse algo, a esse ser necessário, cuja existência não depende de nada mais (e, se assim não fosse, não poderia haver seres contingentes), que chamamos de Deus.

O bóson de Higgs é um ser contingente. Tanto é assim que estamos fazendo experimentos empíricos para ver se ele de fato existe ou não. A existência de um ser necessário pode ser conhecida pela mera especulação mental; se entendemos o que ele é, podemos concluir logicamente que ele existe. Sua não-existência implicaria uma contradição lógica. Para saber se existem homens, cachorros ou bósons, não basta formular um argumento abstrato; temos que sair pelo universo para ver se achamos algum exemplar deles.

No fundo, a ciência e a filosofia fazem perguntas diferentes, e é isso que gera a confusão. A ciência pergunta “como se dão os processos no universo? Quais são as causas que operam NO universo?”; e a filosofia (nesse ponto): “qual é a causa DO universo?”.

A ciência investiga como as coisas são. Mas a questão da existência de Deus não depende do “como”, e sim do “que”; é o fato da existência de algo que nos leva a Deus. Não importa se esse algo é composto de partículas indivisíveis e iguais ou dos cinco elementos primordiais (água, fogo, etc). Tudo isso é “como as coisas são”, algo posterior ao mais elementar “que”: o fato de elas existirem.

A ciência muito nos ensina sobre o universo, mas não pode ir além dele. Seja o universo como for, com ou sem bóson de Higgs, a existência de Deus continua necessária como sempre. A partícula-Deus, a seleção natural, ou a super-corda podem explicar muita coisa, mas não respondem à questão fundamental: por que existe alguma coisa ao invés de não existir nada?

quarta-feira, abril 16, 2008

Conhecendo o Sentido da Vida

“Você sabe qual é o sentido da vida?” – “Sim.” Parece arrogante, não é mesmo? “Qual é o sentido da vida?” é o exemplo máximo de pergunta irrespondível por excelência. O sentido da vida é aquilo que todo ser humano anseia saber, mas que nunca alcançará plenamente; e sentimos que, se fosse porventura alcançado, a própria vida perderia um pouco da graça. Se eu já possuo o sentido da vida, o jogo acabou; já posso sentar e esperar.

E, no entanto, todo mundo que tem uma religião, no fundo, julga que conhece a resposta. Eu tenho religião: sou católico. Portanto, sou um daqueles que julga conhecer a resposta. Arrogante, não?

Não necessariamente! E aqui faço uma distinção: uma coisa é conhecer exteriormente, ou em linhas gerais, o sentido da vida; e isso eu conheço: fazer o bem; a santidade; amar a Deus; Jesus Cristo (apesar da diferença de grafia, os quatro dizem a mesma coisa). Isso eu sei, e posso dizer que já dá uma bela luz à questão “qual o sentido da vida?”; dá uma finalidade, uma direção e um sentido. Mas não dá a rota individual que cada um terá que traçar!

Como eu disse, esse conhecimento pode ser chamado de “exterior”. Ele é universal e válido a todos os homens; dá-nos as coordenadas principais sobre como viver. Mas não diz, para cada um de nós, o que fazer em cada situação, e como coordenar esses fins com nossa situação individual, concreta e única. Uma coisa é saber que temos que ser bons; outra é descobrir no que, para cada um de nós, consistirá esse bem a ser vivido; e é esse o conhecimento “interior”.

Deus é o sentido da vida? Sim! Mas o que é Deus? Como o conheço? A princípio, podemos apenas enumerar aquilo que Deus não é: Ele não é corpóreo; não é finito; não tem qualquer limitação. Em suma, é totalmente diferente de tudo o que conhecemos. Mas, se consideramos que as coisas criadas, de forma finita e parcial, refletem algo do Criador, e, ainda mais, se aceitamos que cada ser humano é uma imagem de Deus, e ainda que Cristo é Deus feito homem, então podemos começar a conhecê-lo diretamente. Mas esse conhecimento, que de fato preenche aquela noção, inicialmente negativa, que temos de Deus, depende da experiência; ou seja, depende da vida de cada um. E como o ser de Deus é infinito, infinitas vidas diferentes podem levar a infinitos conhecimentos diferentes. Claro, isso não nega a realidade objetiva; há coisas (e, principalmente, privações de coisas) que simplesmente não refletem Deus; e sempre que houver contradição entre duas afirmações, é óbvio que uma delas está errada. Não se nega a realidade objetiva, e nem a unidade da verdade, ao se aceitar que diferentes perspectivas levem a diferentes visões do mesmo objeto.

