segunda-feira, junho 28, 2010

Salvem as crianças!

Quando o assunto é criança, a racionalidade - especialmente dos pais - não tem vez. Tudo vale a pena “pelo bem das crianças”. Nenhum sacrifício é grande demais, nenhum inconveniente é relevante, a própria análise de custo-benefício é moralmente suspeita. A indústria de artigos para bebês bem sabe disso, e sempre inventa novos produtos “essenciais”, que os pais ansiosos (especialmente os de primeira viagem - meu caso) comprarão sem hesitar. Como será que os bebês sobreviveram por tantos séculos sem nossos 60 tipos de fralda e 300 variedades da chupeta? Sem falar nos CDs educativos para recém-nascidos.

Mas tem coisas que nem o pai mais desesperado do mundo deveria engolir; a lei da cadeirinha nos automóveis é uma delas. A partir de primeiro de setembro, será obrigatório, no transporte de crianças de até sete anos e meio, levá-las numa cadeirinha que é instalada no banco traseiro, e que vem em três tipos, um para cada faixa de idade. Sim, sete anos e meio.

Primeiro ponto: é claro que a cadeirinha aumenta a segurança em caso de acidente. Assim como andar na rua de capacete e colete à prova de balas diminui o risco de se ferir gravemente ou até morrer (tropeções, assaltos, balas perdidas, meteoritos; nunca se sabe). Um toque de recolher às 10 da noite (o que um homem de bem faria na rua a essa hora?) também seria ótimo para a segurança. Aliás, o melhor seria ficar sempre em casa, e só sair em casos emergenciais. Evitaríamos muitas mortes.

Só que evitar mortes não é tudo; existem milhões de considerações relevantes. Cada medida de segurança traz consigo um custo (dinheiro, perda de tempo, dor de cabeça), que pode ou não superar o benefício esperado. Botar o cinto de segurança tem um benefício esperado positivo e o custo é quase nulo, então sempre ponho. Mas algumas vezes, quando vou atrás num carro que não é meu, o cinto está enfiado embaixo do banco. Nesse caso, o trabalho de ter que levantar o banco e pedir para o meu amigo parar, na minha opinião, supera a segurança adicional que eu teria durante o traslado e a sensação reconfortante que o cinto oferece. Posso estar errado, e um acidente terrível acontecer bem dessa vez; ninguém é onisciente. Mesmo assim, pela minha estimação (o trajeto é curto, meu amigo guia bem, não correremos), a segurança extra não compensa o estorvo.

Outro cenário: sua tia-avó vem para o almoço, e ela faz questão de comer sorvete de papaia na sobremesa. A quinze minutos dela chegar, você abre o congelador e constata horrorizado que o sorvete acabou. Considere que há dois jeitos de guiar o carro até a padaria: cautelosamente, que é mais seguro, ou temerariamente, o que aumenta o risco de acidente, mas é mais rápido. Em condições normais de temperatura e pressão, você, sujeito sensato, minimizaria o risco de morte; mas com a tia-avó a caminho, cada segundo é precioso. Aceitar o risco extra é perfeitamente racional: você sabe que o percurso é curto e confia na sua destreza ao volante; sabe que, mesmo guiando apressado, o risco é baixo. E voilà, volta são e salvo com o troféu de papaia em mãos.

Se até coisas básicas como cinto e direção cautelosa admitem exceções, quanto mais o trambolho que são as cadeirinhas infantis. Tiram um assento útil do veículo, são caras (o bebê-conforto, que é o assento para bebês muito pequenos, custa uns 200 Reais) e chatas de instalar. Isso para quem tem um filho. Quem tem três pode desistir de passear legalmente com a família completa. Quando eu era bebê, minha mãe me levava no colo e, a partir de uns 3 ou 4 anos de idade, eu ia atrás sozinho, muitas vezes sem cinto (para poder deitar) - era ótimo e cá estou, vivo. Hoje em dia, as enfermeiras da maternidade cometeriam suicídio em massa se eu sequer levantasse a possibilidade de transportar o bebê da forma antiga. Por causa da nossa neurose por segurança e saúde, quem não adere aos novos produtos e medidas é visto como um monstro sem coração. Um fenômeno social problemático, mas até aí tudo bem; ninguém é obrigado a seguir a opinião pública. É quando ela vira lei positiva que se torna inaceitável. Vamos admitir em alto e bom som: sim, há situações em que um minúsculo acréscimo na insegurança dos filhos se justifica por outros benefícios. E digo mais: todo pai minimamente são do planeta concorda comigo. Levar o filho a um restaurante aumenta suas chances de contrair doença; mas os benefícios de fazê-lo em geral superam esse risco adicional. QED.

