sexta-feira, agosto 15, 2008

Lei seca: eficácia dúbia, incoveniência certa

É provável que a lei seca tenha algum impacto nas decisões das pessoas de guiar depois de ter bebido. Aumentou a punição (que antes era ou inexistente - para pequenas doses - ou menos severa) e, pelo que se tem dito, aumentou a fiscalização. É certo que, se um conhecido for preso, isso será para mim um poderoso indicador de que a probabilidade de ser pego não é desprezível, o que justificará medidas de segurança da minha parte (usar mais táxi ou carona, por exemplo).
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Entretanto, parece que o alarde quanto ao sucesso da nova lei foi, no mínimo, exagerado. Também, o que esperávamos? É natural que, com o terrorismo inicial com que se a anunciava, mais gente receasse beber e dirigir. Contudo, após um período de adaptação (aparentemente curto), o medo deixa de prevalecer.

Mas suponhamos que a percepção das pessoas quanto ao risco de serem punidas tenha mudado significativamente, e que isso de fato resulte num número menor de motoristas alcoolizados, e portanto numa redução do número de acidentes; se tudo isso ocorrer, terá a lei valido a pena?

Uma lei pode ser ruim por ser incapaz de atingir seu objetivo. Uma lei de salário mínimo a 1 milhão de Reais por mês (tudo mais constante), embora proponha um ideal agradável à imaginação, não atingiria seu objetivo de melhorar as condições de vida dos trabalhadores, mas apenas aumentaria o desemprego e a informalidade. Por isso, seria uma lei ruim. Outro motivo de uma lei ser ruim é ter um objetivo em si mesmo indesejável, como seria o caso de uma lei de segregação racial. Mesmo que fosse perfeitamente eficaz em atingir esse objetivo, seria, ainda assim, má.

Entretanto, é possível que uma lei tenha um objetivo bom, seja eficaz em atingi-lo e, ainda assim, não seja uma boa lei. Seria ótimo se nossas ruas fossem mais limpas. Se uma nova lei ordenasse a execução sumária e instantânea de qualquer pessoa que jogasse lixo no chão, e alocasse muitos policiais para fiscalizar seu cumprimento, provavelmente atingiria o objetivo almejado. Essa lei seria boa? É claro que não. Apesar de seu objetivo ser bom e eficazmente alcançado, os meios para alcançá-lo são por demais custosos à sociedade. Perde-se a liberdade e a segurança a um grau tão exacerbado, e a pena é tão desproporcional ao delito, que os benefícios visados são superados por males.

Mesmo supondo que a lei seca tenha alguma eficácia em diminuir mortes no trânsito (algo que os dados estão longe de mostrar...), os meios empregados são por demais custosos à sociedade. Beber alguns chopps não tem grandes impactos na direção. E beber é um hábito tão arraigado no costume popular, que abrir mão dele é altamente custoso. Um jantar romântico no qual o casal toma uma taça de vinho tornou-se impraticável.

É sempre possível diminuir um mal tirando-se a liberdade para praticar um bem. Um toque de recolher às 22:00 diminuiria muito os índices de violência noturna; mas a perda de liberdade que ele acarreta seria muito maior do que o bem conseguido. Da mesma forma, é bem possível que permitir níveis razoáveis de álcool no sangue dos motoristas aumente o número de acidentes (um reflexo levemente pior pode causar uma trombada); entretanto, esse risco levemente maior é preferível à perda da liberdade. O homem, imperfeito, sempre pode usá-la mal. Isso não muda o fato de que, sem ela, seria impossível alcançar qualquer bem.

terça-feira, agosto 05, 2008

Negando a Hipótese Deus

A ciência natural está sempre sujeita a revisões. A teoria que ontem parecia sólida pode, hoje, revelar-se imprecisa, até errada. É exatamente esse caráter incerto das teses científicas, sempre abertas a novos testes, que garante a eficácia da ciência em elucidar cada vez melhor o funcionamento do mundo.

Toda teoria científica tem, ao menos em tese, algum vínculo lógico com a realidade observável, ou seja, faz alguma previsão testável acerca do universo. Mas há também vínculos entre as diversas teorias. Se amanhã descobrirem que o Tiranossauro Rex nunca existiu, que os paleontólogos misturaram ossos de diferentes dinossauros, isso implicará mudanças na forma como entendíamos outros dados da natureza. A tese de que uma certa espécie de lagarto se alimentava dos restos de comida entres os dentes do T-Rex também terá de ser revista. Ainda assim, com ou sem o T-Rex, nossa concepção do universo permanece em larga medida a mesma; alguns ajustes serão necessários, mas a idéia geral permanecerá.