É importante frizar que não falo da distinção entre meta e caminho. Tanto a meta quanto o caminho podem ser conhecidos de ambas as formas. Cristo, Deus, Igreja, sacramentos, graça. Sei o que é a Igreja, sei porque ela foi estabelecida; qualquer um pode saber isso. Mas que papel específico eu terei nela e como os canais da graça divina que ela nos disponibiliza afetarão a minha vida, isso é algo que apenas eu posso saber, e que estou em constante processo de descoberta.

Assim, conhecer perfeitamente o sentido da vida e, ainda assim, buscá-lo com todas as energias, não são contraditórios. O que muda é a forma na qual o conhecemos. Exteriormente, e esse conhecimento, de fácil comunicação, é o mesmo e invariável para todos; ou interiormente, e esse conhecimento, que relaciona o indivíduo com o absoluto, é particular a cada um, e só o descobrimos conforme vivemos – e apenas se nos mantemos firmes nos conhecimentos da primeira forma, que são absolutamente verdadeiros e confiáveis, embora não esgotem o que é a vida espiritual para cada um. O mapa nos dá conhecimento verdadeiro sobre a ilha; mas só podemos dizer que a conhecemos se já pisamos em seu solo – contudo, se quisermos desbravá-la sem o mapa, vamos simplesmente nos perder.

É arrogante dizer que se conhece o sentido da vida? Se isso significa que supomos ter desvendado os mistérios de Deus e do homem, e que sabemos o que é melhor para cada pessoa em cada situação, então certamente é. Mas se apenas aceitamos que, por nenhum mérito nosso, conhecemos aquilo que devemos mirar e pelo qual devemos viver, então não; pelo contrário, é o primeiro passo da humildade que reconhece a insuficiência do homem e permite que ele dê passos concretos em direção a algo que não o seu próprio capricho.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Impressões da Europa

A Europa não vai bem. Muitos elogios se tecem ao “modelo europeu”. Mas também temos que falar do podre. Não tenho em mente modelos políticos e econômicos, embora creia que eles expliquem parte do problema apontado. Os incentivos por eles criados exacerbam as deficiências espirituais e morais da sociedade, que são a principal causa da crise atual e o foco do meu texto.

Um teólogo inglês resumiu bem a cultura atual de seu país: supermercados e esportes. O mesmo poderia ser dito sobre outras nações. Tem-se a impressão de que as pessoas não têm uma razão maior de viver. Jovens e velhos, todos vivem em função do prazer (exceto os muito jovens e os muito velhos; esses vivem cada vez menos). As aspirações não ultrapassam baladas e viagens. O interesse não vai além da última fofoca sobre o Beckham. Poucas pessoas querem filhos, e as famílias não duram. Muitas crianças e adolescentes já têm como dado que se casarão mais de uma vez.

Essa vida não leva o homem à felicidade. Os níveis de alcoolismo entre jovens são alarmantes, e os adultos estão afundados até o pescoço em dívidas. Depressão, distúrbios psicológicos e suicídio não são incomuns. Muitos percebem que há algo errado, mas não vão à raiz do problema: o desejo de lutar por algo melhor pára no protesto político ou no efeito estufa.

Claro, isso é um recorte muito parcial. Nenhuma pessoa é tão simples ou superficial assim. As aspirações humanas nunca são totalmente apagadas; amizades continuam a ser feitas, encontros felizes acontecem, planos bons ainda vingam. Quem estiver disposto encontra lá os meios para obter a melhor formação espiritual e cultural do mundo. Sem falar que são incontáveis as virtudes que os europeus poderiam nos ensinar: o trabalho realizado com perfeição, a honestidade, o senso de dever cívico. Mas mesmo isso vai se perdendo aos poucos. Escândalos políticos, a nós tão familiares, estão deixando de ser raridade por lá.

Os europeus perderam o sentido de transcendência; perderam sua identidade cristã. Quiseram construir um paraíso na terra, pensando apenas no homem e na vida presente. Mas se esqueceram de que o homem está profundamente desregulado. Que, sem algum auxílio externo, sua tendência é piorar. Pensaram ser possível manter o patrimônio cultural de séculos desprezando sua base espiritual. Enganaram-se.

No século XVIII, por exemplo, havia muitos ateus e deístas; alguns deles geniais, com profunda capacidade de entender a alma humana, e senso estético muito refinado. Contudo, ao se basear em suas idéias, a sociedade tornou-se incapaz de produzir homens da mesma qualidade. Do primado da razão, da sociedade de homens livres e educados, passou-se ao primado da ciência e da técnica e à sociedade planejada nos moldes da física. O que falar dos ateus de hoje, então? A própria distinção entre verdadeiro e falso, bem e mal, belo e feio, não é aceita. Nessas condições, que tipo de aspiração é possível?

