sábado, dezembro 15, 2007

Pode A invadir a propriedade de D, para impedir que B mate C?

Essa é a pergunta que tem gerado polêmica na blogosfera libertária e liberal. Vide, por exemplo, os posts de Thomas Kang, Richard e Renato Drumond.

Qualquer pessoa razoável concordaria comigo: você vê um assassino a ponto de trucidar uma vítima indefesa, e sabe que conseguiria imobilizá-lo. Mas para chegar até eles terá que pisar no gramado de seu vizinho, que proibiu expressamente qualquer um, por qualquer motivo, de pisar em sua grama. O que é o certo a se fazer? Obviamente, correr até lá e salvar a vítima; depois, quem sabe, conversa-se com o dono do gramado.

Os anarco-capitalistas têm respondido diferentemente. “A propriedade é um direito natural que não pode ser violado. Portanto, não se deve invadi-la sob hipótese alguma”. Essa posição altamente contra-intuitiva, que contraria todo o senso comum, é o resultado de um pensamento pobre e restrito, que é incapaz de lidar com matizes e ponderações, aceitando apenas direitos claros e distintos, definidos a priori. Aceitar que alguém entre na casa do vizinho para impedir que ele afogue o filho na piscina é visto como equivalente a defender a tortura, a invasão do Iraque e a mutilação feminina. É a eles que respondo agora.

Qual a finalidade das leis e dos direitos? O bem dos homens: uma sociedade em que todos possam viver felizes e bem. Portanto, devem se estender enquanto, e na medida em que, contribuam para esse fim. As leis devem servir aos homens, e não os homens às leis.

O direito de propriedade é essencial à vida humana. Um grande mérito do célebre anarco-capitalista Murray Rothbard é ter provado que, mesmo para se discutir se existe ou não o direito à propriedade privada, é preciso aceitar, em alguma medida, a propriedade privada. Assim, o direito de propriedade é natural e necessário.

Mas até que ponto? Se for absolutizado, leva a injustiças e a situações que realmente não são boas. Todo anarco-capitalista concorda que permitir um homicídio facilmente evitável não seja algo bom. Mas como permitir essa pequena violação que impede um homicídio e não permitir invasões e desapropriações sistemáticas sempre que alguém o considerar benéfico? Onde desenhar a linha?

Esse tipo de pergunta só surge porque os anarco-capitalistas em geral são partidários de direitos definidos a priori e sem margem a qualquer consideração de suas conseqüências para a sociedade (embora o estabelecimento inicial que eles dão ao direito de propriedade tenha bases conseqüencialistas: “se não fosse assim, os homens não poderiam viver”).

Não há como um código legal prever todos os casos da realidade. A legislação tem que abrir espaço para que se aprenda com a prática e o costume dos povos (o que não significa que o costume legitime tudo; ele também é bom enquanto contribui para o bem dos homens). A diferença entre alguém que, no momento de emergência, usa a propriedade do outro sem pedir permissão, e alguém que rouba um carro para impressionar a namorada, é óbvia na prática, embora não seja possível expressá-la em termos puramente abstratos. A lei, que está preocupada com a vida concreta dos homens, deve levar em conta essas diferenças práticas. Permitir o primeiro caso impede muitas injustiças e evita muitos sofrimentos; permitir o segundo leva ao caos e à barbárie.

Por isso que o estudo da ciência econômica é tão importante para a organização da sociedade. É por meio da economia que sabemos o efeito de diversas possíveis leis, medidas e impostos. Para um anarco-capitalista rothbardiano a economia é irrelevante: não importam as conseqüências; o princípio da não-iniciação de agressão fornece todas as respostas a todas as possíveis questões da organização social.

Sempre repito a mesma pergunta aos anarquistas: se fosse provado que um imposto de 1 centavo sobre cada pessoa pudesse gerar uma grande melhora no padrão de vida de todos, que caso contrário viveriam em condições precárias, esse imposto deveria ser aceito? Se sim, então concordam comigo e são, na verdade, conseqüencialistas. Se não, por que sacrificar a vida e o bem da humanidade para salvaguardar um direito abstrato?

domingo, dezembro 09, 2007

Um Filme Bom - uma análise

O protagonista de “A Vida dos Outros” é um homem praticamente sem vida. Por isso mesmo, a maior parte do filme é preenchida pela vida dos outros personagens, da qual Gerd Wiesler é mero observador. E é conforme deixa de apenas observar para interferir que seu caráter se revela. Sua postura discretamente heróica dentro de um sistema mau e corrupto salva uma vida.

Wiesler não tem vida pois entregou a sua à Stasi, polícia secreta da República Democrática Alemã (RDA), da qual é membro fiel. A defesa da sociedade, e da segurança do regime socialista, são causas às quais ele se oferece incondicionalmente. Exímio interrogador e investigador, Wiesler é uma peça eficiente da poderosa máquina da Stasi, sempre pronto a identificar e desmascarar dissidentes.

A Stasi mantém os cidadãos sob total vigilância. O controle é tal que mesmo uma piada entre colegas de trabalho pode ter conseqüências brutais. Uma palavra errada arruina uma vida. Todo conhecido é um informante em potencial. Por isso, as ruas vivem vazias, e as portas fechadas. Ninguém quer falar e ninguém quer ouvir; a não ser, talvez, pela fechadura.

É esse ambiente de desconfiança e medo que Wiesler ajuda a manter. Não é, no entanto, a única, ou principal, peça da máquina. Muitos outros homens têm funções similares à dele na hierarquia construída pela Stasi. E enquanto nosso protagonista realmente serve à causa, outros, às vezes mais poderosos do que ele, utilizam-se dos mecanismos de poder para servir a si mesmos.

Apesar de ajudar a perpetuar um grande mau, Wiesler é um homem bom, que procura honestamente o bem; apenas o identificou no lugar errado. Já seu colega, o tenente Grubitz, nem sequer o procura. Não tem o mesmo grau de comprometimento com a causa; é mais tolerante e disposto a deixar passar pequenas indiscrições dos outros; mas é também mais perigoso e imprevisível quando seu auto-interesse, sua única causa, está na balança.

Grubitz e Wiesler são destacados, pelo ministro da cultura Bruno Hempf, a investigar a vida do dramaturgo Georg Dreyman em busca de algo que o comprometa. O ministro está interessado na mulher do dramaturgo, a atriz Christa-Maria. Logo, algo tem que ser encontrado.

Tendo colocado escutas por toda a casa de Dreyman, Wiesler se põe a escutar as conversas dele com a mulher. E é aí, por meio do casal, que entra em contato com anseios humanos que há muito deixara de lado. Sua existência vazia e sozinha contrasta fortemente com a convivência viva dos dois amantes. Viver pela Stasi, violando rotineiramente a intimidade e privacidade alheia, fez com que ele próprio fosse privado desses bens. E ao se dar conta disso, já é tarde: a coisa que ele mais quer, intimidade real com alguém que o ame, é algo fora de seu alcance. Uma garota de programa pode lhe dar o prazer do sexo, mas o que ele realmente quer é o que vem depois, e isso ela não pode dar.

Inicialmente, parece que essas carências se transformarão em obsessão doentia. Felizmente, não tomam esse caminho (e a leitura de Brecht é uma das causas dessa virada positiva), mas prosseguem retamente à atitude natural para aqueles por quem somos atraídos: o amor. Assim, não mais contente em apenas observar, Wiesler quer ajudar seus suspeitos. Ao mesmo tempo, percebe que o sistema ao qual ele serve destrói vidas como aquelas para satisfazer interesses sórdidos.

Dreyman e Christa-Maria, pessoas do teatro (subversivas por natureza), sabem que têm pouco espaço: vêem seus colegas mais talentosos perseguidos enquanto medíocres oportunistas brilham no cenário artístico. O sistema político premia a bajulação, e não o mérito. Revoltado, o dramaturgo entra para a subversão, e planeja um artigo bombástico a ser publicado no Ocidente. Assim, é o próprio caráter totalitário do regime comunista que gera a oposição cuja repressão é a justificativa desse totalitarismo. A Stasi, indiretamente, produz os dissidentes que persegue.

Enquanto Dreyman se revolta, Christa-Maria se submete: cronicamente insegura, procura em anti-depressivos e na opinião alheia a solidez que lhe falta. Essa falha de caráter a torna volúvel. Sob pressão, aceita ser amante secreta do ministro Hempf.

Fingindo-se fã da atriz, Wiesler convence-a a ser firme em seus valores, e não mais ceder ao ministro. Esse ato de ajuda desencadeia um processo inexorável: presa (por seus remédios ilegais), Christa-Maria é interrogada sobre as atividades subversivas de seu marido. É Wiesler que, vigiado por seu superior, a interroga. Se na primeira conversa a havia convencido a fazer o que é certo, nesta convence-a (apesar de tentar sugestioná-la ao contrário) a delatar seu marido.

Wiesler toma, então, uma decisão que selará o fracasso de sua operação e ruína de sua vida. Mas é a decisão certa. Desperto para a dignidade da pessoa humana, ele não pode permitir que o sistema do qual faz parte destrua a vida de alguém, como fizera com a sua. O amor à humanidade, abstrata, não justifica que se passe por cima de pessoas humanas concretas.

No final das contas, o filme é uma bela incitação à prática do bem. Não importa o quão fundo tenhamos descido, ou quanto tenhamos dado e perdido perseguindo fins maus. Há uma coisa que nunca poderá nos ser tirada: a capacidade de se fazer o bem. Por mais que se viole a privacidade, a consciência humana permanece inviolável.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Uma Jóia do Pensamento Econômico

“...E então, na década de 1870, com a revolução subjetivista, descobriram que o valor dos bens é determinado pela utilidade marginal, ou seja, pela satisfação de desejos humanos, e não pela quantidade de trabalho, como se pensava antes.” Errado, opinião popular! A tese subjetivista era, desde muito tempo, amplamente defendida; foi a tese do valor-trabalho que constituiu uma triste guinada para o lado errado na economia (prova de que a ciência nem sempre progride). Apresento uma evidência.

Vejam esse autor que, antes mesmo de Adam Smith nascer, tinha uma teoria já bastante refinada do valor. Cito as passagens mais notáveis de seu “Tratado sobre as compras e vendas”.

“Deve-se dizer que o valor das coisas pode ser tomado sob dois aspectos. Sob um primeiro aspecto, segundo a bondade real da natureza e, assim, o rato e a formiga valem mais do que o pão, pois que aqueles possuem alma, vida e sensação, enquanto o pão não possui. Sob um segundo aspecto, atribui-se valor às coisas segundo a utilidade que elas têm para nós e, nesse sentido, quanto mais algo é útil para nosso uso, tanto mais é valioso e, sob este aspecto, o pão vale mais que o rato ou o sapo. E como os atos de vender e comprar ordenam-se às necessidades da vida humana, e são também eles certas necessidades, por isso, neles o valor dos bens é considerado e calculado do segundo modo e não do primeiro.

Além disso, deve-se saber que tal valor de uso – ou valor das coisas venais – é calculado de uma tríplice maneira.

a) Em primeiro lugar, na medida em que a coisa, por suas qualidades intrínsecas e suas propriedades, é mais apta e capaz de satisfazer nossas necessidades. Deste modo, um bom pão de trigo é mais útil às nossas necessidades do que o pão de cevada, e um cavalo forte é mais útil para a tração ou para a guerra do que um asno ou um cavalo trôpego.

b) Em segundo lugar, pelo fato de que as coisas, pela sua raridade e dificuldade de serem encontradas, tornam-se mais necessárias para nós, na medida em que, devido à carestia delas, tornam-se mais necessárias e temos menos possibilidade de obtê-las e usá-las. Assim, por exemplo, o mesmo cereal, no tempo de carestia, de fome ou de penúria, vale mais do que no tempo da abundância geral. Do mesmo modo, os quatro elementos – a água, a terra, o ar e o fogo -, por causa de sua abundância, possuem para nós um preço mais vil do que o ouro e o bálsamo, embora eles sejam, em si mesmos, mais necessários e úteis para nossa vida.

c) Em terceiro lugar, avalia-se segundo o menor ou maior beneplácito de nossa vontade em possuir tais coisas. Ora, “usar”, no sentido aqui entendido, significa tomar ou possuir uma coisa segundo o arbítrio da vontade; assim, uma parte significativa do valor das coisas utilizáveis é calculada devido ao beneplácito da vontade, que se compraz mais ou menos no uso desta ou daquela coisa e de tê-la à disposição. Sob este prisma, um cavalo, um ornamento ou um brinquedo agrada mais a um indivíduo que a outro e, em vista disso, um aprecia muito e considera como preciosa para si uma coisa que outro toma como vil, e vice-versa.

