sexta-feira, janeiro 07, 2011

A Filosofia no Esquadrão da Moda

Andei vendo uns reality shows de moda. Não me julguem; há jeitos piores de se passar uma noite. Funcionam assim: apresenta-se uma mulher que definitivamente não sabe se vestir; um bagaço desalinhado, enfim, a mess. Acontece que, em geral, ela já está conformada a feiúra e cheia de inseguranças quanto a seus defeitos, embora não saiba o que fazer.

Entram os experts em moda, reviram o guarda-roupas dela, ensinam-lhe o que vestir e como se apresentar, levam-na para umas comprinhas por conta da produção (o atrativo do programa para quem participa é exatamente esse) e, no final das contas, voilà, o bagaço virou mulher, em geral bonita.

O melhor desses programas é o do Tim Gunn, designer que basicamente eleva a moda ao patamar de ciência. Analisando o tipo físico da mulher, é capaz de mostrar a ela os efeitos que diferentes tipos de roupa têm sobre seu físico, o que ela deve evitar e o que deve usar. Um corpo mais cheinho e baixo não vai bem de calça capri, que cria a ilusão de ser ainda menor; as “back-flaps” pouco atraentes são causadas pelo tipo de sutiã usado; um modelo diferente elimina o problema. Enfim, cada mulher tem pontos relativamente mais fortes ou fracos, e a boa roupa é aquela que sabe usar os bons e atenuar os fracos.

Claro que minha apreciação desse tipo de entretenimento é puramente filosófica. O que um programa como esses grita com todos os pulmões? Uma mensagem, olhem só, conservadora: a beleza é objetiva; gosto se discute; há acertos e erros em se tratando de roupa. A feia do começo sempre tem algumas justificativas para o atual estado deplorável: “É o meu estilo; não sigo a moda”; “Sou assim e não tem jeito; não existem roupas para o meu tipo físico”; pseudo-justificativas, que mal e mal escondem profundas inseguranças acerca da própria aparência e de auto-estima.

A própria mulher, inicialmente relutante (depende do caso; algumas estão cientes de seus problemas desde o início), reconhece o progresso e vê como suas justificativas, seus flertes com um relativismo estético, eram espúrias. Vestir-se mal não é estilo; é falta dele.

No final das contas, não há mulher que não possa ser bonita. Claro, existem aquelas com deformidades muito gritantes; fora essas, todo mundo tem um potencial a ser explorado e que pode chegar a bons patamares de beleza. O que ajuda, inclusive, a viverem melhor, ao melhorar a auto-estima da pessoa (que não é gabar-se de méritos inexistentes, mas reconhcer em si um potencial para grandes coisas). O resultado é entretenimento enriquecedor e que ainda oferece algo de sabedoria prática que pode ser utilizado na própria vida (há versões masculinas dos programas, mas em menor número e menos memoráveis; pois a diferença entre o homem desleixado e o alinhado, embora grande, é minúscula se comparada à que existe entre a mulher-bagaço e a elegante.

As meninas da FFLCH poderiam se beneficiar muito da consultoria de um Tim Gunn. Algumas são muito bonitas, de forma que nem as roupas velhas e rasgadas, o cabelo ensebado, as sobrancelhas selvagens e o pé sujo conseguem enfeiar. Outras, coitadas, dão tristeza à vista. Bastaria um olhar externo de alguém que entende do assunto para, com alguns toques determinados, ajudá-las imensamente. Quem sabe até a ideologia venenosa que alimenta e é alimentada pela feiúra do ambiente enfraquecesse um pouco…

segunda-feira, janeiro 03, 2011

O que Hernán Cortés Tem a nos Ensinar

Em 2010 uma serpente emplumada me mordeu e fui tomado de um interesse febril pelos povos meso-americanos. O foco desse interesse estava no primeiro encontro deles com os europeus, que é sem dúvida um momento capital da história universal. Ao mesmo tempo, resultou numa das maiores tragédias da história que foi a destruição dos povos, civilizações e culturas que aqui viviam antes de chegarem as caravelas. A febre já passou, provavelmente para nunca mais voltar. A cura se deu quando cheguei a uma conclusão óbvia, já sabida por muitos, e mesmo por mim, de antemão, mas agora vista com clareza. Deixe-me traçar brevemente o itinerário que percorri.