Não é questão de culpar ateus ou qualquer outro grupo. Eles são apenas um sintoma radicalizado (e, ao mesmo tempo, parte da causa) de algo que perpassa toda a sociedade. Ao abandonar os valores de base de nossa civilização em prol de um sonho ilusório, não só deixamos de lado nossa real finalidade como não alcançamos este novo sonho e, para completar, tolhemos nossa própria capacidade de sonhar. A vida vai se tornando cada vez mais medíocre, e a concepção de um mundo melhor cada vez mais mesquinha e pequena.

É essa a impressão que a Europa me passa hoje em dia. Um povo que procura desesperadamente a felicidade onde ela não pode ser encontrada, e ao fazer isso mina as bases de sua própria civilização. Os prédios são magníficos, os museus inestimáveis, as bibliotecas verdadeiros universos; mas as pessoas que lá moram seriam incapazes de produzir, hoje em dia, algo semelhante.

Não sou pessimista. Acho que o pior já passou, e sinais de mudança já podem ser vistos. Mas o caminho é longo e árduo. Agora já está mais claro que há escolhas a serem feitas, lados a se tomar. Isso significará mais conflitos, mais debates e menos consenso, o que é bom. Pois ou os europeus acordam de seus devaneios, ou se extinguem; e há quem esteja pronto para tomar seu lugar. O arcebispo anglicano de Canterbury já considera tribunais para aplicar a lei sharia algo inescapável; um cartoon ou um vídeo são o bastante para provocar mortes; o sentimento de revolta e frustração nas grandes periferias é profundo e incontrolável. A Europa passa por uma fase decisiva de sua história, que poderá ser seu fim ou um novo começo.

quinta-feira, janeiro 24, 2008

Sem Deus, Sem Ética?

“Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Frase freqüentemente repetida, embora, creio eu, nem sempre entendida. Exprime uma verdade, mas de forma mais profunda do que normalmente se julga.

Têm razão os ateus que se revoltam contra ela, e replicam que não precisam de uma revelação divina para saber que assassinar é errado e que ajudar alguém em necessidade é certo. Por acaso o cristão condena o assassinato apenas porque a Bíblia diz “não matarás”? Claro que não.

A lei moral, ou seja, aquelas coisas que devemos fazer ou evitar para que sejamos pessoas melhores, decorre da própria natureza do homem. Percebemos racionalmente que certas ações são construtivas para a vida humana: permitem ao homem viver melhor. Já outras são destrutivas. O mandamento “não matarás” não é fruto de um capricho de Deus; é a expressão de uma condição necessária para a construção de um ambiente no qual os homens vivam bem. Assim, Deus instituiu a lei moral não ao dar os Dez Mandamentos a Moisés, e sim ao criar o primeiro homem.

Um ateu, ainda que não conheça a Deus, pode conhecer a natureza humana. Percebe que certas ações contribuem para a felicidade dos homens e outras não. Portanto, ele também é capaz de diferenciar o certo do errado, e, até certo ponto, agir com base nesse conhecimento. Assim, ao considerar a natureza humana em si mesma, conclui que, mesmo sem Deus, nem tudo deve ser permitido.

O problema surge quando considera a existência humana numa perspectiva mais ampla. Para o ateu, a existência do universo é um grande absurdo, um evento sem causa; o homem, um acidente improvável que logo desaparecerá. A vida humana é um breve momento de consciência, de prazeres e dores, entre dois vazios eternos, sem qualquer finalidade. Não passa de uma piada sem sentido do universo. Objetivamente, não há por que considerá-la mais valiosa ou importante do que a queda de uma pedra em Marte. Nessa perspectiva, qual o valor da felicidade humana? O mesmo que de todas as outras coisas: nenhum.

Assim, um ateu percebe o que é o bem para os homens, mas carece de motivo real para persegui-lo. Friamente falando, sua vida valeria tanto quanto a de uma árvore. Mas isso não significa que os ateus sejam necessariamente imorais; são, em geral, apenas incoerentes. Ao pensar sobre suas ações, suas vidas e sobre as pessoas à sua volta, supõem que valham alguma coisa, que sua existência tenha algum sentido. E é apenas por causa dessa ficção implícita, desse “esquecimento” temporário de que tudo não passa de átomos sem rumo, que um ateu valoriza o bem que percebe para si e para os demais, que cultiva sentimentos nobres, etc.