Um tal cálculo de valor das coisas utilizáveis dificilmente, ou nunca, pode ser feito por nós, a não ser de forma conjetural ou provável. De fato, o valor não se determina de modo exato, com um critério ou medida absoluta, que não admite mais nem menos, mas antes com uma devida amplidão, dentro da qual as cabeças dos outros homens e os juízos humanos diferem na avaliação. (...)”

Aqui o autor indaga se se deve impedir que os preços subam em épocas de escassez, e conclui que não:

“A escassez geral de alguma coisa provoca de diversos modos a carestia geral. Primeiro, porque quem possui tais bens desfaz-se deles mais dificilmente e sua colocação no mercado torna-se mais cara para os compradores ou para o possuidor. Em segundo lugar, porque se, naquele momento, o preço não for aumentado, isto viria em prejuízo do bem comum, pois os possuidores não quereriam de tão boa vontade vender tais bens aos que não os possuem e aos necessitados e, com isso, não se proveria a escassez geral da melhor forma. (...)”

Para tal autor, o “paradoxo da água e dos diamantes”, que confundiu tantos economistas no século XIX, não apresentava grandes mistérios. Ele mesmo o havia resolvido, com água e ouro.

É bem verdade que falta à análise dele o pensamento marginal, da última unidade. Essa peça final da teoria correta do valor só viria mesmo com os marginalistas.

Mais surpreendente é que o autor das linhas acima era Pedro de João Olivi, um frade franciscano do século XIII. Sim, da “obscurantista” Idade Média. O fato é que a grande maioria dos escolásticos medievais (inclusive figuras de peso como S. Tomás de Aquino e S. Bernardino de Siena) defendiam a teoria subjetiva do valor. E mais: para a grande maioria deles, o preço justo era o preço de mercado.

A História do Pensamento Econômico contemporânea tem muito a ganhar se ousar olhar para o passado, além dos fisiocratas e mercantilistas.

Mas, agora, que finalizei minha monografia, espero passar um tempo sem pensar em economia medieval; e economia em geral!

fonte:
de Boni, Luís Alberto. Filosofia Medieval - Textos. Porto Alegre. EDIPUCRS. 2005.

terça-feira, novembro 20, 2007

Sobre o Racismo

Dia da consciência negra! Dia de combater o racismo; uma nobre causa. Já está nas livrarias o novo livro de Antônio Risério sobre a questão racial no Brasil, que apresenta uma visão original sobre o tema. Finalmente uma voz de peso e autoridade contra o movimento negro militante que espera combater racismo com mais racismo.

Também eu vou falar sobre o racismo; mas nada de cotas neste blog. Se já sou contra leis que proíbam empresas de discriminar por cor na hora de contratar, o que dizer de leis que ditem a cor a ser contratada? É o debate mais amplo do racismo que me interessa; mesmo porque acho que ele está, ironicamente, repleto de preconceitos.

Há algo, chamado “racismo”, que todos, inclusive eu, concordam ser condenável. Uma definição dele que considero muito boa é “ódio racial”; racismo é odiar (isto é, querer o mal de) alguém por sua cor de pele, tipo de cabelo, formato dos olhos, etc, ou então por traços culturais de sua etnia. É algo desprezível deixar que um traço totalmente acidental da pessoa, que em nada muda sua essência humana, nos faça tratá-la de forma sub-humana. E não há dúvida de que isso exista no Brasil de várias formas, embora eu, branco, não o sinta na pele.

Contudo, o termo “racismo” é usado de forma muito mais abrangente, o que é prejudicial na luta contra ele. Qualquer afirmação que faça referência à cor de pele já é suspeita de racismo. Afirmar que as diferentes raças (ou sub-raças, ou o nome que se preferir) possam ter diferenças de aptidão é proibido. Apontar diferenças de comportamento é também muito mal-recebido. A situação é tal que um branco já não pode sequer se referir a alguém como negro sem criar um certo constrangimento.

Uma coisa é ódio racial; outra, é atribuição de diferenças. Essa pode ser conseqüência daquele; é o caso, por exemplo, de alguém que, por nutrir ódio contra uma raça, apóie pesquisas que mostrem essa raça como menos inteligente. Mas nem todos são assim; uma pessoa pode legitimamente crer que uma raça seja menos inteligente (crença que pode ser verdadeira ou falsa) sem por isso ser culpada de racismo (ódio racial). O mesmo vale para juízos muito mais prosaicos: ao se ver um jovem japonês, crer que ele é dos melhores alunos da sala. Claro que a crença pode estar certa ou errada com relação ao indivíduo em questão; mas em geral os japoneses são de fato bons alunos, e portanto o juízo discriminatório tem razão de ser. E quem apostaria no branco numa luta de boxe?

Que isso não leve ninguém a fazer juízos sérios sobre o caráter de outro com base apenas em freqüências estatísticas. Mas quando nada sabemos ou podemos saber sobre o indivíduo, ignorar a experiência passada e acumulada é simplesmente tolo.

Outra coisa que não é racismo é considerar mais bonitas pessoas dessa ou daquela raça. Não há nada de errado com o fato de uma pessoa preferir aquelas com cuja aparência e jeito de ser já está mais habituado pelo convívio; pelo contrário, é perfeitamente normal, e não motivo de vergonha ou que exija mil explicações. E são dessas percepções de diferença que surge o humor, uma das formas que os homens conhecem de lidar com o que é diferente e torná-lo familiar. Embora possa ser excessivo ou mal-utilizado, não é, em si, condenável; e se a luta contra o racismo nos obriga a obliterar o senso de humor, há algo de errado nessa concepção de racismo.

Grande parte da luta do movimento anti-racista, cuja motivação inicial é boa, é gasta com iniciativas tolas: impedir que se discrimine o que é de fato diferente. Pois é claro que existem diversas diferenças entre as raças: jeito de ser, temperamentos, aptidões físicas e intelectuais, etc. Ao se impedir que elas sejam publicamente expressas, sem constrangimento e sem ódio, mata-se as possibilidades de convivência harmônica. Sem abertura, liberdade e senso de humor não se acabará com o verdadeiro racismo; antes, ele aumentará, escondido por detrás de relações cada vez mais rígidas e de divisões cada vez mais profundas.

domingo, novembro 11, 2007

Ron Paul: esperança para a política americana; e para a brasileira?

Odeio política. Dão-me raiva a ignorância e as mentiras dos candidatos, e indignação a igualdade das propostas. Toda eleição é a mesma farsa: ter que escolher, dentre poucos e péssimos, aquele que parece ser o menos nocivo ao país. Neste ano, no entanto, a política americana tem me entusiasmado; e isso por um motivo apenas: Ron Paul, do partido Republicano.

Ron Paul é o único candidato que defende o Estado mínimo: rejeita tanto as intervenções estatais internas (assistencialismo) quanto externas (guerras). Se eleito, entre outras coisas, reduzirá drasticamente a carga tributária, eliminará o imposto de renda, abolirá o Banco Central (volta ao padrão-ouro) e retirará as tropas do Iraque. É defensor do direito à posse de armas e contrário ao aborto.

Ao mesmo tempo, é o único que, em sua trajetória política, demonstrou ser um homem de princípios. Em sua carreira de congressista, sempre votou conforme seus ideais, contra qualquer proposta que não encontrasse respaldo explícito na Constituição americana, o que lhe rendeu o apelido de “Dr. No”. Não muda suas posições conforme o vento, diferentemente da grande maioria de ambos os partidos.

Sem dúvida, é um candidato radical; e por isso mesmo entusiasma. Vence todas as pesquisas online. Seus próprios eleitores fazem, voluntária e extra-oficialmente, a maior parte de sua campanha. Tem sido recordista em angariar fundos (dia 05/11, sua campanha recebeu US$ 4 milhões em doação, tudo de apoiadores autônomos). É ainda pouco conhecido, e por isso vai mal nas pesquisas convencionais por telefone, mas quem o conhece costuma gostar dele; e quem o apóia, o faz por convicção, e não para evitar o mal maior.

Por isso, a grande mídia estabelecida tem feito o possível para ignorá-lo. Evitam falar sobre ele ou dar-lhe qualquer tempo de exposição. Acusam seus eleitores de “melar” pesquisas online, “straw polls”, encontros políticos, etc. Enfim, seria tudo uma agitação de uns poucos extremistas que não mereceria atenção. Mesmo a The Economist, revista supostamente liberal, tem se calado. Quando falou de Ron Paul, foi para dar o exemplo de um sonhador tolo mas inspirador, cujo módico e inesperado sucesso aponta para um idealismo que outros candidatos deveriam emular. Já em um “leader” de 20/10, de subtítulo “American conservatives need to rediscover the charm of the small government”, nem uma palavra. Falam das “propostas promissoras”, “market-oriented”, de Giuliani e McCain para reformar a saúde; de Ron Paul, o único verdadeiro conservador e defensor do Estado mínimo e do mercado, nada.

Mas os fatos já estão grandes demais para serem ignorados. US$ 4 milhões em um dia, sem qualquer organização por parte da campanha oficial, é inédito; agora não são meros votos em simulações, mas dinheiro real. E dinheiro fala alto.

Mesmo contra toda a pressão ideológica e todos os interesses poderosos contrários à sua candidatura, Ron Paul tem tido desempenho surpreendente; grupos de apoio têm sido criados não só nos EUA, mas no mundo todo (até no Brasil). Sua vitória, embora improvável, é perfeitamente possível; será mais difícil conseguir a nomeação Republicana do que vencer os Democratas. Com efeito, diz-se que ele é o único Republicano com chances de vencer Hillary.

Mas por mais que a política americana nos anime, ela nos afeta apenas indiretamente. Estado mínimo, incentivo aos poupadores e empreendedores (os motores do crescimento), fim das tarifas e regulamentações, embora muito bons para os EUA, são ainda mais necessários aqui no Brasil, que é um país pobre. Quando surgirá um Ron Paul brasileiro? E, se tal pessoa existisse, conseguiria algum apoio? Como mudar nossa situação institucional, na qual pobreza, ignorância e dissimulação garantem que os piores permaneçam no poder?

quinta-feira, novembro 01, 2007

Pirataria: Crime ou Utilidade Pública?

Se as gravadoras acham que conseguirão impedir a pirataria e a cópia de música pela Internet, podem perder as esperanças. Também duvido que as campanhas de ética terão muito efeito. Para começar, usam argumentos furados. “A produção de um CD oficial utiliza seis trabalhadores; a do CD pirata só um” (isso foi veiculado numa propaganda anti-pirataria na TV há um tempo atrás). Se isso é verdade, é motivo para comprar CD pirata: é uma indústria mais eficiente, que libera mão-de-obra para trabalhar em outros setores da economia, satisfazendo demandas da população que antes não eram satisfeitas; a sociedade enriquece.

“Ao comprar CD pirata, você financia a prostituição, as drogas, o terrorismo internacional e, de quebra, um traficante seqüestra e mata um jovem da classe média”. Ao se comprar CD pirata, financia-se o tráfico de CDs piratas. Não outros negócios. Alguém poderia dizer que o vendedor vai usar o dinheiro conseguido com o CD para fazer outras coisas. Mas nesse caso a mesma objeção vale para todas as atividades. Se o seu médico usa seu dinheiro para comprar drogas, então você, ao se consultar com ele, financia o tráfico de drogas. A não ser em casos em que haja algum tipo de proximidade pessoal e o consumidor saiba o que o produtor faz com o dinheiro, não há como responsabilizar o consumidor.