Nunca fui daqueles que vêem os conquistadores como grandes vilões e os nativos como astrônomos hippies amantes da natureza. Contudo, aprendi que igualmente falsa é a representação do mundo asteca como um reino de horror idolátrico e bestial em níveis dignos de Lovecraft. A história real é bem mais interessante. E uma boa fonte, pela qual comecei, é ler o relato de Bernal Diaz del Castillo, um dos soldados de Hernán Cortés (soldado ralé, o que lhe deixava relativamente isento dos interesses dos poderosos) na expedição que culminou na tomada de Tenochitlán. O que dali emerge é, em primeiro lugar, uma história contingente, acidental, que poderia ter sido muito diferente. Em nenhum momento há um plano consciente de dominação; há oportunidades que são agarradas no calor do momento; há tentativas de amizade e paz, enganações e armadilhas dos dois lados. Durou pouco a impressão de que os espanhóis fossem deuses, embora o apelido tenha permanecido; durou pouco também o horror aos cavalos, que logo estavam sendo sacrificados, junto com soldados capturados, à vista do acampamento espanhol para lhes meter medo. Em um episódio dramático, os conquistadores foram quase dizimados e tiveram que fugir desesperados cada um por si. A varíola chegou casualmente, trazida por um escravo negro; Bernal nota o contágio estranhamente forte entre os indios. Acima de tudo, é uma história de personagens singulares, como Gerónimo de Aguilar, padre franciscano que precedera os conquistadores e que vivera por anos como prisioneiro numa cidade nativa até ser resgatado e tornar-se intérprete de maia do grupo (outro sobrevivente, numa vila próxima, atingiu condição de proeminência e preferiu a nova vida a juntar-se aos espanhóis); La Malinche, a nativa de Tabasco que, além de entender tanto nahuatl quanto maia, tornou-se amante de Cortés e deu-lhe seu primeiro filho homem, considerado o “primeiro mestiço”; Montezuma, o rei asteca, alternadamente astuto e pueril, que embora feito refém pelos conquistadores tornou-se amigo de todos, levando os raptores a chorarem sua morte acidental numa escaramuça (e maldizerem o frade que ainda não o tinha catequizado devidamente).

Dentre todas as figuras notáveis, entretanto, uma se eleva sobre as demais, particularmente forte e enigmática: o próprio Hernán Cortés. Movido ao mesmo tempo por sede de poder e pela lealdade para com seu imperador e colegas, colecionador de amantes e defensor zeloso do Catolicismo, Cortés é um daqueles personagens tão singulares que se pode dizer que, tivesse não existido, o rumo de nossa história teria sido outro. Nada o explica perfeitamente. Sua campanha ia contra os desejos das autoridades espanholas estabelecidas na América, e num momento decisivo ele teve que convencer exércitos espanhóis que vinham combatê-lo a se juntar a ele. Suas cartas, outra leitura indispensável, são um incessante jogo de tecer relações favoráveis com as autoridades locais e com o Imperador para que ninguém entrasse em seu caminho. Ao chegar numa cidade nova, tratava de estabelecer um trato amigável com os chefes, o que lhe seria útil mais à frente. Ao mesmo tempo, fazia questão de instituir o Cristianismo à força, mesmo que de forma tão desastrada e turrona que lhe prejudicasse a estratégia de conquista. Havia um frade no grupo (além de Aguilar, o tradutor resgatado), que, talvez devido a sua experiência com a fraqueza e inconstância humanas, aconselhava uma conduta prudente e tolerante: deixe os nativos com seus ídolos e vícios, evangelizemo-os aos poucos, de forma que eles possam entender a religião e queiram se converter. Cortés não queria nem saber; chegava à nova cidade, queimava os ídolos, erguia uma cruz e um altar à Virgem e ordenava que práticas pagãs (sacrifícios humanos, canibalismo) cessassem imediatamente sob ameaça de guerra. Talvez mais que a sede de poder, guiava-o o desejo da aventura e do heroísmo. Era ele, então, o resultado concreto de séculos de romances de cavalaria, cuja era de sonhos ingênuos chegava ao fim.