Que essa incoerência (uma incoerência boa, dado que o ateísmo levado às suas conclusões lógicas seria monstruoso) seja relativamente comum aos ateus não é surpreendente, pois a mente humana tende, espontaneamente, a rejeitar a idéia de que nada no universo tenha finalidade e que toda a raça humana, e tudo o que ela produziu, não passe de um acaso fortuito e irrelevante.

Assim, sem Deus, tudo seria permitido. Não pela falta de um legislador para revelar os mandamentos, mas sim pela falta de uma finalidade que valesse a pena ser perseguida. É apenas porque nas sociedades humanas ainda existem traços de religiosidade que os ateus que nelas vivem ainda pensam em termos morais e tentam, em alguma medida, alcançar valores elevados; não fosse por essa base espiritual, o ateísmo condenaria a população humana ou ao hedonismo bestial ou ao mais negro niilismo. E, conforme ela diminui, é para eles que nos dirigimos.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Fé e Dúvida

Fé implica acreditar em algo que não se pode provar. Duvidar é levantar objeções, encontrar motivos para não se aceitar uma tese. São dois atos, portanto, contrários. Por esse motivo, parece que nada é mais oposto à fé do que a dúvida, e que, assim, quem tem fé tem que banir de sua mente toda inquietação e dúvida.

A mente humana deseja a verdade. É universal: ninguém gosta de estar errado, ou de ser enganado; todos procuram ter crenças corretas, ainda que nem sempre consigam. Nessa busca pela verdade, a dúvida tem o papel essencial de testar a força e a fundamentação de todas as crenças que se apresentam à nossa mente.

No trajeto pelo qual passam as teses desde a primeira vez que nos deparamos com elas até sua transformação em crenças bem fixadas, a dúvida é um obstáculo que dificulta o percurso de todas, de modo que apenas as mais bem fundamentadas consigam completá-lo. É a dúvida que nos impede de acreditar em teses absurdas e nas mentiras do primeiro charlatão que aparecer em nosso caminho. Astrologia, leitura de borra de café, planos mirabolantes para enriquecer; é por causa da dúvida, do nosso senso crítico, que eles não se apoderam de nossas mentes. Aqueles que não exercitam sua faculdade de duvidar, de levantar objeções e dificuldades, tornam-se crédulos.

A virtude é um meio termo entre a deficiência e o excesso. Se a ausência de dúvida nos torna crédulos, o excesso nos torna céticos. Não há, afinal, tese da qual não possamos duvidar. É sempre possível encontrar objeções ainda não respondidas; e, quando o forem, objeções à resposta. Que nossos pais são de fato nossos pais, que nossos amigos falem a verdade, que os fatos narrados nos jornais sejam verídicos; na aceitação de todos esses há um elemento de fé, já que não são diretamente verificáveis.

Coloque obstáculos muito altos na pista, e nem os melhores atletas conseguirão ultrapassá-los. Nossa mente não chegará de forma alguma à verdade, sua finalidade. É sempre possível que o marido esteja sendo traído pela esposa; mas essa mera possibilidade teórica não deve levá-lo a duvidar de sua mulher. O enciumado doentio que faz isso age mal. E a fé, como a confiança, depende de um posicionamento pessoal. Reconhecemos aquilo como essencial para nossa vida, vemos que faz sentido, e há evidências em seu favor: portanto, frente às diversas dúvidas, damos-lhe o benefício da dúvida.

Além disso, a dúvida não revela sempre falhas na tese sendo avaliada; pode revelar, antes, o conhecimento insuficiente de quem a levanta. Quando um aluno, em classe, levanta uma dúvida, não o faz, em geral, para refutar o que o professor expõe, mas para entender melhor.

A dúvida que serve de desculpa para não crer, essa é contrária à fé. Mas se mantida dentro dos padrões da razoabilidade, vem, antes, em seu auxílio: impede que aceitemos qualquer crença, ainda que irracional. E ainda mais: obriga-nos a estudar aquilo que aceitamos ser essencial para nossa alma. Para o homem de fé, a dúvida não é um pretexto para deixar de crer, e sim um estímulo a se aprofundar ainda mais em suas crenças.

Ainda que desconheça as respostas para diversos questionamentos, tem plena convicção de que isso se deve à sua própria ignorância. As respostas que ainda não conhece existem e podem ser encontradas se procuradas com diligência. Como disse Sto. Anselmo: “Não procuro entender para crer, mas crer para entender. Pois creio também nisto: que se não crer, não entenderei”.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Uma pedra tão pesada que nem mesmo Deus pode levantá-la

Pode Deus criar uma pedra tão pesada que nem Ele consiga levantar? Se Ele puder, então terá criado uma pedra que não consegue levantar, e portanto não é onipotente. Se não puder, então há algo que Ele não pode criar, e portanto não é onipotente. E como Deus é, por definição, onipotente, Deus não existe.