É claro que as gravadoras usarão todos os meios disponíveis para reservar para si o mercado da música, inclusive influenciar a legislação e construir argumentos espúrios para desqualificar moralmente a concorrência. Que isso não nos iluda fazendo crer que a razão realmente esteja com elas.

Não nego que haja um problema moral com a venda de CDs piratas. Afinal, parece injusto que um vendedor lucre com o trabalho de uma artista, que não recebe nada. Ele tem que ser, de alguma forma, pago. Mas e a gravadora? Qual a função dela agora?

Antes do file-sharing e dos CDs graváveis, a gravadora tinha um papel fundamental: produzir as cópias dos discos de seus artistas e vendê-las. Agora, qualquer um faz uma cópia a custo baixíssimo. Por que um artista não poderia negociar diretamente com um estúdio de gravação, gravar seu material e a produção dos CDs físicos fica a cargo de milhares de produtores e usuários?

A máquina de Xerox, ao contrário do que se temia, não destruiu o mercado editorial. O produto do Xerox é muito inferior ao livro comprado na loja, e, portanto, as editoras ainda desempenham a função importante; não precisam, por ora, temer que a demanda por seu produto acabe. Já o produto das gravadoras em pouco se diferencia do CD pirata; e é muito mais caro. Eu nunca comprei CD pirata, e ainda compro oficiais; prefiro uma caixa direita, com encarte, foto nítida, CD de qualidade. Mas a grande maioria das pessoas não liga para esses detalhes; o que as gravadoras têm a lhes oferecer? Aparentemente nada, ao menos não ao preço que cobram hoje em dia; se assim não fosse, não precisariam da lei para proteger seu negócio.

Ou encontram algum serviço de qualidade que possam oferecer aos consumidores, ou saem do mercado. É inadmissível que sustentemos essas mega-empresas apenas porque a lei nos obriga, e que elas tenham demanda apenas por possuir o monopólio legal, por décadas (unidade de tempo que, com a tecnologia atual, é totalmente descabida), dessa ou daquela música.

Em todo caso, com lei ou sem lei, já não há mais volta. A cópia de música é uma realidade e vai apenas crescer. Resta a nós elaborar leis que se adeqüem a isso (e não tentar forçar a estrutura produtiva a se adequar a leis anacrônicas) e que permitam, se é que isso será um problema, que artistas sejam remunerados por seu trabalho.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Pelas Sendas da Economia

Finalmente acabaram 2 dias de extrema preocupação. Foi-se a ANPEC, prova para quem quer fazer mestrado de economia no Brasil. Quanto ao mestrado, já desisti dele há alguns meses (se bem que, dependendo da minha nota na ANPEC, quem sabe...?). As matérias pelas quais fui avaliado dão uma boa idéia de como é o mestrado, e de como é a ciência econômica hoje em dia.

Matemática e estatística. É nisso que se resume a economia acadêmica nos dias de hoje. Não devemos confundir as duas coisas; pelo contrário, são opostas enquanto métodos. A matemática, dedutiva e independente da experiência; a estatística, pura indução baseada nos dados empíricos.

Seguindo o que se chama de “abordagem neoclássica”, a ciência econômica tem como objetivo fazer previsões. É essa a definição de ciência, oriunda do positivismo, com a qual trabalha a maioria dos economistas: formular hipóteses que façam previsões empiricamente testáveis sobre a realidade. Por meio do teste da experiência, a hipótese pode ser rejeitada (se o que ela previr não ocorrer) ou ser aceita (na verdade não é tão simples assim, mas para este texto basta).

Para as ciências naturais isso é muito direto. Apesar de todos os problemas epistemológicos, não há muita dúvida de que esse método rende bons frutos. Mas e na economia? O economista depara-se com muitos problemas: os comportamentos humanos são altamente complexos e variáveis, e não parecem obedecer a nenhuma lei; há sempre incontáveis variáveis em operação; é impossível fazer experimentos em laboratório ou controlar as condições de um possível experimento.

O economista matemático (que é quem está por trás de toda a microeconomia) reconhece a impossibilidade de se lidar com a realidade em toda sua variabilidade. Mas, argumenta ele, isso seria, em todo caso, inútil; o objetivo da economia deve ser criar modelos que resultem em previsões precisas, usando o mínimo possível de informação. O mapa bom simplifica e diminui muito a cidade que ele visa mostrar; e se não fizesse isso não seria um bom mapa, seria uma fotografia gigantesca que em nada facilitaria a navegação.

Como proceder, então? Assumamos algumas hipóteses simplificadas sobre como se comportam as pessoas. Essas hipóteses serão falsas, não há dúvidas; mas serão jeitos de representar a realidade com uma certa simplicidade. Suponhamos que os homens agem de acordo com funções de utilidade, ou seja, que a preferência deles obedeça a certas equações matemáticas. Suponhamos também que eles tenham informação perfeita sobre o estado do mercado, que tenham os mesmos gostos, etc. Em suma, façamos um monte de suposições com o intuito de construir modelos matemáticos que nos dêem alguma base para fazer previsões sobre como a realidade se comportará. Assim, o mercado de produção agrícola comporta-se mais ou menos como um modelo de competição perfeita: livre entrada de competidores; produtores se deparam com preços dados de seus produtos, os quais são incapazes de alterar; a margem de lucro econômico sempre se aproxima do zero. Tudo isso é representado matematicamente. Se tivermos alguma idéia de come é a curva de demanda da sociedade, poderemos concluir quantas unidades do bem serão produzidas.

Isso foi só um exemplo. Para os economistas deve ter sido desnecessário, e para os não-economistas não deve ter ficado muito claro, mas sigamos em frente: o grande problema dessa metodologia toda é que ela tem deixado a desejar nas previsões, que são o objetivo dela. O caráter irreal e simplificador de suas suposições também garante que ela não seja um bom jeito de se entender como o mercado funciona na realidade.

Uma outra corrente, de importância crescente, toma o caminho oposto: o da estatística. As teorias abstratas dos economistas são furadas; partem de pressupostos falsos, fogem da realidade. É preciso ater-se a ela; é preciso testar todas as premissas e ficar só com o que se verifica nos fatos. É preciso parar de fazer “economia de poltrona” e passar a fazer econometria. É com base na correlação entre os dados observados e coletados que poderemos estabelecer relações de causa e efeito entre as diversas variáveis operantes no mercado; claro, algum insight puramente econômico sempre permanecerá, mas só teremos modelos úteis se abandonarmos a especulação abstrata e partirmos para a mensuração das variáveis. O que afeta a taxa de câmbio? Só uma regressão econométrica, que compare o comportamento da taxa de câmbio e o de muitas outras variáveis, poderá nos dizer. E mesmo esse resultado será fugaz; em outro período, as variáveis relevantes podem ser outras.

Em outro texto daqui já dei argumentos contrários ao uso que se tem feito da estatística como substituto da ciência econômica. Mas também não sou partidário da economia matemática neoclássica. Para onde ir? Existem outros caminhos? Existem. E eles se tornam mais claros ao questionarmos o objetivo fundamental da economia. Fazer previsões quantitativas precisas sobre o mercado e seus participantes, cientificamente, é impossível; talvez alguns discordem, talvez com razão. Em todo caso, ainda que não seja uma meta impossível, digo que não é a única meta que vale a pena ser perseguida. Mais importante e interessante do que fazer previsões quantitativas sobre os preços, a inflação e o câmbio, é entender como funciona o mercado. Qual o papel que os diversos participantes, preços e outra variáveis têm em coordenar a produção e distribuição de bens e serviços? São essas as questões que nos levam a todo um “novo” jeito (na verdade, é o jeito original) de se pensar a ciência econômica, já bem distante da corrente dominante. E com esse entendimento, estaremos inclusive em melhores condições de tentar prever o futuro.

domingo, outubro 14, 2007

Bertolt Brecht é um lixo

Sinto muito a todos que gostam dele, mas é um fato. É puro lixo. Não digo isso à toa. Ontem fui ver “Círculo de Giz Caucasiano”. Quase quatro horas perdidas (mais o horário de verão, cinco!). Não é minha primeira peça dele; já vi outras duas, que, por serem mais curtas, foram menos insuportáveis.

O grande “lance” do teatro de Brecht é fazer uma peça na qual os espectadores não se envolvam emocionalmente com a trama; assim, poderão ser observadores frios e racionais da situação apresentada. A situação consiste em relações de exploração levadas até o extremo. Por meio da ironia barata, toques de humor grosseiro, pseudo-discussões e recursos cênicos não-realistas, o espectador vê claramente o horror que se desenrola à sua frente, mas todos em cena reagem como se fosse uma relação cotidiana habitual. Sairá do teatro convencido de que a sociedade na qual ele próprio vive é sustentada sobre aquele tipo de exploração, tão bem explicitada pelo gênio de Brecht; e a vida só segue normalmente porque todos mantêm aquele mesmo cinismo dos personagens da peça.

O Círculo de Giz foge um pouco a esse modelo, pois é uma peça na qual vence o bem, a razão; é, na verdade, uma peça dentro de uma peça: depois de resolver racionalmente uma questão sobre a propriedade de uma terra, dois grupos de camponeses da URSS, para comemorar a solução pacífica, encenam essa peça, sobre uma mulher pobre, Gruxa, que, em meio a uma revolta, adota o filho bebê do governador, cuja mãe o abandonara. Depois de muito sofrer para cuidar do menino por anos, Gruxa é obrigada a ir a tribunal, pois a mãe biológica aristocrata voltou e o quer de volta.

O que é mais difícil de engolir na peça é a superficialidade dos personagens. Aliás, nem é possível chamá-los assim. São estereótipos, caricaturas de quinta categoria. A boa mulher pobre que se sacrifica pelo menino; a aristocrata desprezível; a camponesa aburguesada; o soldado valente e fiel; o príncipe ambicioso. Em uma linha: se pobres, santos; se ricos, demônios. Não poderia faltar ainda um padre debochado e aparentemente bêbado, que, apesar de sem graça, foi quem arrancou mais gargalhadas da platéia na curta cena que lhe coube (há algum motivo pelo qual piadas idiotas se tornem hilárias se feitas com a Igreja?).

A total ausência de personagens tornou o que poderia ter sido um enredo interessante em pura imbecilidade. Diferentemente do que eu esperava, não faltaram cenas de sentimentalismo meloso e barato, tentando em vão arrancar alguma lágrima da platéia; uma novela mexicana pareceria refinada em comparação. Fica claro que essa peça não passa de um panfleto ideológico das idéias de Brecht, e sua população-alvo devia ser os menos educados e incultos da sociedade; graças a Deus, o povo não está nem aí para Brecht e suas asneiras. São os intelectuais que fazem o papel vergonhoso de elevá-lo a gênio do teatro.

Já próximo do fim, delineou-se o que pareceu ser um raio de esperança. Depois da revolta na cidade, foi instaurado um juiz plebeu, Azdak, um pequeno intelectual da cidade, homem esperto, meio corrupto, mas, apesar disso, de coração bom. O novo juiz procede de forma chocante: aceita os subornos dos ricos, mas ao fim do julgamento sempre favorece a parte pobre, por mais que ela seja culpada. Um pobre é acusado de ter roubado uma vaca e um presunto; ele afirma que eles apareceram em sua casa por milagre, obra de “S. Banditus” (percebem o humor fino?). Azdak termina não só por declarar o réu inocente como pune os querelantes (ricos proprietários) por impiedade ao se negarem a aceitar o milagre. Fiquei surpreendido; não esperava de Brecht esse tipo de insight: mesmo com os pobres “no poder” (temporariamente), a injustiça continuaria a reinar, dessa vez viesada para o lado oposto.

Nada disso! Ao término da trama, após Azdak dar a guarda do menino a Gruxa, nos é revelado, com toda a seriedade e gravidade de fala conclusiva de peça, que o período no qual ele foi juiz foi para sempre lembrado como um no qual a verdadeira justiça reinou.