Agora suponha novos experimentos que revelem erros profundos em nosso entendimento atual da lei da gravidade. Todos os testes, e todas as aplicações da teoria na tecnologia, funcionaram por motivos casuais e não-relacionados. É algo, sem dúvida, muito improvável (embora logicamente possível). Se acontecesse, a mudança na nossa concepção de como o universo funciona seria enorme. Muitas outras teorias teriam de ser revistas; toda a física sofreria uma revolução. Sem a teoria da gravidade, todas as nossas idéias e pensamentos que pressupunham a validade da teoria antiga estariam minados.

Isso é verdade nas ciências naturais; e é ainda mais radical na metafísica, a ciência (embora não ciência empírica) que investiga, não como se dão os processos da realidade observável, mas sim a estrutura básica e fundamental dessa realidade. Quando falamos em causa e efeito, em substâncias, essências, acidentes (que são as características não-essenciais dos seres), possibilidade, necessidade, e mesmo na idéia básica de “ser”, estamos utilizando conceitos metafísicos. Aceitamos, ordinariamente, que a realidade à nossa volta seja composta de diversos seres distintos, com propriedades determináveis, que atuam uns sobre os outros em relações causais; aceitamos que cada ser humano é uma pessoa, distinta de seus pensamentos e ações (embora esses também acabem por mudar quem ela é) e com uma existência contínua no tempo. Quando encontro meu amigo depois de uma semana, ele acumulou diversas pequenas diferenças, mas ainda é a mesma pessoa.

Aceite-se essa idéia básica da realidade, e a existência de Deus segue-se necessariamente. A própria relação de causalidade já nos leva, em poucos passos, à necessidade da causa primeira. Os diversos seres contingentes, ao ser necessário. Não dá para aceitar os primeiros, sem aceitar o segundo. Isso do ponto de vista puramente lógico (da ordem do pensamento). O mesmo ocorre do ponto de vista ontológico (da ordem das coisas): se não existe Deus, se não existe um princípio absoluto criador e ordenador de toda a realidade, então não tem como a realidade ser ordenada e inteligível. E a premissa de que a realidade é inteligível está na base da própria ciência natural.

O universo sem Deus (ignorando o problema de sua existência, que deve ser encarado como pseudo-problema criado pela mente humana) é um fluxo constante de eventos. Não há substâncias, entidades, que agem umas sobre as outras; há apenas uma série de eventos e fenômenos sem nenhuma ordem entre si. É a mente que cria ordem nos dados caóticos da experiência. Nossa linguagem e pensamento, que ainda seguem a velha metafísica, estão em contradição com a realidade. A distinção entre sujeito e objeto, entre um ser e suas qualidades, são ilusórias: imaginamos a realidade composta de entidades fixas e ordenadas, quando na verdade tudo é mudança não-inteligível.

O ser humano é parte dessa mudança constante. E a concepção do homem como uma pessoa, sujeito racional com existência contínua ao longo do tempo, é tão ilusória quanto os demais conceitos metafísicos. Ele também é fluxo, de desejos e impulsos. Não há pessoa por trás. Pedro, ontem, era o aglomerado de impulsos X; hoje, o que chamamos de Pedro é o aglomerado Y, um outro estado mental. Além disso, é óbvio que o homem não é, de forma alguma, algo ontologicamente diferente do resto da realidade; é, assim, como tudo mais, um produto de forças alheias a ele. Não há escolha; não há nem propriamente ação. Os movimentos humanos seguem a mesma necessidade de todo o resto; motivos, intenções e finalidades são ilusões criadas conforme o fluxo da realidade segue seu curso. A vida humana não constitui uma narrativa; não há um “eu” contínuo sob os fenômenos, e muito menos um sujeito que altere a realidade.

Volta-se, assim, à concepção de Heráclito, filósofo pré-socrático que dizia ser impossível fazer qualquer afirmação. A realidade é como um rio que corre: sempre o mesmo rio, mas nunca a mesma água. No momento em que afirmamos algo, a realidade já mudou, e o sujeito, nós, já mudamos. Portanto toda afirmação é falsa.

Muitos ateus tratam a existência de Deus como se fosse a existência do T-rex, com poucas ou nenhuma conseqüência para o resto do universo. O grande homem invisível e poderoso que fica lá em cima pode existir ou não; tudo continua na mesma. É uma hipótese a ser testada.

Esse ser do qual falam (“super-poderoso, que tudo sabe, invisível”) não é Deus, mas apenas uma criatura imaginária. Deus é infinitamente superior a essa descrição; é o próprio princípio criador e ordenador de tudo o que existe. Não há evidência possível para sua existência, pois a existência de qualquer coisa já o prova. Se Ele não existe, então a realidade como a pensamos carece da base metafísica que precisa para se sustentar, e é muito diferente daquilo que nossa linguagem e pensamento comum representam.