É sintomático da nossa cultura que o único debate acerca da lei seja entre os que querem aplicá-la apenas a veículos de passeio e os que querem aplicá-la a todos os veículos (ônibus, táxis etc.). É inócuo, mas ao menos explicita o absurdo a que ela nos obriga, pois ou se aplica-a arbitrariamente a apenas alguns casos, ou se chega a situações obviamente estapafúrdias, como um ônibus comum perdendo assentos úteis para instalar cadeirinhas que ficarão sub-utilizadas. E se chega uma criança quando todas já estiverem ocupadas? Ficam ela e o pai barrados na porta? E o taxista, vai guiar por aí com as três variedades de cadeirinha no porta-malas? Um leve inconveniente.

Alguns objetarão que os acidentados custam para a saúde pública, e portanto a lei é bem-vinda. Antes, todos pagavam por um número X de acidentados. Agora, todos pagarão por um número menor, mas há, em contrapartida, o aumento do custo dos pais em comprar e instalar (e desinstalar, e instalar de novo) as cadeirinhas. O custo total é maior ou menor? Impossível saber (não que o governo tenha sequer tentado). Mas podemos ter certeza de que continuará a faltar dinheiro para a saúde, cujos gastos abusivos e onerosos devem-se ao eterno problema da saúde pública... o fato dela ser pública. Uns usam, outros pagam, a sociedade perde. Não se corrigirá esse problema sistêmico com leis punitivas para quem possa vir a precisar dos serviços médicos. A real solução, que é também a mais justa, é a única que o sistema não pode aceitar: cada um pagar pelo que utiliza.

Pesamos riscos e oportunidades, custos e benefícios, a todo o momento. O que vale numa situação pode não valer em outra. Se a pessoa julga que um dado benefício supera o risco que ele traz, isso é uma decisão dela e que só ela pode fazer, pois é ela que auferirá os ganhos e arcará com os prejuízos de suas escolhas. Eu usaria o bebê-conforto se não fosse obrigatório? Provavelmente. E a cadeirinha para o bebê de três anos? Provavelmente não. Outras pessoas prefeririam diferentes soluções, o que é ótimo: cada um toma as precauções que julgar cabíveis em suas condições específicas. O justo é também o eficiente.

terça-feira, junho 15, 2010

Livre mercado para além do mercado

O homem é podre, um mentiroso e trapaceiro contumaz, que estupraria e mataria sem remorso se lhe fosse dada a possibilidade de fazê-lo sem ser pego. É apenas o medo da cadeia (foi-se o tempo em que o medo da punição divina valia para algo) que nos mantém a um passo da auto-destruição final. É isso mesmo?

Bom, então considere a seguinte situação. Semanas atrás, precisei de um adaptador de tomada (graças ao novo padrão imposto pelo governo para sanar um problema inexistente). Fui até uma lojinha de material elétrico próxima, mas eles não tinham; o vendedor me indicou uma outra loja na rua. Notem, ele não precisava ter feito isso; essa outra loja é sua concorrente em vários serviços. Fui à nova loja, e vi que o melhor era comprar logo uma tomada nova. Só não sabia se era uma de 10 ou 20 amperes. Solução? O vendedor me deixou levar a de 10, testá-la e, se não fosse, trocar pela de 20. Novamente, algo que ele não precisava ter feito.