Viva! A justiça se fez! O menino ficou a mulher que verdadeiramente cuidou dele! A terra ficou com a população campesina que melhor cuidou dela, melhorando-a com inovações tecnológicas! Fora com os velhos conceitos burgueses de direito e propriedade! A cada um de acordo com sua habilidade! Assim termina a peça feita para ludibriar camponeses e operários; mas são apenas os intelectuais burgueses que a assistem e a consideram “genial”.

Faça um favor a você mesmo e não assista nada do Brecht. Pode ter certeza de que é muito ruim. Não é só porque uma peça é apologia do socialismo soviético que ela tem o direito de ser uma porcaria.

domingo, outubro 07, 2007

Tropa de Elite - Resenha

Acabei de ver Tropa de Elite. Como a Internet ferve com comentários sobre ele, aqui vai minha resenha.

Cinematograficamente, deixa a desejar. Depende excessivamente da narração em off para explicar a história e explicitar os pontos que as cenas deveriam estabelecer por si mesmas (um vício de todo o cinema nacional, aliás). Outro ponto fraco são os diversos elementos dramáticos extrínsecos à trama adicionados só para se obter um efeito sentimental, sem a articulação necessária com o resto da história (o bebê a nascer, o policial corrupto que serve de alívio cômico, etc). No quesito propriamente estético, outras falhas: diversas cenas são marcadas por um artificialismo claro; chamo atenção à aula de filosofia na faculdade (as opiniões e material ministrado estão corretas; mas quem está na faculdade sabe que aula de filosofia não tem aquela naturalidade e espontaneidade). O jeito de filmar e de contar a história não têm nenhuma inovação, e não se destacam por nenhum feito estético. Como filme, não há dúvidas de que Cidade de Deus foi superior.

No entanto, o conjunto é competente, e se não tem grandes méritos, também não é um obstáculo ao conteúdo, que é, no final das contas, o motivo da sua notoriedade. A grande sacada do filme é mudar o ponto de vista: Cidade de Deus tomava o ponto de vista da favela e seus moradores, com os quais o espectador logo se acostuma e identifica; o policial é sempre um personagem externo e distante, que entra na narrativa apenas quando entra na favela, e assim que deixa o morro deixa também o filme. Já em Tropa de Elite, o foco narrativo está nos policiais; é a favela que constitui o ambiente hostil e caótico (um verdadeiro campo de guerra) no qual eles e nós, que os acompanhamos, temos que entrar inúmeras vezes e do qual, assim que saímos, sentimo-nos aliviados.

Dessa mudança de ponto de vista decorre uma mudança de perspectiva moral. Se em Cidade de Deus e similares deparamo-nos com uma justificativa dos traficantes, que são no fundo pessoas que, sem qualquer perspectiva de vida, viram-se forçados a seguir por um caminho desastroso, agora encontramos uma justificativa da brutalidade policial: ou os poucos policiais bons torturam e executam, desprezando a lei positiva e convenções morais, ou a luta contra o tráfico será inútil.

A corrupção dentro da PM é onipresente; os policiais, mal-treinados e mal pagos, fazem acordos com traficantes para viver em paz e lucrar algo. Se um policial honesto tenta, pelos meios legítimos e institucionais, fazer o bem, é barrado pelo descaso da burocracia interna, toda ela corrompida. Se burla essas regras e frustra os esquemas de seus colegas, é logo eliminado. Sua única opção é integrar-se à tropa de elite, o BOPE, que une treinamento intensivo de guerra e zelo total em combater os traficantes.

Os policiais do BOPE têm duas opções: torturar e matar ou deixar o tráfico impune. Eles fazem sua escolha. Por mais que respeite os policiais e entenda sua situação, não posso compactuar com ações que os tornam pouco diferentes daqueles que eles combatem.

Muitos dos entusiastas do filme gostam de ver a execução de traficantes na tela. Dada a impunidade reinante e, pior, a defesa da criminalidade pelos intelectuais e ricos “conscientizados” em geral (cuja ridicularização é o ponto alto do filme), simpatizo com esse sentimento. Mas traficante também é ser humano; e a frieza e sadismo com que o BOPE tortura e mata são injustificados. Não é que os traficantes não mereçam morrer; é justo que muitos deles morram, por seus crimes hediondos; mas não é justo que os policiais os matem (fora de combate, claro). O próprio filme reconhece que há algo de errado; quando uma mãe, que perdeu o único filho, “fogueteiro” do tráfico, vem exigir ao capitão Nascimento que ele lhe entregue o corpo para que possa enterrá-lo, lembramo-nos que traficante também tem mãe, e que, por pior que tenha sido, ainda conserva sua dignidade humana. Comemoramos sua morte porque a sociedade agora está mais segura, e a justiça foi feita; mas, acima disso, lamentamo-la, pois é um homem que foi muito menos do que poderia ter sido, e de certa forma falhamos em ajudá-lo.

Ao mesmo tempo, os próprios policiais do BOPE transformam-se em pessoas muito piores do que eram. Matias, que estudava para se tornar advogado, acaba selando seu destino com uma execução sumária, destituído de todos os traços de caráter que antes faziam dele um ótimo ser humano. Já não é mais o amor à justiça que o move, mas o simples ódio aos injustos, dos quais ele, sem perceber, passa a fazer parte. Já o capitão Nascimento, incapaz de conciliar a vida na tropa com a vida familiar, vê sua própria saúde mental e sua família desmoronarem. O filme reconhece todas essas realidades decorrentes da vida no BOPE, mas ainda assim aceita-as como o preço pago para se fazer justiça.

E cabe o juízo: os meios empregados pelos policiais do BOPE atingem seus objetivos? A sociedade fica mais segura com seus ataques? Parece que não. Um traficante a menos não significa nada. Enquanto existir a demanda pelas drogas, o tráfico vai existir. E enquanto ele for proibido, vão existir as gangues (assim como existia a máfia americana com as bebidas). Não tenho nada além de desprezo por quem procura justificar o banditismo ou ainda demonizar a polícia, baseando-se em lamentáveis filosofias da moda (Nietzsche, Deleuze, Foucault eram os temas das aulas na faculdade de ricos no filme – tristes bases para se formar opiniões). Mas abdicar de toda a preocupação ética e aderir a um pragmatismo desumano em busca de resultados também não é a saída. Não são as condições sociais que obrigam os homens a cometer crimes; criminoso não é coitadinho. Mas nem por isso deixa de ser gente.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Uma pedra tão pesada que nem mesmo Deus pode levantá-la

Pode Deus criar uma pedra tão pesada que nem Ele consiga levantar? Se Ele puder, então terá criado uma pedra que não consegue levantar, e portanto não é onipotente. Se não puder, então há algo que Ele não pode criar, e portanto não é onipotente. E como Deus é, por definição, onipotente, Deus não existe.

Esse argumento é surpreendentemente popular, e conta com muitas versões (até mesmo nos Simpsons: "um burrito tão quente que nem Deus seria capaz de comer"). A maioria das pessoas não o leva a sério; parece ser mais uma brincadeira. Mas, ainda assim, tentar responder a esse argumento nos leva a considerar questões importantes sobre o que é a onipotência, sobre a linguagem e sobre a realidade das coisas. A brincadeira torna-se uma boa oportunidade para considerarmos coisas mais sérias.

O grande problema do argumento está na pedra: uma pedra “tão pesada que nem Deus possa levantá-la”. Deus é onipotente. Isso significa que, qualquer que seja o peso de uma pedra, Ele pode levantá-la. Portanto, é correto dizer, de toda e qualquer pedra, que ela pode ser levantada por Deus. Isso é uma propriedade que pode ser atribuída a todas as pedras.

Assim, falar em uma pedra tão pesada que nem Deus possa levantá-la é falar de uma pedra que, ao mesmo tempo, pode e não pode ser levantada por Deus. Isso é, obviamente, uma contradição.

Um ser cuja definição contenha uma contradição não pode existir. Mais do que isso: ele não pode sequer ser pensado. Uma pedra a qual Deus não possa levantar é equivalente a um solteiro casado ou a um círculo quadrado. Não existem, nem podem existir, sequer como pensamentos, pois envolvem em si noções contraditórias, que não podem ser unidas. As expressões “solteiro casado” e “pedra que nem Deus pode levantar” apenas parecem se referir a algo, mas não passam de seqüências de sons sem sentido algum. “Pedra que nem Deus pode levantar” e um ruído incoerente qualquer, digamos “m%kle#dè”, significam a mesma coisa: absolutamente nada.

Pode Deus, então, criar a tal pedra? Não. Isso significa alguma limitação de seu poder? Não, pois essa suposta pedra revelou-se, após uma análise um pouco mais profunda, não ser nada. O que significa ser onipotente? Ter em si, plenamente realizadas, todas as potências. Em outras palavras: poder fazer tudo. O fato é que a “pedra que não pode ser levantada por Deus” não faz parte do “tudo”, do conjunto dos seres; é nada, conjunto-vazio.

Portanto, Deus não pode criar tal "pedra", mas isso em nada fere sua onipotência. Logo, é perfeitamente possível sustentar que Deus seja onipotente. Portanto, o argumento falha em provar que Deus, onipotente, não existe.

domingo, setembro 23, 2007

Guerra sem fim: as motivações injustas das guerras americanas

Afeganistão. Iraque. Em breve Irã. Depois, quem sabe, Coréia do Norte? Seja como for, o governo americano está decidido a intensificar o atual militarismo agressivo. E não parece que isso mudará; todos os possíveis candidatos a presidente, à exceção do excelente Ron Paul, defenderam ou defendem as guerras da atual administração.

Que a guerra tenha efeitos nefastos para a economia tanto do agressor quanto do agredido não é preciso repetir. Meu ponto neste artigo é explicitar algo que, para muitos, talvez seja óbvio: a guerra do Iraque, e a guerra do Irã que se anuncia, são guerras injustas.

Não falo isso inspirado por algum pacifismo extremo. Há guerras justas; quando uma nação luta pela própria liberdade contra um agressor, é com justiça que recorre às armas. E é claro que apenas repelir o agressor não basta; é preciso também puni-lo, de preferência derrubando o governante beligerante, para que a paz possa novamente reinar.

Assim, o critério principal para se avaliar uma guerra é a intenção que guia os governantes e as autoridades militares. Toda guerra justa tem como finalidade a paz. Toda guerra, portanto, visa um estado de coisas no qual não haverá mais guerras. Claro que, dadas as constantes mudanças pelas quais o mundo passa, novas ameaças sempre aparecerão; ninguém com um mínimo de realismo acredita que o homem construirá um mundo plenamente pacífico. Mas isso não muda o fato de que o esforço de guerra deva ser algo fora do ordinário, fruto de uma necessidade presente, mas que, assim que possível, será desmobilizado.

Com isso em mente, as guerras do governo americano não saem bem na foto. O Iraque não tinha atacado os EUA, e nem dava indícios de que iria fazê-lo. Os boatos sobre armas de destruição em massa revelaram-se fictícios; o exército iraquiano caiu com um sopro. Seja por ignorância apressada e culpável ou mentira deliberada, o governo agiu mal ao alardear armas inexistentes. Atacou uma nação que não lhe apresentava ameaça alguma, e conseguiu com isso apenas muitos soldados mortos e um ódio ainda maior contra si.

Uma vez dentro do Iraque, tem governado de forma desastrada. A violência no país não pára de crescer; prova da incapacidade dos EUA de controlar os insurgentes. A queda de Saddam liberou males ainda maiores que agora assolam a população civil.

E qual é a intenção do governo Bush? Será de fato alcançar a paz? Improvável, dado que suas intervenções têm criado situações de conflito permanente sem previsão de término. E a invasão ao Irã promete levar adiante o processo. O esforço de guerra, que deveria ser algo extraordinário e temporário, já se transforma no estado normal de coisas, consumindo grande parte do produto americano; isso para não falar das milhares de pessoas mortas.

Os únicos ganhadores na guerra são o governo americano, que se torna ainda maior e mais poderoso, apropriando-se de uma parcela maior da riqueza da sociedade americana, e a indústria bélica, sustentada pelo Estado. O complexo industrial bélico incentiva e patrocina os políticos americanos; estes, por sua vez, arrumam novas guerras para aumentar o lucro dessas indústrias (na mesma medida em que outras empresas, em outros ramos de atividade não ligados ao governo, deixam de lucrar). Essa relação simbiótica governo-indústria bélica parasita a sociedade americana, sugando cada vez mais os seus recursos.