Esse argumento é surpreendentemente popular, e conta com muitas versões (até mesmo nos Simpsons: "um burrito tão quente que nem Deus seria capaz de comer"). A maioria das pessoas não o leva a sério; parece ser mais uma brincadeira. Mas, ainda assim, tentar responder a esse argumento nos leva a considerar questões importantes sobre o que é a onipotência, sobre a linguagem e sobre a realidade das coisas. A brincadeira torna-se uma boa oportunidade para considerarmos coisas mais sérias.

O grande problema do argumento está na pedra: uma pedra “tão pesada que nem Deus possa levantá-la”. Deus é onipotente. Isso significa que, qualquer que seja o peso de uma pedra, Ele pode levantá-la. Portanto, é correto dizer, de toda e qualquer pedra, que ela pode ser levantada por Deus. Isso é uma propriedade que pode ser atribuída a todas as pedras.

Assim, falar em uma pedra tão pesada que nem Deus possa levantá-la é falar de uma pedra que, ao mesmo tempo, pode e não pode ser levantada por Deus. Isso é, obviamente, uma contradição.

Um ser cuja definição contenha uma contradição não pode existir. Mais do que isso: ele não pode sequer ser pensado. Uma pedra a qual Deus não possa levantar é equivalente a um solteiro casado ou a um círculo quadrado. Não existem, nem podem existir, sequer como pensamentos, pois envolvem em si noções contraditórias, que não podem ser unidas. As expressões “solteiro casado” e “pedra que nem Deus pode levantar” apenas parecem se referir a algo, mas não passam de seqüências de sons sem sentido algum. “Pedra que nem Deus pode levantar” e um ruído incoerente qualquer, digamos “m%kle#dè”, significam a mesma coisa: absolutamente nada.

Pode Deus, então, criar a tal pedra? Não. Isso significa alguma limitação de seu poder? Não, pois essa suposta pedra revelou-se, após uma análise um pouco mais profunda, não ser nada. O que significa ser onipotente? Ter em si, plenamente realizadas, todas as potências. Em outras palavras: poder fazer tudo. O fato é que a “pedra que não pode ser levantada por Deus” não faz parte do “tudo”, do conjunto dos seres; é nada, conjunto-vazio.

Portanto, Deus não pode criar tal "pedra", mas isso em nada fere sua onipotência. Logo, é perfeitamente possível sustentar que Deus seja onipotente. Portanto, o argumento falha em provar que Deus, onipotente, não existe.

domingo, julho 08, 2007

Cinco Livros

Seguindo o último “meme” popular do mundo dos blogs, que me foi passado pelo Adriano:

5 livros recomendáveis que me vêm à mente

Human Action – Ludwig Von Mises

O tratado de Ludwig Von Mises sobre economia, que estou lendo, é essencial para se entender o funcionamento do mercado. É daqueles livros cujos insights e raciocínios são expostos com tamanha clareza e força que o leitor é compelido a parar a leitura e contar para seus amigos (ou escrever num blog) o que acabou de descobrir. O único problema é que eu não sei até que ponto um completo leigo em economia seria capaz de entendê-lo (fora a primeira parte, que trata de epistemologia e metodologia na ciência econômica, e que todos podem ler). É bom ter feito e passado numa matéria de Microeconomia I na faculdade só para se familiarizar com os termos e algumas noções principais.

A República – Platão

Semana sim, semana não, encontro-me com um grupo de amigos para ler esse clássico. Há muita coisa para se criticar na suposta proposta platônica: Estado totalitário, sistema educacional repressor, elite de governantes da cidade obrigada a viver em regime de propriedade e família comunitárias, etc. Mas a intenção de Sócrates ao construir o que seria a cidade perfeita é fazer uma analogia ilustrativa do que seria a alma do homem justo; e as conseqüentes mudanças de forma de governo da cidade, conforme mudam os valores dos homens e quem está no poder, representariam a degradação da alma humana. Quem quiser uma descrição exata da situação brasileira contemporânea não leia o jornal; vá direto ao livro VIII. Como pretendente a economista que sou, não posso deixar de mencionar a origem da república ideal, que é um verdadeiro tratado de economia política clássica: ganhos da divisão do trabalho e especialização, necessidade de se exportar produtos para poder importar outros, papel do Estado como defensor da cidade contra inimigos externos e internos. Enfim, motivos não faltam para lê-lo.