Ações que, no curto prazo, parecem danosas à loja (vender uma tomada ao invés de duas), no longo prazo compensam (ganhar a confiança do cliente). E são fatos absolutamente banais e corriqueiros no mercado, como qualquer um sabe. Os homens não são crápulas sempre à procura de uma oportunidade de engambelar o incauto. O nosso modo de vida é baseado na cooperação, e essa não é forçada ou dissimulada, mas voluntária e em geral sincera, caso contrário não funcionaria. A idéia do egoísta esclarecido que se comporta exatamente como um homem bom exclusivamente por motivos egoístas é um mito; caráter e ações não são realidades separadas. O mercado é exatamente o processo pelo qual essa ajuda mútua é facilitada e incentivada, pois harmoniza o bem de cada um com o bem dos demais. A confiança e a confiabilidade são remuneradas, e as práticas anti-sociais punidas.

Claro, isso não garante que todos serão bons. A minha compra de tomada estava, por exemplo, ligada à compra de uma lava-louça cuja instalação deu um enorme problema, custando muito tempo e dor de cabeça em conversas frustrantes com o SAC da empresa. E isso se explica. Empresas grandes têm que ter uma política padronizada de trocas e outros serviços gratuitos para impedir que, de pequenas decisões generosas de muitos vendedores e atendentes, emirjam grandes prejuízos. Mas mesmo nelas, na medida em que têm que sobreviver no mercado, o que prevalece é a cooperação. Vejam só: saindo uma vez do caixa do McDonalds com o almoço na bandeja, derrubei o refrigerante no chão. Qual a reação dos atendentes? Deram-me um novo. Eles sabem que brigar por migalhas é prejudicial para eles próprios, mesmo que isso lhes custe uma Coca. E até no caso da lava-louça, no final das contas, a empresa responsável pela instalação forneceu a peça nova.

São exemplos casuais - cada leitor terá vários - que ilustram um fato antropológico e moral. O homem não é um calculista a espera da primeira oportunidade de passar a perna. Quem age assim prejudica a si mesmo; confiança e boa vontade são características muito difíceis de se dissimular ao longo do tempo, e constituem parte importante do capital humano. Quanto menos confiança, mais advogados, juízes, contratos, e menos possibilidades de transação; tudo isso tem um custo, não apenas monetário. Por outro lado, boas relações resolvem problemas de ambos os lados e deixam todos felizes, criando laços de boa vontade. Como Aristóteles já apontara, o fazer negócios juntos, a harmonia de utilidades, estabelece entre as partes um tipo de amizade.

A cooperação livre entre os homens é um fato; é um fenômeno que emerge naturalmente, sem qualquer necessidade de uma autoridade estatal para regular, controlar, medir e definir (o que só congela e endurece o que deveria ser fluido e flexível para melhor se adaptar às infinitas circunstâncias dos homens). E essa cooperação se dá em todos os níveis da sociedade; não é privilégio da “elite”, embora seja isso mesmo que vai acontecer se o governo continuar a dificultar e proibir a existência de versões mais baratas e populares; se o padrão mínimo legal for o Golf, não existirão nem Gols, nem Fuscas, nem Brasílias; mais gente andará a pé.

Mais um exemplo banal: um dia, indo para o aeroporto, vi num trecho ao lado esquerdo da marginal, acho que junto a uma rampa, barracos num espaço muito estreito. Um deles, apertado entre os demais, era uma barraquinha de comes e bebes. Está aí a força vital do espírito humano, que não deixa de inventar soluções nem sob as condições mais inóspitas. A condição do lugar era, para nossos padrões, deplorável; mas aquela barraquinha tornava-a um pouco melhor. Não seria um crime matá-la com regulamentações as quais, obviamente, o dono nunca seria capaz de obedecer? Pois o momento em que um fiscal do governo passasse por lá seria o momento em que aquele pequeno oásis deixaria de existir. Ainda bem que o governo não vê tudo, e que existe a corrupção! Imagine se as regulamentações e tributos do país fossem seguidos sempre e à risca; camelôs, vendedores piratas e, enfim, todo o mercado informal, que beneficiam tantos consumidores e empregam tantos trabalhadores, sumiriam. Hoje em dia, eles funcionam fora da lei; e - surpresa! - funcionam. Sem decretos políticos, sem vereadores e deputados inúteis, o Promocenter ia muito bem obrigado.