Esqueça-se as pseudo-justificativas da paz e da democracia. O objetivo das guerras do governo americano é beneficiar as indústrias próximas do Estado às custas do resto da sociedade; e que centenas de milhares de inocentes tenham que morrer para isso é visto como um custo aceitável. A consideração do que é justo ou injusto nem passa pela cabeça dos senhores da guerra americanos; para eles o que importa é: “até onde podemos ir?”

quinta-feira, setembro 13, 2007

Renan Calheiros: produto natural da política

Renan Calheiros teve uma filha com sua amante e sustentava-as com dinheiro conseguido de um lobista de empreiteira junto ao governo. Não faltavam testemunhas. Em sua defesa apresentou notas fiscais que sequer tinham consistência interna. Mesmo assim, foi absolvido pelo Senado. Não quebrou o “decoro parlamentar”. Se isso não quebra decoro parlamentar, decoro parlamentar não existe!

O caso Renan torna mais explícito e presente aos nossos olhos o que, no fundo, já sabemos há tempos: a política brasileira é simplesmente podre. O Legislativo é um câncer em metástase; não passa de um cancro infeccioso. Grande parte de seus cargos e membros poderia ser abolida que a sociedade ganharia muito. Um juízo sobre o Executivo e o Judiciário não seria muito diferente. Ao invés de repetir obviedades sobre a política nacional, no entanto, acho mais interessante tirar dela uma lição sobre economia e política públicas em geral.

Ao longo dos textos deste blog, sempre que se considera uma política pública, parte-se do pressuposto de que os políticos desejem sinceramente os fins que declaram. Não há desonestidade ou incompetência; caso contrário, poder-se-ia contra-argumentar dizendo que o fracasso das políticas e medidas públicas deve-se ao fato de os políticos atuais serem muito desonestos, e que se outros políticos, de outro partido, mais ético, estivessem no poder, tudo mudaria. Como tento mostrar repetidamente, não é o caso: mesmo com políticos bem-intencionados, os resultados da grande maioria das políticas públicas são desastrosos.

Desastrosos, mas poderiam ser piores. O uso repetido desses argumentos pode cegar-nos para a verdade: não há motivo algum para se supor que os políticos tenham qualquer intenção de ajudar o povo ou de serem honestos. Tampouco há motivo para supor que entendam algo dos assuntos sobre os quais, freqüentemente, se metem a falar.

Não é coincidência que a política seja o palco de tantas e tamanhas desonestidades e sem-vergonhices. A própria estrutura da organização política incentiva à desonestidade e à incompetência. O político cuida de um dinheiro que não é seu; foi tirado de seus donos originais, e portanto não pertence, na prática, a ninguém. Ninguém sentiria falta dele se fosse desviado para um fim pessoal do governante. Assim, há o incentivo para a desonestidade e desvio de verbas. Para combater a corrupção, cria-se toda uma estrutura de fiscalização das contas públicas, que demanda uma grande quantidade de recursos; mas essa estrutura também ela incentiva o roubo; se o fiscal aceitar um suborno para fechar os olhos, quem ficará sabendo? Só se o fiscal do fiscal pegá-lo. Mas e se ele também tiver seu preço...?

Além disso, a receita com a qual o político deve trabalhar não depende de seu desempenho. Um empresário só conseguirá o dinheiro para mais investimentos se satisfizer bem os desejos da população. O político não precisa servir a ninguém; seu dinheiro vem por meio dos impostos e da emissão de moeda. Se o orçamento não cobrir todos os gastos, é só pegar mais! E é muito mais fácil gastar mal do que fazer gastos eficientes. Assim, todo político é incentivado a ser incompetente, a gastar mal o dinheiro. No final das contas, seu mandato depende ou de relações internas ou de fazer boa propaganda quatro anos depois.

Não quero com isso dizer que todo político é desonesto e incompetente. Mesmo no Senado deve haver pessoas sérias, entre os que votaram contra Renan (e talvez até mesmo algum que tenha votado a favor; vai saber...). Mas um político honesto e competente é um verdadeiro herói, pois todos os incentivos da organização governamental empurram-no na direção contrária.

No futuro, ao escrever mais textos sobre políticas públicas, continuarei a me basear na premissa do governante honesto. Entretanto, não se iludam: além de todos os desastres causados pelas políticas mais bem-intencionadas, temos de arcar também com os pagamentos de lobistas, desvios de verba, compras super-faturadas, propinas, chantagens, fisiologismo, enfim, com o descalabro que é o governo brasileiro.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Indivíduo ou Coletividade?

Noto que, na discussão política e econômica, procura-se exaltar um dos dois supostos valores contrários: o indivíduo ou a coletividade.

Os defensores do livre mercado, em geral, valorizam o indivíduo: a pessoa humana com todas as suas peculiaridades, que não deve nunca ser sacrificada tendo em vista os objetivos de uma “humanidade” coletiva e impessoal. A sociedade, afinal de contas, nada mais é do que o conjunto dos indivíduos.

Já os socialistas e intervencionistas em geral frisam o valor da coletividade. O homens não vivem isolados, cada qual no seu canto, mas em sociedade; a felicidade humana só é possível num contexto social; além disso, cada indivíduo é em larga medida formado pelos valores, cultura e formas de relacionamento de sua sociedade.

Ninguém pode negar que há muito de bom na visão de ambos os lados. Mas há também muito a ser criticado; e, com efeito, cada lado tece críticas ao outro: os partidários do indivíduo acusam os coletivistas de não se importarem com os seres humanos concretos, e de os tratarem como meros números ou instrumentos para os objetivos dos governantes. Os partidários da coletividade, por sua vez, acusam os individualistas de ignorarem a importância do ordenamento social, de nutrirem uma visão egoísta de como deve ser a vida humana e de simplesmente desprezar os mais pobres.

Não se deve escolher entre indivíduo e sociedade. A sociedade é formada de indivíduos, que por sua vez formam-se no interior de uma sociedade; um depende do outro. Se constatarmos que os fins de ambos são inconciliáveis, não haverá forma satisfatória de organização social. Felizmente, a oposição entre indivíduo e coletividade não é necessária, e existe uma instituição social que os harmoniza.

Essa instituição é o mercado. No mercado, os interesses de cada indivíduo e da sociedade como um todo se harmonizam perfeitamente. Um indivíduo quer atingir seus objetivos, que exigirão o trabalho e a prestação de serviços de outras pessoas. Para conseguir o que quer, esse indivíduo deverá prover algo que seja valorizado pelo resto da sociedade.

O único jeito de ganhar dinheiro no mercado é satisfazendo as necessidades e desejos dos outros membros da sociedade. Mesmo o mais egoísta dos homens, no mercado, se vê obrigado a servir ao próximo para satisfazer seus próprios interesses mesquinhos.

O grande empresário lucra apenas porque ajuda os outros membros da sociedade; e no momento em que seus serviços deixarem de satisfazer os desejos da sociedade, ele perderá sua fonte de renda. Querer punir os grandes empresários para beneficiar a “coletividade” tem como resultado prejudicar não apenas o empresário, mas também a sociedade que se beneficia de seus serviços.

Todo indivíduo é escravo e senhor dos outros. Enquanto produtor de bens e serviços, é escravo; sua fortuna depende dos caprichos dos consumidores, ou seja, dos desejos da sociedade. Enquanto consumidor de bens e serviços, é senhor. E seu poder de consumo depende exclusivamente de sua capacidade de servir à sociedade enquanto produtor.

É apenas no âmbito da ação governamental, do planejamento central, no qual se verifica a oposição entre interesses privados e interesses públicos. O mercado é o meio pelo qual (e único meio no qual) esses interesses são harmonizados de forma que uns existam em função dos outros. A defesa do livre mercado não prioriza o indivíduo e nem faz pouco da coletividade ou da sociedade; muito pelo contrário, valoriza ambos, pois percebe que se reforçam mutuamente.

domingo, setembro 02, 2007

O que a Economia não é, ou Uma crítica ao uso acrítico da Estatística

A estatística e a econometria estão tomando o lugar da ciência econômica. Os danos disso para o entendimento do funcionamento do mercado são enormes. Mas a maioria dos economistas não o percebe. Preferem iludir-se, crendo que, assim como nas ciências naturais, a economia deve testar seus modelos teóricos pela observação dos fatos, isto é, pela estatística.

O primeiro ponto a se levar em conta é que não é possível, quando se lida com a sociedade humana, fazer qualquer experimento; não há controle de variáveis; há as inúmeras interações humanas, sujeitas a todo tipo de circunstância e alteração, a todo tipo de surpresa, o tempo todo.

Além disso, ao contrário dos eventos naturais, a ação humana não obedece a relações de magnitude constante. Podemos ter certeza de que, amanhã, a aceleração da gravidade na Terra continuará a mesma. Mas não podemos afirmar que as pessoas reagirão da mesma maneira aos mesmos eventos. Cada ação humana é única, e suas condições particulares são irrepetíveis. Ontem julguei que um copo de Coca-Cola era o suficiente para minha sede; hoje, em condições similares, tomei dois.

Como procede um economista contemporâneo, que ignora esses fatos? Ele forma uma conjectura, uma hipótese; digamos, de que um aumento no salário mínimo legal causa um aumento do desemprego. Bom, mas até aqui essa tese não passa de “teoria” (no mau sentido), um exercício abstrato, mera elocubração mental. Precisa ser confrontada com a realidade, precisa sair do estúdio e pisar no chão do mundo real! Nosso economista, então, coleta dados de um determinado país durante um certo período.

Surpresa: De acordo com esses dados, durante o período, o salário mínimo aumentou e o nível de desemprego caiu. Resignado, o economista se convence: é, a teoria estava errada nesse caso. Ou então, quem sabe, ele se convence de que existem outras variáveis relevantes que não foram observadas; é preciso de mais dados.

Qualquer que seja a conclusão dele, vejam só a falácia da inferência estatística em economia: quem disse que, apenas por que há uma correlação entre desemprego e salário mínimo, existe uma relação de causalidade entre eles? Será que o salário mínimo mais alto causou a diminuição do desemprego? Ou será que foi a diminuição do desemprego que levou os legisladores a aumentar o salário mínimo? Ou, quem sabe, há uma mesma causa para esses dois eventos, ou, ainda, a relação entre os dois é pura coincidência? Podemos ir mais longe: a diminuição do desemprego pode ter ocorrido apesar do aumento do salário mínimo.

Como decidir entre essas diversas interpretações conflitantes dos dados? Todas são possíveis; os dados não contêm sua própria interpretação. A escolha dessa interpretação depende da teoria aceita a priori, sem qualquer referência aos dados. A estatística sem a teoria não pode nos dizer nada. Com efeito, a própria escolha de quais variáveis medir já depende de uma teoria sobre quais variáveis são relevantes para explicar o fato que se tem em mente.

As relações estatísticas (no que diz respeito à economia) só se tornam inteligíveis à luz de uma teoria, e não há motivo para supor que as diversas variáveis manterão, no futuro, a mesma relação numérica que mantêm hoje. Todo o economista, ao fazer um teste estatístico e ao interpretá-lo já aceita, mesmo que não perceba, uma teoria econômica que guia sua escolha de dados e sua interpretação.

A estatística não pode nem refutar nem comprovar nenhuma tese econômica. Pode apenas estabelecer as relações históricas que se estabeleceram entre algumas variáveis. A economia, portanto, não é não pode ser uma ciência empírica, como o são as ciências naturais. Isso não quer dizer, no entanto, que ela não sirva para nada na economia. Ela é essencial para que façamos história econômica, isto é, conhecer os fatos passados (à luz da teoria correta, sem a qual os dados perdem seu valor por completo). Além disso, pode, diversas vezes, ilustrar a teoria; mas nunca com a pretensão de comprová-la ou refutá-la!

quarta-feira, agosto 29, 2007

Uma defesa ambientalista

Vou inovar. Meu amigo Lucas Mation escreveu uma crítica ao meu último texto, que publico aqui:

Joel,

Seu primeiro argumento é válido. O governo, de uma forma ou de outra, tem maior poder de influência quando se decide enfrentar um problema desses. E por que? Porque um problema desses é justamente o tipo de situação que justifica a existência de um governo! E é assim porque se trata de um problema de coordenação, tragédia dos comuns. Não vou desenvolver isso muito aqui mas, é basicamente isso.