A Consolação da Filosofia – Boécio

Em sua cela, esperando a execução, o romano Boécio (último clássico, primeiro medieval) encontrou refúgio na filosofia. Antes um poderoso cônsul romano, com família rica e poderosa, de reputação ilibada; agora um prisioneiro do rei Teodorico, pobre e desonrado por crimes que não cometeu. O encontro com a dama Filosofia o levará a considerar sua situação com outros olhos; através de diálogos sobre as questões que mais importam ao ser humano: Deus, a alma, do livre arbítrio, o bem e o mal, a verdadeira felicidade, Boécio compreende que é tolo aquele que depende dos bens da fortuna; pois assim como eles são dados, são tirados quando menos se espera; e então, o que sobra?

História das minhas calamidades – Pedro Abelardo

Pedro Abelardo foi um célebre filósofo do século XII. Espírito incansável e rebelde (e genial), foi vítima de inúmeras perseguições; algumas justas, dado o seu caráter arrogante; outras, fruto da inveja de professores menos capazes. O fato é que ele atraía multidões para assistir suas aulas mesmo que fosse ao ar livre, entre folhas e terra. Ao mesmo tempo em que ganhava popularidade como filósofo, professor e debatedor, envolveu-se romanticamente com Heloísa, uma jovem de quem era tutor; o que resultou na gravidez da moça. O tio dela, nada feliz com o resultado, vingou-se de forma brutal: capangas seus castraram o pobre Abelardo. Humilhado, mas arrependido, virou monge (que era, de fato, o caminho para se ascender na carreira acadêmica); mas seus problemas não terminaram. Enquanto escrevia essa auto-biografia, morava num monastério onde era tão mal-querido por seus confrades que tinha sua comida repetidamente envenenada e fora ameaçado com faca ao pescoço. Enfim, o livro desse personagem tão singular é uma janela única para uma época distante da nossa; mas o que chama atenção é como os problemas humanos permanecem, essencialmente, inalterados.

A História do Diabo – Vilém Flusser

Tudo o que procura transcender o tempo, Flusser chama de influência divina. O que prende o homem ao tempo, ao efêmero, é influência diabólica. Com base nessa distinção, propõe-se traçar, sempre com humor, uma história do diabo, ou seja, uma história do pecado, do impulso de se imergir na correnteza temporal da história. Apesar de não-católico, adota a distinção de pecados da Igreja como o melhor mapa para fazer sua jornada. A luxúria é o desejo de possuir, ainda irracional e espontaneamente, aquilo que nos falta; é primordialmente sexual, mas sublimado resulta no nacionalismo, no amor à língua, e no amor por ler e escrever. Da luxúria o diabo nos leva à ira, que é o desejo de dominar, racional e friamente, o mundo. Falamos aqui da ciência e da tecnologia. Dessa, somos levados à gula, a sede de consumir o mundo inteiro, manifestada na industrialização. E dessa sanha do consumo nascem os pecados sociais: a avareza (conservadorismo) e a inveja (progressismo). Quem consegue se distanciar dessas preocupações mundanas, se libertar do mundo dos fenômenos, cai na soberba, no culto do próprio ser humano, e na idolatria de sua vontade. Quem, por fim, vê a perda de tempo de tudo isso, chega no pecado último: a preguiça ou tristeza do coração, no qual nada mais faz sentido e nada mais importa. No entanto, a cada passo desse caminho diabólico, a intervenção divina está presente para frustrar os planos do diabo. Embora por vezes discordante do que seria a letra da ortodoxia católica, em espírito o livro acerta, em geral, na mosca.

segunda-feira, julho 02, 2007

Bruno Tolentino - Lições

Morreu, há uma semana, o poeta Bruno Tolentino. O Brasil perdeu uma de suas grandes mentes. Resta-nos agora preservar vivo o que ele nos deixou, e garantir que seu legado tenha continuidade.

Eu o conheci pessoalmente pouco tempo antes de sua morte. Fazia o curso dele sobre a história das idéias na modernidade, que infelizmente mal pôde começar. Sua obra, só começo a conhecer agora.

O seu livro mais importante, O Mundo Como Idéia, trata do processo pelo qual o homem substitui, ao contato direto e desarmado com a realidade em toda sua complexidade, conceitos abstratos e sistemas fechados. No lugar de ter que aceitar, humildemente, a própria incapacidade de compreender o mundo-como-tal e abrir-se ao que lhe é superior, fica-se com o mundo-como-idéia, uma imagem falsa e fossilizada do primeiro, que acorrenta a inteligência humana à ilusão de ser ela a senhora da realidade, quando na verdade o que faz é apenas fechar-se sobre sua própria insignificância. O conceito está para o real assim como a estátua de mármore para a pessoa. Sem sombras, reluzente, com contornos claros e distintos, mas também fria e morta.