Até aqui olhamos o lado espanhol. Para navegar pelas águas desconhecidas do lado asteca só com um bom guia, e quem desempenhou essa função no meu caso foi Miguel León-Portilla, uma das maiores autoridades mexicanas sobre os nahua. Li dois livros seus: um deles é Broken Spears, compilação de relatos astecas da conquista e suas conseqüências (contados a frades espanhóis ou escrito por astecas alfabetizados nos primeiros anos de contato). A devastação da varíola nos momentos mais tensos do combate, o golpe de Estado que os nobres astecas tramavam contra o rei que virara refém subserviente dos invasores; o trauma da queda de Tenochitlán e as humilhações pelas quais os espanhóis os fizeram passar. O outro foi Aztec Thought and Culture, um mergulho nos pilares espirituais e filosóficos da cultura nahuatl. Como fontes primárias, longas folheadas pelo monumental Historia Generale de las cosas de Nueva España do frade Bernardino de Sahagun, cujos esforços em conversar com os sábios do mundo asteca (os tlamatinime, mestres das academias) e de tudo catalogar constituem a principal fonte de nosso conhecimento do povo de Tenochitlán; sobre os maias, a Relación de las cosas de Yucatan do bispo Diego de Landa, o responsável por quase tudo o que sabemos deles e, ao mesmo tempo, pela destruição de tudo aquilo que poderíamos ter (como a imensa maioria dos livros maias), num zelo tirânico à la Savonarola repreendido até pela Coroa espanhola. Para completar minha imersão, adquiri uma edição restaurada do Códice Bórgia, um códice asteca pré-colombiano com calendários astrológicos e representações de deuses, de sacrifícios e do lugar do homem no mundo espiritual.

A cultura nahuatl chama a atenção principalmente por suas artes decorativas e desenhos altamente estilizados. Quem vai ao México nota como tudo é impregnado pelas cores vibrantes e padrões geométricos dos antigos astecas; sem falar de sua culinária flamejante, cujos principais ingredientes, a tortilla, o abacate, o tomate, os feijões, a pimenta ainda são a base da cozinha nacional. Indo um passo além da primeira impressão preconceituosa, desintegra-se a idéia de que se tratavam de selvagens lunáticos perdidos em cultos idolátricos. Quem imaginaria os psicopatas sanguinários de Apocalypto de Mel Gibson compondo versos, cultivando um fino artesanato e indagando sobre a condição humana? Pois faziam justamente isso, e se não chegaram a desenvolver uma filosofia com argumentos racionais rigorosos, o embate de diferentes concepções de vida e de universo (questões ligadas à vida após a morte, aos deuses, a como ser feliz) ocorria por meio da poesia transmitida oralmente, e que foi finalmente escrita com a incorporação do alfabeto latino. Por trás do politeísmo da superfície a visão de mundo asteca era monoteísta, tendo em Ometeotl – uma divindade dual – o senhor de, e que dá a vida a, todas as coisas. Não tinham escrita, é verdade, e eles próprios se viam como existindo à sombra dos toltecas, cultura anterior cujo nome virara elogio. Era por desenhos que representavam a história, os rituais, os calendários, os modos de vida. Há beleza nessa simbologia pictográfica, a começar pelo usos das cores (o preto e o vermelho, por exemplo, eram usados para tratar de temas sagrados) e no desenho estilizado de figuras humanas e divindades. E nem por carecer de escrita era sua língua pouco sofisticada.

A língua nahuatl prestava-se naturalmente à poesia. Fazia, por exemplo, amplo uso de difrasismos, união de dois termos com significado metafórico único (o nosso “caras e bocas” seria um possível exemplo, embora o sentido da expressão seja próximo demais do dos termos empregados), como “vermelho e negro” para o que se refere ao sagrado, “rosto e coração” para a totalidade do ser humano (exterior e interior juntos), “flor e canto” para a poesia, “noite e vento” para tudo o que é abstrato. Revirando um pouco a poesia filosófica deles (deixei León-Portilla fazê-lo por mim), encontra-se um embate entre epicuristas e religiosos, louvores à arte como máxima manifestação do potencial humano, diferentes teses sobre a origem do mundo, cosmogonias e cosmologias.