Quanto à veracidade da ciência, há uma certa controvérsia, que tende um pouco para os pró tese do homem como causador do aquecimento. A questão é que é prevenir do que remediar. Você poderá responder que os cursos de evitar o aquecimento global excederão os benefícios e que uma solução alternativa, ou realocação de recursos para usar menos energia, mas de forma ótima, será encontrada quando a energia acabar. Mas para isso você teria que conhecer a ciência do aquecimento global, coisa que você admite não conhecer. Acreditar que uma solução será encontrada é voluntarismo. Isso é uma possibilidade. No entanto, pode ser que a solução seja explorar os recursos até o fim de depois enfrentar uma gravíssima crise porque as alternativas não apareceram e não foram desenvolvidas. Ou porque não valia a pena (por problemas tradicionais de dificuldades na apropriação dos benefícios e incerteza) ou porque na media que começou a valer a pena não deu tempo de achar uma solução.

Alguns movimentos tentam colocar uma visão mais balanceada levando em conta também as outras espécies e até dispostos a sacrificar o bem estar dos humanos em pról delas. Pessoalmente eu discordo desta visão, mas nao vejo mal eu uma pessoa cujos valores reflitam isso se posicione desta maneira. Só vou votar contra.
Mas você força a barra ao dizer que o este tipo de ambientalismo vai dominar. Ele não só não vai dominar quanto está argumentação já estava presente e não dominou. A questão ambiental só ganha maior repercussão agora porque justamente é o bem estar material do homem que está ameaçado pelo problema de coordenação. E é isso que justifica a ação governamental, como resposta ao movimento popular que indica uma necessidade de mudança e incentiva os políticos a fazerem tais políticas.

Agora, alguns comentários meus:

Tragédia dos comuns é um problema que escancara os problemas da propriedade pública: como ela "é de todo mundo", todo mundo quer se beneficiar o máximo dela, e assim ela acaba bem rapidinho.

A grande maioria dos problemas ambientais tem solução bem óbvia no livre mercado: poluição de rios, mares, qualidade do ar, desmatamento; tudo isso é facilmente resolvível se deixarmos que os recursos tenham donos e que cada pessoa escolha o que pode e o que não pode em sua propriedade.

O aquecimento global apresenta um problema novo: o efeito estufa se dá com algo que não é usado pelos homens: o ar distante da Terra. Por isso, não há como estabelecer, com alguma legitimidade, direitos de propriedade sobre esse ar. Além disso, não é possível dividi-lo e nem saber qual é a origem dos diversos gases que sobem até ele.

Fica complicado pensar em soluções para a poluição desse lugar distante mas que, ainda assim, impacta a vida das pessoas ao mudar a temperatura do planeta. Estabelecer direitos de propriedade arbitrários é sempre uma péssima solução; do nada, algumas pessoas teriam direito de receber dinheiro de outras para que essas outras emitam CO2. Ë claro que quem receberá esse dinheiro serão sempre governos. De alguma forma, eles serão considerados os donos da atmosfera...

Se houver ações que ajudam a diminuir o efeito estufa, seria possível criar algum tipo de mercado no qual poluidores tenham que pagar algo a limpadores. E assim todos teriam incentivo para poluir menos e limpar mais o ar.

Dizer que é melhor prevenir do que remediar é uma péssima justificativa. Você seria a favor de gastar trilhões para construir um sistema de mísseis para nos prevenirmos contra possíveis invasores extra-terrestres? Nem eu.

Por fim, você diz que a ideologia "anti-humana", chamemo-la assim, não é, e nem se tornará, popular. Enquanto idéia, concordo com você. Só uns poucos cientistas e ambientalistas consideram o homem um vírus e propõem seriamente a eliminação de grande parte da humanidade (mas também esses existem e são prestigiados!). Mas as aplicações práticas dessas idéias, mascaradas com outras roupagens, podem sim encontrar ampla aceitação. Em grande parte já encontram.

Repete-se que é importantíssimo controlar a população, que a explosão populacional atual irá destruir o planeta; e todo mundo aceita. E as conseqüências práticas disso vão aos poucos sendo impostas.

Referendos de aborto, de eutanásia. E se um referendo perde, outro é imediatamente convocado. E claro que só se convoca eles com a esperança de que "dessa vez vão passar". Se não foi agora é na próxima, que virá!

terça-feira, agosto 21, 2007

Aquecimento Global: Finalidades Sombrias

Não sei se a Terra está esquentando. Suspeito que sim. Não faço a menor idéia se esse aquecimento é fruto da ação humana. Suspeito que não. Não vou falar do que nada sei; posso apenas dizer que, quem procurar, achará material convincente contrário ao senso comum. Falarei de algo que vejo claramente e que me preocupa: o uso que vem sendo feito da teoria do aquecimento global, ou seja, o que ela tem servido para justificar.

O primeiro, e mais óbvio, fim a que as teses de aquecimento global têm se prestado é justificar mais intervenção estatal na vida social. Usar um carro, voar de avião, construir um prédio; se os alarmistas conseguirem impor suas soluções, precisaremos de permissões para tudo isso e muito mais. Precisaremos fazer cálculos de carbono, comprar e vender créditos de emissão, pagar pesados impostos ambientais e se adequar a novas regulamentações. Não é ir longe imaginar comitês ecológicos com poder de veto sobre qualquer empreendimento.

Numa sociedade como a nossa, tudo passa pelas mãos do governo. Transações voluntárias benéficas a ambas as partes precisam de permissão estatal; paga-se impostos para servir aos outros (e quanto melhor o serviço, mais se paga!). Em nosso contexto, mais intervenção estatal beira o intolerável. É claro que muitas pessoas, inclusive eu, não terão sua sobrevivência ameaçada por essa relativa piora no padrão de vida. Para muitas outras, no entanto, que mal têm condições básicas de existência, um pequeno encarecimento no custo de vida terá conseqüências drásticas.

É notório que os cientistas envolvidos na pesquisa e no alarde em torno do aquecimento global recebem verbas públicas. Ambos, governo e cientistas patrocinados, têm muito a ganhar ao propagar essa tese e defender soluções estatais. Uma coisa é fato: independentemente do mérito das teorias, as medidas estatais, de si mesmas, empobrecerão a população. Resta saber se elas terão o efeito de evitar a catástrofe ambiental que se prediz para breve.

A segunda finalidade a que se presta o alarde em torno do efeito estufa é, a meu ver, mais sombria. É distinta da primeira, mas ambas não existem separadamente, e sim em mútuo auxílio.

Os defensores de medidas estatais, em geral, têm em vista proteger a vida humana dos efeitos não-intencionais e nocivos de suas ações. Por vezes, no entanto, vê-se por trás desse discurso uma outra ideologia, segundo a qual não é tanto a proteção da vida humana que interessa, mas sim a preservação ambiental como um fim em si mesma. O homem, segundo essa tese, é um fator de desequilíbrio ecológico; perturba a ordem natural do planeta. Privilegiar o homem em detrimento de outros seres (ou do ecossistema como um todo) seria moralmente errado; a atitude correta seria limitar e tolher a existência humana, consumidora ávida dos recursos naturais. Ela deve ser tolerada, e não incentivada.

E assim entramos em terreno perigosíssimo. As teses ambientalistas transformam-se em justificativa para práticas que violam o respeito mais básico à dignidade humana. Os doentes, os idosos, os mais fracos, esses só consomem; sustentá-los enquanto a humanidade drena o planeta seria uma atitude egoísta. Também o seria querer trazer novas pessoas ao mundo; já pararam para pensar nos impactos ambientais de gerar mais um filho? Será que a nova criança justifica os custos para a natureza e para as gerações futuras? E em todo caso, valeria a pena viver em um mundo poluído e desmatado? É um passo muito pequeno até a defesa explícita da eutanásia, do aborto e do controle populacional.

Será possível acreditar que alguém que vê com maus olhos a reprodução humana se preocupe com as “gerações futuras”? Não é porque agora justificamos certas práticas com base na ecologia e na “qualidade de vida” (mas apenas daqueles que tiverem permissão de viver!) que elas se tornam menos monstruosas do que quando eram justificadas pelos conceitos espúrios de pureza racial e aprimoramento genético.

sábado, agosto 18, 2007

Enriquecer gastando?

Jornalistas da Globo, por favor! Parem de confundir a população com suas noções erradas! Consumo não gera crescimento. Consumo não sustenta economia nenhuma; não a “faz girar”.

O consumo é uma conseqüência, e nunca uma causa, do aumento da produção. Quem dera fosse o contrário! Bastaria irmos todos às compras que enriqueceríamos. Mantenha-se as “expectativas” boas, de modo que todos passem as tardes no Carrefour, que a prosperidade virá.

Se os shoppings andam vazios, não é pelo desprendimento ascético da população. Se não produzimos mais do que o atual, não é por falta de consumidores. Poucos são os que estão satisfeitos com o seu próprio consumo; sempre há desejos e necessidades insatisfeitos. “Propensão a consumir” não falta. O que falta é produção para satisfazer toda essa sede de consumo.

Se, sem nenhum aumento da oferta de produtos, mais bicicletas forem compradas, isso significa que outros produtos e serviços terão suas demandas reduzidas; carros, chapéus, bóias de piscina; sabe-se lá o quê. Ou então estão todos poupando menos, e, portanto, reduzindo sua capacidade de crescimento econômico no futuro. Ou então um outro grupo de pessoas tem poupado para que esses consumam. A conta virá.

Quem quer enriquecer deve poupar; e não aumentar seu consumo. Se a filha compra tantos vestidos que o cartão do pai entra no vermelho (isto é, pega emprestado de gente que restringiu o próprio consumo), eles passam por dificuldades. Se todas as filhas do país fizerem o mesmo, o efeito não muda. O consumo das filhas aumenta na mesma exata medida em que se restringem os investimentos e o consumo dos poupadores.

Se a realidade é essa, por que os jornalistas insistem em dizer que quem sustentou o crescimento global foi o consumo dos americanos? Se os americanos aumentam seu consumo, ou eles aumentaram também sua produção (e essa é a causa do crescimento), ou eles estão consumindo a própria poupança (diminuindo assim seu crescimento), ou então pessoas de outros países estão consumindo menos agora para emprestar esses recursos aos americanos, e esperam recebê-los com juros no futuro. O consumo americano não alimentou crescimento nenhum; Foi ou alimentado pelo crescimento ou tirou-lhe o alimento.

Mas as dívidas foram contraídas. Se o dinheiro foi investido, ou se consumido, não importa. Ou parte dos lucros dos investimentos pagará os juros, ou, na falta de tais investimentos, os devedores terão que diminuir seu próprio consumo para pagá-los. E se, com base em expectativas delirantes sobre o valor dos imóveis (e a causa de tais erros em expectativas é algo que merece estudo), aceitou-se casas comuns como se fossem de diamante, todos aqueles cuja fortuna consistia em imóveis ou dependia do valor deles, perceberá que é mais pobre do que julgava. Se amanhã acordarmos e ver que nossa riqueza não passava de ilusão, adeus passeios pelo Iguatemi; adeus consumo! Melhor preservar o pouco que temos.

Não dêem bola para o Jornal Nacional: sair às compras não cria riqueza.

domingo, agosto 12, 2007

Preconceito e Livre Mercado: Contradição

Com freqüência associa-se capitalismo, ou economia de mercado, a racismo, sexismo, etc. Quem diz isso não percebe que no mercado o incentivo é na direção de erradicar discriminações e preconceitos sem base.