Quando o dinheiro sai da jogada, fica ainda mais claro. Vejam o couch-surfing: pessoas disponibilizam suas casas para viajantes se hospedarem de graça, e sabem que, quando viajarem, também encontrarão pousada. O único sistema de controle são as opiniões dos próprios usuários publicadas no site. Qualquer um pode se cadastrar. E adivinhem: funciona muito bem, como um amigo meu que já hospedou gente do mundo inteiro pode garantir. Haveria algo mais contrário ao espírito dessa rede do que se o governo decidisse “regulamentá-la”, criando requisitos mínimos para as casas (“devem ter pelo menos dois banheiros e um sistema de combate a incêndio certificado”) e para os viajantes (“devem enviar, duas semanas antes da visita, cópia autenticada do passaporte e trazer inventário da bagagem pessoal”)? A quantos seriam reduzidos os membros dessa comunidade vibrante? Pois a mesma destruição burra ocorre em tantos outros serviços; a diferença é que estamos acostumados e não percebemos o quão melhor eles poderiam ser. Por que absolutamente todo estabelecimento comercial deve ter uma lixeira na frente? Por que um shopping precisa de 5% de vagas para idosos? Por que toda vitrine deve ter tarja sinalizadora? Soluções pontuais são transformadas em imposições ossificantes; o que é inteligente em alguns casos pode ser estúpido se transformado em lei universal.

Trata-se de um problema de mentalidade, que afeta todos os políticos, burocratas, legisladores, advogados e engenheiros sociais que acreditam que suas definições mal-escritas num pedaço de papel criam e ordenam as relações humanas; quando na verdade as corrompem e destroem. A imensa maior parte da classe política brasileira não só é inútil como prejudicial à nação. Ao invés de punir os crimes (roubos, fraudes), querem prever e delimitar o que é mutuamente benéfico, limando de imediato todas as manifestações que escapam a seu olhar estreito.

O número de impostos, de encargos, de regulamentações e de regras aos quais estamos sujeitos (e mesmo assim, pode ter certeza que se um fiscal quiser, ele encontrará alguma infração - são 85 tributos e dezenas de milhares de leis) não nos afetam apenas na “esfera econômica da vida”, como se a vida humana fosse divisível em partes estanques, e como se o trabalho e o consumo fossem realidades menores, de pouca importância. A guerra de independência americana foi travada por muito menos. E ainda se acredita na mentira de que a liberdade interessa aos ricos. Isso é falso. O liberalismo econômico não é o sistema das grandes empresas, dos grandes bancos, dos tecnocratas. Claro, algumas grandes empresas seriam beneficiadas com um mercado mais livre; mas elas não seriam as maiores ganhadoras, mesmo porque muitas recebem ajuda do governo, seja direta (concessões, subsídios) ou indireta (as regulamentações infinitas e encargos pesados que impedem a existência dos pequenos). O principal beneficiário do liberalismo é todo homem honesto em suas relações cotidianas, que estão cada vez mais burocratizadas por um sistema desumano que demanda sempre mais recursos para se sustentar.

Ser livre significa, enquanto consumidor, poder escolher aquilo de que mais gosta na gama de preços e qualidades compatível com sua própria renda; enquanto produtor, poder trabalhar no que quiser, e prover que serviço quiser, da melhor forma que souber, sem que ninguém lhe impeça; e, enquanto ser humano, viver de acordo com o que se considerar o melhor sem ser impedido por ninguém e sem impedir ninguém de fazer o mesmo. Sem precisar de aprovação por qualquer órgão que seja, apresentar documento algum e nem emitir nota fiscal, pois o fisco não tem direito nenhum de saber o que você faz da vida e muito menos de puni-lo se for bem-sucedido. A liberdade permite que, ocasionalmente, alguém aja mal? Sim. E para alguns desses casos (os que violem direitos alheios) existem as leis e os tribunais. Mas, e isso é muito mais importante, é só ela que permite que os homens ajam e vivam bem, e que criem soluções novas e adaptem antigas para seus problemas e melhorem todas as esferas (não apenas a econômica, o comércio e a venda de ações) de sua existência.

quarta-feira, junho 02, 2010

Nem tudo funciona

Seria Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works) um manifesto pessoal do próprio Woody Allen, talvez uma autojustificativa? Seja como for, não funciona, ao menos para mim. A casca atrativa e talentosa de qualquer obra que saia das mãos do diretor cobre incoerências e desonestidades que botam o todo a perder.