Aos poucos, contudo, gota a gota, uma percepção clara foi se depositando nas fronteiras da minha consciência até penetrá-la. No princípio tapei os ouvidos, quis atribuir tudo à carência de fontes, ao meu desconhecimento, ao fato de não ter ido ainda às outras fontes primárias (frade Motolinia, José de Acosta e muitos outros); mas não deu, tive de finalmente admitir: o povo que construiu as pirâmides de Tenochitlán estava longe, muito longe, de escrever um Don Quijote, ou uma Suma Teológica, e nele não apareceriam um Shakespeare ou um Velázquez tão cedo. León-Portilla estica cada verso da poesia asteca ao limite das possibilidades interpretativas e mesmo assim parece pouco se comparado, digamos, a qualquer diálogo de Platão; sei que muito foi destruído ou perdido, mas não é provável que o que tenhamos, que inclui informação tirada das maiores autoridades astecas sobre sua própria cultura, seja muito diferente, e substancialmente pior, do que aquilo que se perdeu. Havia impedimentos internos a essas culturas que não foram superados. Os maias, por exemplo, tinham uma escrita muito elaborada, e o que os poucos códices que sobraram nos dizem? Como tantos outros povos antigos, excetuando relatos históricos que são sempre interessantes, seus maiores esforços intelectuais iam para elaborar grandes sistemas mágicos e astrológicos. O calendário maia é um feito impressionante; mas a que se presta? A teses completamente errôneas sobre o universo. O Códice Bórgia é lindo; mas o que retrata? Datas astrológicas, deuses, sacrifícios, enfim, cosmovisões maravilhosamente falsas. É o sonho academicista: um sistema complexo recheado de minúcias internas sem nenhuma relação com a realidade que originalmente buscara explicar. Dá boas dissertações, mas como cultura é fraco.

O que o Ocidente (o nome é ruim, pois geograficamente o México é mais ocidental que a Europa) tem, e já tinha na época, que o permitiu superar tais esforços estéreis? Poderíamos estar até hoje fazendo astrologia, alquimia e criando epiciclos para manter as aparências do geocentrismo. Por que não estamos? Porque temos uma cultura de valorização da razão e na qual o indivíduo não é constantemente obrigado a se conformar à massa, à autoridade e à tradição. Na Europa o súdito não era propriedade do rei, nem de corpo e muito menos de espírito. Hoje não parece, mas um Tomás de Aquino em sua época propunha uma inovação sem precedentes, rompendo com muito da tradição neo-platônica (sem deixar de lado seus melhores elementos); igualmente inovadora foi a rejeição bem-vinda de grande parte da ciência aristotélica alguns séculos mais tarde; amigos de Aristóteles, mas mais amigos da realidade. O rompimento com a tradição exige coragem de indivíduos que não têm vergonha de propor coisas novas. Essa postura está em última análise ligado ao Cristianismo? Suspeito que sim. Seja como for, é algo que o Ocidente tem e o resto do mundo, até recentemente, não tinha; e explica muita coisa, e permite, no campo prático, figuras como Hernán Cortés. Foi a Espanha que chegou à América, e não vice-versa. Os astecas não tinham caravelas, e muito menos navegadores audazes para se lançar em busca de novos mundos (e de fato, é a existência de tal espírito que cria a demanda por caravelas). Está certo que esses mesmos descobridores eram capazes de barbaridades, mas são precisas muitas virtudes para que um vício tenha efeitos devastadores.

E não pensem que as atrocidades da conquista fossem monopólio nosso; na história asteca, por exemplo, uma das figuras mais importantes foi Tlacaelel, conselheiro do rei em meados do século XV d.C., que militarizou a sociedade e intensificou os sacrifícios humanos; dentre as suas políticas estava a destruição sistemática de livros em que Huitzilopochtli, o deus da guerra, não fosse apresentado como a divindade suprema. O tratamento que esse império dava às cidades vizinhas era brutal. Quiçá o estrago humano e cultural teria sido ainda pior se os papéis fossem trocados. Mas um erro não justifica o outro. A escravização, dizimação e destruição cultural dos povos pré-colombianos foi um crime sim, uma mácula histórica que o Ocidente nunca poderá apagar. Só que isso também não apaga um brilho do qual temos motivo de orgulho; o autor do crime é, apesar do crime, culturalmente superior. Não me dá prazer afirmá-lo – minha tendência natural é multi-cultural, sincrética e pluralista; vejo valor em cada penacho folclórico – mas o fato grita a qualquer um que queira ouvir. Começo 2011 com a alegria de redescobrir o que sempre fora meu; um legado que se preserva não por ser tradicional, mas por ser bom. Posso estar completamente errado? É possível. Em 2012 saberemos.