Todos os salários tendem para o valor real da produtividade dos trabalhadores, ou seja, daquele aumento de receita que o trabalhador pode promover numa empresa se for contratado por ela. Provar isso é simples: se a produtividade de um trabalhador para uma empresa for, digamos, 100 Reais, essa empresa estará disposta a contratá-lo por 90 (paga 90, recebe 100). E se esse trabalhador for contratado por 90, uma outra empresa similar à primeira poderá oferecer um salário de 95 por ele, e sair ganhando. A competição das empresas pelos trabalhadores (o recurso mais escasso do mercado, sem o qual nenhum outro pode ser utilizado) eleva seu salário até sua produtividade.

Se uma empresa se recusa a contratar mulheres, isso diminui a demanda por trabalhadoras no mercado, o que permite que outras empresas contratem-nas por salários mais baixos. A empresa que pratica essa política sexista perde oportunidades de lucro e beneficia suas concorrentes; contrata homens menos competentes e deixa passar mulheres mais preparadas. Quanto mais empresas agirem assim, maior a oportunidade de lucro ao se contratar mulheres. Se todas aderirem a essa política (por uma crença errônea de que a produtividade feminina é inferior), o primeiro empreendedor a agir de forma diferente lucrará muito, ao mesmo tempo em que beneficia todas as mulheres que procuram empregos. As outras empresas, pagando salários altos por homens pouco eficientes, ou mudam sua política de contratação ou terão prejuízo.

Se um trabalhador negro e um branco têm a mesma produtividade, então o salário deles no mercado tenderá a ser igual. Uma firma que, por puro racismo, ofereça salário inferior aos negros estará prejudicando a si mesma: as empresas que não praticam o racismo conseguirão contratar os melhores trabalhadores negros, oferecendo salários mais altos do que a racista, que ficará com os piores trabalhadores.

O preconceito impede a melhor satisfação das demandas dos consumidores. Assim, diminui o lucro da empresa. A empresa que deixa teorias falsas guiarem sua seleção e remuneração de funcionários satisfaz pior as necessidades dos consumidores, e, portanto, lucra menos do que aquela para a qual a satisfação dos consumidores vem em primeiro lugar e não se deixa guiar pelo preconceito.

Isso não quer dizer que o mercado incentive a equalização de todos os membros da sociedade. O que ele faz é punir as falsas atribuições de diferença. Quanto às reais diferenças de produtividade, o incentivo é de percebê-las o quanto antes e da forma mais precisa possível. Se um empreendedor descobrir, antes de todos os concorrentes, que os ruivos são muito melhores em prestar um dado serviço, ele pode oferecer aos ruivos um salário um pouco acima do que se paga comumente aos outros e, assim, sair ganhando. Mas é claro que, conforme todos percebam a vantagem de se contratar ruivos, o salário deles tenderá a subir até o ponto em que o salário deles reflita sua real produtividade, acabando com as oportunidades de lucro.

Assim, fica claro que o mercado, ao punir as falsas percepções e premiar as verdadeiras, tem um papel importantíssimo no combate de todas as formas infundadas de discriminação.

terça-feira, julho 31, 2007

Dívida pública: quem ganha e quem perde?

Endividar-se não é enriquecer. Todo mundo sabe disso. Quem pega um grande empréstimo terá que pagar a conta, com juros, no futuro. Se o dinheiro for usado para algum investimento que dê lucro, pode ser um ótimo negócio. Mas se não houver perspectivas de renda futura que permita pagá-lo, pode nos arruinar; de qualquer forma, os gastos adicionais que um empréstimo nos permite fazer no presente terão, como contrapartida, redução nos nossos gastos futuros.

O mesmo exato raciocínio se aplica ao governo. Ao pegar empréstimo (o que o governo brasileiro faz em larga escala, especialmente junto aos bancos nacionais), compromete-se a pagar suas dívidas, com juros, futuramente. E é exatamente isso que ocorre quando alguém aplica seu dinheiro em títulos públicos: empresta dinheiro ao governo, e em troca recebe a taxa de juros fixada pela autoridade monetária, até que resgate seu dinheiro, vendendo o título. Como foi dito acima, um empresário que pega um empréstimo costuma ter um plano de investimento lucrativo em mente, que o permitirá pagar os juros e o principal no futuro. Entretanto, o mesmo não ocorre com o governo, pois ele não lucra, e nem espera lucrar, em suas operações.

Mas o dinheiro foi emprestado e foi gasto; alguém terá que pagar! Há três possibilidades: o governo restringirá seus gastos no futuro para pagar seus empréstimos, como prometido; o governo aumentará os impostos ou a inflação da moeda no futuro para arrecadar mais; o governo dará o calote em seus credores. Não há quarta opção.

Diminuição dos gastos é algo praticamente inexistente, falando de políticas públicas. Na prática, o governo ou tirará mais dinheiro da população ou dará o calote.

Hoje em dia chegou-se ao consenso de que o calote é uma saída ruim, pois torna o governo menos confiável, o que mina sua capacidade futura de conseguir empréstimos. Sobra apenas o aumento de impostos (já que a inflação da moeda como financiamento público também tem sido evitada), que traz consigo um efeito muito pernicioso do ponto de vista distributivo.

Todo mundo que aplica seu dinheiro em algum banco é, na prática, um credor do governo, pois os bancos destinam grande parte de seus fundos para comprar títulos públicos, e é com os juros recebidos desses títulos que eles pagam seus clientes. O governo terá de aumentar os impostos para pagar sua dívida, ou seja, para pagar as pessoas que têm aplicações bancárias. De onde sairá o dinheiro para pagar quem tem aplicações bancárias? Ora, só pode ser de quem não as tem. Se assim não fosse, ou seja, se o governo cobrasse os novos impostos apenas dos seus próprios credores, não haveria benefício algum em ser credor do governo, e portanto o governo não conseguiria empréstimo algum. Quem não tem aplicação bancária sairá perdendo com o endividamento do governo, pois terá que pagar os novos impostos sem receber nada. E quem costuma não ter aplicações são exatamente os mais pobres. Ou seja, o endividamento do governo tem como uma de suas conseqüências, além do aumento generalizado de impostos, o aumento da desigualdade social.

É espantoso, portanto, que se considere desejável o governo manter-se endividado, já que isso aumenta os impostos e a desigualdade. Alguém pode argumentar que vale a pena se endividar em um momento para fazer algum investimento essencial urgente. Não vou aqui combater essa idéia, apenas fazer uma constatação: se esse é o caso, então o governo pode contrair dívidas, fazer o investimento ou gasto essencial no presente, e pagar suas dívidas com a contração futura de seus gastos e um aumento apenas temporário de impostos (dado que o empréstimo também era só temporário). Isso é totalmente diferente da situação mundial atual, na qual os governos procuram manter-se endividados indefinidamente. De uma coisa podemos ter certeza: alguém pagará caro essa conta.

quinta-feira, julho 26, 2007

Devemos proteger os produtores contra os perigos da livre concorrência?

Produção e consumo são duas ações diferentes. Mas todo produtor é também consumidor. Quem quer consumir, precisa produzir, oferecer algo aos demais, para que possa satisfazer suas próprias demandas. O que nos beneficia enquanto produtores pode nos prejudicar enquanto consumidores. Esquecer desse fato leva a erros desastrosos.

“Temos que aumentar o respeito pelos economistas, que são alvo de ataques no seu mercado de trabalho, que é exclusivamente seu, como manda a Lei, e esse é o trabalho incessante dos Conselhos Regionais de Economia”. São palavras de Synésio Batista da Costa, presidente do Conselho Federal de Economia (COFECON), em entrevista ao periódico “O Economista”. Como futuro economista que sou, como não me sentir desonrado quando palavras tão erradas são proclamadas publicamente por alguém que supostamente representa a minha “classe”?

Imaginemos que, conforme os desejos do entrevistado, o governo aplicasse rigorosamente a lei que proíbe não-economistas de prestar os serviços de economistas (consultorias e sabe-se lá mais o quê). Isso beneficiaria um grupo de produtores, os economistas, e prejudicaria todos aqueles que não mais poderão prestar os serviços de economia. Toda perda dos não-economistas seria compensada por ganhos por parte dos economistas (ou daqueles que recebessem a demanda que deixou de ser direcionada a esses serviços, que agora se tornaram mais caros). Com os produtores como um todo, nada muda. Então quem sairia perdendo? Os consumidores.

Não fosse pela proibição, os consumidores contratariam os não-economistas. Seria essa a escolha que satisfaria de forma mais eficiente suas necessidades. Agora não mais poderão fazê-lo. Estão, portanto, mais pobres, pois sua renda já não é capaz de satisfazê-los tão bem como antes da proibição. Com produtores, como um todo, na mesma, e alguns consumidores (aqueles que demandam serviços de economia) pior, o saldo total para a sociedade é negativo. Levemos esse raciocínio um passo adiante.

Imaginemos agora que tal restrição fosse aplicada não apenas aos economistas, mas a todas as profissões, como é de fato a proposta de muitos burocratas e defensores de interesses particulares junto ao governo. Todo produtor que saísse ganhando teria como contrapartida um que saiu perdendo; e quem perde são sempre os mais eficientes em satisfazer as demandas dos consumidores, aqueles que seriam contratados sem precisar da proteção da lei.

E os consumidores? Saem perdendo, pois não podem mais comprar aqueles produtos que consideravam os mais vantajosos para si. E como a proibição se aplica a todos os bens e serviços, isso vale para absolutamente todos os consumidores. E agora nos lembremos da constatação inicial: todo consumidor é também um produtor e vice-versa.

Portanto, os próprios produtores de algum serviço saem perdendo quando a medida que os beneficia em particular é aplicada a todos os outros. O benefício aos economistas existirá apenas se as proteções dadas a eles excederem as proteções dadas às outras profissões. O Sr. Batista da Costa, enquanto produtor, quer que seu mercado seja protegido; enquanto consumidor, quer que vigore a competição, para que ele tenha acesso a produtos melhores e mais baratos. Infelizmente, ele se esquece de uma esfera de sua vida enquanto fala de outra.

quarta-feira, julho 18, 2007

Filmes de Terror

Conversava, outro dia, com uma amiga, sobre filmes de terror. Segundo ela, o que atrai o público neles é o sadismo: o prazer em ver sofrimento e morte. Eu, no entanto, discordo radicalmente. Explicar-me-ei.

Em primeiro lugar, não nego que alguns possam sim ser atraídos aos filmes de terror por prazer sádico; mas são poucos. O motivo principal que leva-nos aos filmes de terror é outro; e é bastante óbvio, até, embora tenha um significado mais profundo do que pode parecer à primeira vista.

A finalidade do filme de terror é causar terror: um medo mais profundo e abrangente do que os medos comuns. Um assassino profissional ou um serial killer dão ótimos suspenses, cheios de sustos; uma bomba no prédio, um filme de ação emocionante; mas não bastam para um bom filme de terror. É claro que o filme de terror pode conter esses elementos; mas nenhum deles cumpre o papel principal do filme.

O terror é mais profundo que o medo normal porque se refere a algo mais sério do que ele: a morte em si mesma e suas conseqüências metafísicas, e não apenas o sofrimento e dor que ela traz consigo. E é mais abrangente porque advém da percepção de que estamos permanentemente sujeitos a algo extremamente perigoso que não podemos controlar nem compreender.

É essencial que não se entenda. No mesmo momento em que se vê claramente o monstro, ou em que se descobre o método de se aprisionar o fantasma, não temos mais um filme de terror. E é por isso que um assassino profissional dificilmente causa terror: por mais perigoso que seja, compreendemos qual o seu propósito, e vislumbramos a possibilidade de argumentar com ele, ou ainda de causar-lhe empatia. O verdadeiramente aterrorizante precisa ser algo que o entendimento humano seja incapaz de apreender; e é por isso que se reduz a dois elementos: o sobrenatural (que é o além da morte) e a loucura (uma espécie de morte, pois perdemos o que nos é essencial).

Na vida moderna o incontrolável e o incompreensível não têm lugar. Os mortos e os loucos estão cada vez mais distantes da vista e, portanto, de nossos pensamentos. A ciência e a tecnologia permitem-nos entender e controlar a natureza, que antes era fonte de medos infindáveis. O mal é atribuído a estados psicológicos analisáveis e curáveis. O terror sensível está restrito aos pesadelos e... ao cinema.