E essa substituição vem ocorrendo consistentemente desde, pelo menos, a chamada Era Moderna. Cada vez mais o homem toma o conceito pela realidade, e portanto cada vez mais está preso ao salão de mármore, cada vez mais escravo da medusa que transforma tudo o que olha em pedra. E dentro desse salão não se vai ao encontro de nada nem de ninguém que não a si mesmo; todo real conhecimento e todo real amor são falsificados por pobres imitações deles, frutos do orgulho humano de se tornar senhor, conhecedor, de tudo.

O problema é que o conceito é necessário. Precisamos dele para pensar e falar, dado que a realidade supera em muito nossa capacidade de abarcá-la. O mal que enfrentamos, o mundo-como-Idéia, como todo mal verdadeiramente perigoso (porque genuinamente sedutor), é o uso errado de algo que é bom; é tomar um meio como fim.

Não se trata de se retirar da arena do conhecimento e declarar, com igual soberba, que nada se pode saber e que todo esforço é vão. Isso também é trair a finalidade do homem e fechar-se. Como o Bruno frisava nas três aulas que deu de seu curso, é essencial que não nos fechemos sobre nossas próprias idéias: que sejamos sempre abertos à transcendência; quem perde o assombro e o encanto humildes perante a vastidão do ser não será nunca um verdadeiro poeta. E tampouco um verdadeiro filósofo, que se faça amigo e seguidor, e nunca se pretenda mestre, da sabedoria.

Tomás de Aquino, filósofo em sentido pleno, afirmava : “O nosso conhecimento, porém, é tão restrito que nenhum filósofo até hoje conseguiu compreender, totalmente, a natureza de uma mosca”. A vida humana é um intervalo entre um enigma e um mistério, dizia o Bruno. Creio e espero que, na companhia de S. Tomás e outros igualmente felizes, esteja a conhecer melhor as profundezas infinitas desse mistério; agora já sem conceitos e abstrações, mas face a face com o Ser, como ele sempre desejou.

sábado, maio 12, 2007

Papa e Clero Brasileiro: Desnível

Quinta-feira passada, no encontro do papa com os jovens no Pacaembu, fomos abençoados com um belo discurso. Lá estava ele para nos ensinar como viver; os valores e ideais de vida que merecem nossa total dedicação; a união do ser humano com Deus por meio da Fé e da Caridade. Falou também dos sacrifícios e das lutas que necessariamente fazem parte de uma boa vida, e dos perigos com os quais nos deparamos. Prazeres, riqueza, poder; todos eles coisas boas, que podem servir de caminho para a santidade, mas que, se tomados como fins em si mesmos, rebaixam-nos à condição de quase animais.

Nesse mesmo evento em que o papa nos dizia coisas tão importantes, os bispos do Brasil não encontraram nada melhor para falar (e cantar!) do que a Amazônia. Nada sobre a alma dos brasileiros; o que anima os eclesiásticos brasileiros parecem ser as aves, os peixes e a água; sem esquecer, é claro, da boa e velha “realidade sócio-econômica e política”, que marcou presença nos discursos.

O triste fato é que a Igreja no Brasil, que deveria se preocupar principalmente com o lado espiritual e moral do homem (que é também o mais importante: aquele que nos diferencia dos outros animais), tem se preocupado apenas com o material. Assim, padres e bispos passam a se comportar e falar como membros de partido político; e como não têm formação adequada nesses temas, fazem um papel ridículo, pregando soluções absolutamente ineficazes (muitas vezes perniciosas) para problemas cujas causas não entendem.

Será que imaginam estar se aproximando mais “do povo”, e dos problemas reais dos brasileiros? Será que não percebem que os principais problemas de todos os homens são exatamente aqueles que têm sido deixados de lado? Ao reduzir o homem à esfera puramente material (justificando-se com uma suposta “opção pelos pobres”), o clero brasileiro deixa de oferecer às pessoas aquilo que elas (ricas ou pobres) verdadeiramente precisam. Não é de surpreender, portanto, que os mesmos pobres abandonem a Igreja em massa, em busca de respostas em outros lugares.

A “opção preferencial pelos pobres” é uma mentira. A Igreja de fato servia aos pobres quando rejeitava essa tentação demagógica e materialista. Ao se desviar do que deveria fazer, o clero brasileiro apenas se distancia da população (quem é que vai querer ir à Igreja para falar de “realidade sócio-econômica”?) e, ao se posicionar de forma absolutamente desastrosa em questões econômicas e políticas, contribui para intensificar os problemas que proclama combater.