Quem assiste a filmes de terror, então, quer se sentir mal? Sim. E isso nos indica que, no fundo, há a consciência de que o mal é algo mais profundo, e tem conseqüências mais destrutivas, do que nossa sociedade tem coragem de admitir (a bem da verdade, nunca foi muito diferente; hoje é apenas mais fácil); e o filme de terror permite-nos entrar em contato com esse lado obscuro e aterrorizante da realidade, ainda que no campo inofensivo da ficção.

terça-feira, julho 10, 2007

PT e PSDB: Partidos Iguais

Devido a discussões recentes, minha mente se volta aos dois maiores partidos brasileiros: PT e PSDB. Dois partidos que vivem a debater, um acusando o outro e colocando-se como o melhor para resolver os problemas do país. Analisemos as principais posições de ambos, e as divergências entre eles, para averiguar qual é o melhor.

O PT, hoje em dia, não mais iludido por velhas utopias, busca a justiça e a eqüidade social dentro de um sistema de mercado, de modo que a riqueza seja não só gerada, mas também distribuída de forma a não permitir a enorme desigualdade do capitalismo. Não propõe o fim da relação patrão-empregado, mas sim que essa relação se dê de forma justa, e que os membros da sociedade tenham oportunidades iguais ao entrar no mercado de trabalho. Com ideais tão belos, como seria possível discordar? Não é de estranhar, portanto, que o PSDB concorde com o PT; busca unir o que há de melhor nos capitalismo e no socialismo, e persegue o sonho da social-democracia.

No entanto, parece, nos debates acalorados, haver grandes divergências entre PT e PSDB. Se não é quanto a visão geral, deve ser quanto às propostas individuais. Será? Lembremo-nos de um fato antigo: a eleição de 2006.

Lula, do PT, defendia melhorar os serviços assistenciais do país, mas sem perder de vista a eficiência econômica; afinal de contas, o empresário precisa de um bom ambiente para investir; a estrutura fiscal precisa ser repensada, é preciso desonerar o setor produtivo e cortar gastos desnecessários do governo, dar incentivo ao crédito, fazer reforma trabalhista, lutar por bons acordos comerciais internacionais. Já Alckmin, do PSDB... concordava plenamente. Toda proposta petista tinha sua equivalente tucana.

Mas agora lembro-me das privatizações que FHC promoveu. Sim! É isso: o PSDB se diferencia do PT por defender a privatização das estatais. Essa acusação foi levantada durante a campanha, e Geraldo Alckmin foi rápido em desmenti-la. Até tirou foto vestindo, literalmente, a camisa das estatais.

E a submissão ao FMI e outros órgãos financeiros internacionais, bem como a política monetária conservadora? Decerto, isso é marca do PSDB; o PT tem outra proposta quanto a essas questões. Ledo engano. O governo PT, em matéria de política monetária, foi tão conservador quando o do PSDB. Ironicamente, é o PSDB quem, hoje em dia, acusa o governo petista de “submissão exemplar ao FMI” e “pagamento de R$ 145 bi de juros” (aqui).

O PT, no poder, é igual ao que foi o PSDB, que agora faz as exatas mesmas acusações que eram feitas pelo PT. As brigas recaem sempre na conduta dos políticos de cada partido. Não há debate de propostas; há troca de acusações de desonestidade e falta de espírito democrático.

Falta de democracia é essa ilusória oposição entre dois partidos indistinguíveis a não ser pela cor do logotipo. A bem da verdade, há sim algumas diferenças, mínimas: o PT comporta, dentro de si, uma corrente de esquerda radical que inexiste no PSDB; mas a importância dela na política petista é nula. Além disso, o PSDB aparenta ter candidatos mais competentes e honestos.

A real diferença entre PT e PSDB é a reação emocional que seus nomes provocam. Preferir fortemente um ao outro é tão arbitrário quanto a escolha entre Cortinthians e São Paulo.

domingo, julho 08, 2007

Cinco Livros

Seguindo o último “meme” popular do mundo dos blogs, que me foi passado pelo Adriano:

5 livros recomendáveis que me vêm à mente

Human Action – Ludwig Von Mises

O tratado de Ludwig Von Mises sobre economia, que estou lendo, é essencial para se entender o funcionamento do mercado. É daqueles livros cujos insights e raciocínios são expostos com tamanha clareza e força que o leitor é compelido a parar a leitura e contar para seus amigos (ou escrever num blog) o que acabou de descobrir. O único problema é que eu não sei até que ponto um completo leigo em economia seria capaz de entendê-lo (fora a primeira parte, que trata de epistemologia e metodologia na ciência econômica, e que todos podem ler). É bom ter feito e passado numa matéria de Microeconomia I na faculdade só para se familiarizar com os termos e algumas noções principais.

A República – Platão

Semana sim, semana não, encontro-me com um grupo de amigos para ler esse clássico. Há muita coisa para se criticar na suposta proposta platônica: Estado totalitário, sistema educacional repressor, elite de governantes da cidade obrigada a viver em regime de propriedade e família comunitárias, etc. Mas a intenção de Sócrates ao construir o que seria a cidade perfeita é fazer uma analogia ilustrativa do que seria a alma do homem justo; e as conseqüentes mudanças de forma de governo da cidade, conforme mudam os valores dos homens e quem está no poder, representariam a degradação da alma humana. Quem quiser uma descrição exata da situação brasileira contemporânea não leia o jornal; vá direto ao livro VIII. Como pretendente a economista que sou, não posso deixar de mencionar a origem da república ideal, que é um verdadeiro tratado de economia política clássica: ganhos da divisão do trabalho e especialização, necessidade de se exportar produtos para poder importar outros, papel do Estado como defensor da cidade contra inimigos externos e internos. Enfim, motivos não faltam para lê-lo.

A Consolação da Filosofia – Boécio

Em sua cela, esperando a execução, o romano Boécio (último clássico, primeiro medieval) encontrou refúgio na filosofia. Antes um poderoso cônsul romano, com família rica e poderosa, de reputação ilibada; agora um prisioneiro do rei Teodorico, pobre e desonrado por crimes que não cometeu. O encontro com a dama Filosofia o levará a considerar sua situação com outros olhos; através de diálogos sobre as questões que mais importam ao ser humano: Deus, a alma, do livre arbítrio, o bem e o mal, a verdadeira felicidade, Boécio compreende que é tolo aquele que depende dos bens da fortuna; pois assim como eles são dados, são tirados quando menos se espera; e então, o que sobra?

História das minhas calamidades – Pedro Abelardo

Pedro Abelardo foi um célebre filósofo do século XII. Espírito incansável e rebelde (e genial), foi vítima de inúmeras perseguições; algumas justas, dado o seu caráter arrogante; outras, fruto da inveja de professores menos capazes. O fato é que ele atraía multidões para assistir suas aulas mesmo que fosse ao ar livre, entre folhas e terra. Ao mesmo tempo em que ganhava popularidade como filósofo, professor e debatedor, envolveu-se romanticamente com Heloísa, uma jovem de quem era tutor; o que resultou na gravidez da moça. O tio dela, nada feliz com o resultado, vingou-se de forma brutal: capangas seus castraram o pobre Abelardo. Humilhado, mas arrependido, virou monge (que era, de fato, o caminho para se ascender na carreira acadêmica); mas seus problemas não terminaram. Enquanto escrevia essa auto-biografia, morava num monastério onde era tão mal-querido por seus confrades que tinha sua comida repetidamente envenenada e fora ameaçado com faca ao pescoço. Enfim, o livro desse personagem tão singular é uma janela única para uma época distante da nossa; mas o que chama atenção é como os problemas humanos permanecem, essencialmente, inalterados.

A História do Diabo – Vilém Flusser

Tudo o que procura transcender o tempo, Flusser chama de influência divina. O que prende o homem ao tempo, ao efêmero, é influência diabólica. Com base nessa distinção, propõe-se traçar, sempre com humor, uma história do diabo, ou seja, uma história do pecado, do impulso de se imergir na correnteza temporal da história. Apesar de não-católico, adota a distinção de pecados da Igreja como o melhor mapa para fazer sua jornada. A luxúria é o desejo de possuir, ainda irracional e espontaneamente, aquilo que nos falta; é primordialmente sexual, mas sublimado resulta no nacionalismo, no amor à língua, e no amor por ler e escrever. Da luxúria o diabo nos leva à ira, que é o desejo de dominar, racional e friamente, o mundo. Falamos aqui da ciência e da tecnologia. Dessa, somos levados à gula, a sede de consumir o mundo inteiro, manifestada na industrialização. E dessa sanha do consumo nascem os pecados sociais: a avareza (conservadorismo) e a inveja (progressismo). Quem consegue se distanciar dessas preocupações mundanas, se libertar do mundo dos fenômenos, cai na soberba, no culto do próprio ser humano, e na idolatria de sua vontade. Quem, por fim, vê a perda de tempo de tudo isso, chega no pecado último: a preguiça ou tristeza do coração, no qual nada mais faz sentido e nada mais importa. No entanto, a cada passo desse caminho diabólico, a intervenção divina está presente para frustrar os planos do diabo. Embora por vezes discordante do que seria a letra da ortodoxia católica, em espírito o livro acerta, em geral, na mosca.

sexta-feira, julho 06, 2007

Os limites da ciência natural

Cada campo do saber humano tem critérios próprios, e métodos próprios, para que se alcance o conhecimento. Isso não significa que as descobertas, digamos, da química, possam contradizer as da matemática; afinal, a realidade é uma só. Significa que o modo de proceder de um matemático pode ser (e de fato é), diferente do de um químico. Se uma dessas ciências impusesse seus critérios e método sobre a outra, o conhecimento humano sairia perdendo.

Mas o que ocorre hoje em dia com as ciências é exatamente isso: os métodos de um grupo delas são tomados como os únicos capazes de se chegar à verdade em todas elas.

Os cientistas naturais adotam diversos postulados metodológicos para melhor responder à pergunta: “como o universo material funciona?”. Um deles é a negação de qualquer teoria que não faça previsões empiricamente testáveis; outro, a exclusão de qualquer apelo à finalidade nos processos naturais.

Esses postulados fazem todo o sentido. Por muito tempo a ciência natural teve seu desenvolvimento atrasado pela insistência da metafísica em explicar a natureza em termos de finalidade; assim, as pedras caíam porque tendiam para seu lugar natural e os peixes tinham brânquias para poder respirar na água. Essas explicações podem até ser verdadeiras; mas um cientista natural que as fizesse não estaria realizando seu trabalho direito. Também estaria falhando em seu trabalho se propusesse uma nova teoria que não resultasse em nenhuma previsão testável; uma teoria assim não nos daria nenhum conhecimento novo sobre o funcionamento do universo.

No entanto, é um erro universalizar esse método para todas as áreas do saber. Se antes a metafísica impôs certas barreiras ao desenvolvimento da ciência natural, hoje ocorre o inverso: as ciências naturais vêm invadindo o campo da metafísica, e não só dela: também da religião e até mesmo das ciências humanas.

Toda afirmação que não diz respeito a realidades observáveis é considerada impossível de ser racionalmente avaliada; joga-se fora grande parte da filosofia como inútil. Procura-se a finalidade do homem com os métodos da ciência natural; com tais métodos, é óbvio que nenhuma finalidade será encontrada.

O famoso cientista Richard Dawkins escreveu um livro no qual tenta refutar a existência de Deus, e por conseqüência qualquer crença religiosa. Ele procura por evidências empíricas de Deus. Comete um grande engano: tenta descobrir algo não-observável com os métodos próprios para se investigar o que é observável.

Essa crença absoluta nos métodos das ciências naturais à exclusão de todos os outros tem causado danos sérios ao saber humano. Se todo nosso saber for reduzido ao que eles nos permitem conhecer, então teremos apenas o conhecimento sobre a realidade observável; saberemos como funciona o universo, e como produzir tecnologias fantásticas. Mas será que isso basta ao ser humano? Tenho certeza que não. Nas palavras do filósofo Ludwig Wittgenstein: “Mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados”.