Se a opção dos bispos brasileiros for realmente pelos pobres, e não pelo aumento do número deles, se realmente se preocuparem com o ser humano completo, corpo e alma, então devem parar com os discursos políticos, com as “pastorais” que fazem tudo menos levar as pessoas a Deus, e deixar que os cientistas e ambientalistas se preocupem com os peixes da Amazônia. De que adiantará ter salvado a vida de alguns peixes se os homens todos se perderem? O discurso do papa aos jovens foi um oportuno lembrete a todos nós sobre quais as prioridades que devem reger nossa vida. Que tenha sido também um alerta de despertar para nossos bispos!

terça-feira, maio 01, 2007

"Não gosto desse papa. Ele é muito conservador!"

Algumas frases se popularizam e são repetidas universalmente, sem que ninguém saiba muito bem o que significam e nem como foram parar em sua mente. Isso é certamente o caso com a opinião que muitos têm sobre o papa. “Não gosto dele. É muito conservador!” – já ouvi isso de muitas pessoas, inclusive de pessoas boas e de quem gosto. Mas de onde tiraram isso? E o que querem dizer?

Dificilmente alguém que “não goste do papa por ele ser muito conservador” leu alguma coisa que Bento XVI escreveu. No máximo viu a capa da Veja na época de sua eleição ao papado, e se lembra vagamente de um certo discurso proferido em Ratisbona que ofendeu alguns muçulmanos. “Retrógrado, reacionário, fascista!” Isso mais expressa um sentimento sobre o papa do que descreve o pensamento real dele, do qual nunca se aproximaram e nem têm o interesse de fazê-lo (afinal, para quê se aproximar de algo tão obviamente reacionário?).

Sobre um ponto não há dúvida: o papa acredita e defende aquilo que ensina a Fé católica. Assim, ele desaprova o aborto, o homossexualismo e a camisinha, acredita na importância absoluta de Cristo para o ser humano, acredita que após a morte seremos julgados com base em nossa vida, etc. Podemos, portanto, chamá-lo de “conservador”, se com isso quisermos dizer apenas que ele partilha, e representa oficialmente em seu cargo, tais crenças. Mas por que isso deveria nos levar à conclusão de que ele é mau? Afinal, o juízo negativo que se faz do papa traz como nota principal a idéia de que ele, ao defender suas crenças, é uma espécie de arqui-vilão, um Darth Vader do mundo real.

Diferentemente de João Paulo II, que acreditava nas mesmas coisas mas era essencialmente bom, Bento XVI é mau. Não se tem a menor dúvida: ele não tem motivos bons para acreditar no que acredita; ele o faz apenas porque quer empurrar a humanidade para uma nova era de escuridão e de sofrimento. Como poderia haver argumentos contra a camisinha? O que ele quer é acabar com a diversão da rapaziada, e suas posições só podem ser expressão de um profundo ódio por tudo o que há de humano e espontâneo na sociedade moderna.

Essa caricatura acima desenhada é mais ou menos como muita gente vê o papa, ainda que não perceba. Ela foi criada por gente que sabia muito bem o que estava fazendo, mas a maioria dos que partilham dela simplesmente nunca pensou muito no assunto. Nunca pensou que, talvez, as crenças defendidas e representadas pelo papa tenham razão de ser; talvez elas não sejam uma mera expressão de irracionalidade e ódio pelo bem-estar humano. Tenho certeza de que se alguém ler honestamente a encíclica “Deus Caritas Est” ou o discurso do papa em Ratisbona, perderá qualquer impressão de “conservadorismo maléfico” que associe à imagem de Bento XVI.

Também não nos esqueçamos de que aquilo que Bento XVI crê, representa e defende não é de forma alguma mera opinião pessoal dele. Pelo contrário, é o corpo de crenças e valores que, gostemos ou não, constituiu o principal alicerce para o nascimento e desenvolvimento de nossa civilização. Um não-católico não acreditará, obviamente, no caráter divino do cargo do papa; ainda assim, é obrigado a reconhecer que a instituição que ele comanda, e aquilo que ela ensina, foi absolutamente essencial para a formação da sociedade na qual vive, e portanto é parte indispensável de sua própria história. Descartar o que o papa tem a dizer baseado em preconceitos sem base é, além de um ato desonesto contra um homem que defende abertamente seu ponto de vista, cortar fora a ligação com o nosso próprio passado.