Boris (cujo ator, tanto fisicamente quanto na fala, lembra muito o diretor) é um velho gênio da física, fracassado, divorciado, sem Nobel, que vive sozinho e se sustenta ensinando xadrez para crianças só para humilhá-las; tentou o suicídio mas até nisso fracassou. Eis que, por um enorme acaso (o motor dos filmes de Woody Allen), cruza seu caminho a linda e jovem Melodie. Fugida de sua casa no Mississipi, perdida e desnorteada na Big Apple, convence-o a deixá-la passar uns dias com ele até arranjar emprego. Uma amizade improvável se estabelece, e Melodie, embora ingênua, revela-se uma ávida pupila, que absorve entusiasticamente a cosmologia niilista do velho mestre sem deixar abalar sua alegria e bondade naturais.

Os dias viram meses, a amizade vira amor e eles se casam. A vida transcorre perfeita até que a mãe de Melodie, Marietta, recém-abandonada pelo marido, encontra-a em Nova Iorque. Inicialmente, essa cristã fundamentalista (no estilo evangélico americano de ser: bem-intencionada e moralista, expansiva e desastrada) é só atrito com Boris e seus amigos boêmios. Mas muito em breve ela segue o caminho da filha: cede às tentações do liberal life-style nova-iorquino e, poucas taças de vinho depois, consagra-se como fotógrafa pornô-conceitual e divide a cama com dois homens. Agora é a vez do pai de Melodie, que chega em busca da ex-esposa. Felizmente, sua dor em perdê-la – não para um, mas dois ex-hippies – dura pouco: afogando as mágoas num bar, deixa aflorar o homossexualismo reprimido e descobre o amor verdadeiro num quarentão bem-apessoado.

Se até agora parece um show de horrores, Woody Allen faz com que não seja. Há certas qualidades (podemos chamar de “mínimo estético”) com as quais sempre podemos contar em seus filmes. Em algum nível ele funciona: história bem contada, boas tomadas de Nova Iorque, gente bonita, diálogos espirituosos, tipos bem construídos, algumas percepções iluminadas. O que revela o talento artístico de Marietta são as fotos caseiras que ela tirara da filha nos concursos de Miss. Um intelectual pretensioso considera-as geniais, “primitivistas” (nesse momento ainda não se sabe se a opinião é sincera ou só uma manobra para levá-la para a cama – aliás, bem-sucedida). E mesmo depois de sua transformação, a mãe preserva o mesmo projeto pessoal: separar a filha do perdedor geriátrico com quem se casou e juntá-la a um jovem promissor que conhecera nos primeiros dias na cidade. Certas atitudes demasiado humanas perpassam todo o espectro teológico-político, e o filme aponta-as com graça e perspicácia.

O plano materno dá certo: a menina se apaixona novamente e deixa Boris a ver navios. Ele tenta se matar mas falha novamente: pula da janela e cai sobre uma desconhecida com quem terá um novo caso. A cena final é uma festa de ano-novo entre os personagens, todos de bem com a vida: homossexualismo, poliandria, troca de parceiros; o que funcionar para cada um. Boris nos dá seus pensamentos finais: não existe ninguém “lá em cima”. O importante é cada um encontrar sua felicidade, sem dar muita bola para regrinhas moralistas. Mas algo não está certo. Estaria Woody sendo irônico, pregando-nos uma peça com esse final de sitcom e com esse acaso que a todos salva? Saí do cinema sem saber. Mas para que o filme não seja um mero exercício em pointlessness, tem que haver algo de genuíno na mensagem, mesmo que aceitemos que ele ridicularize também a intelligentsia nova-iorquina em suas pretensões artísticas e filosóficas. Boris, o cientista, vê além delas e enxerga o absurdo da existência; mas se compraz verdadeiramente de que todos tenham encontrado sua felicidade.

Por baixo de Whatever Works esconde-se o anything works. A tradução brasileira fugiu à letra do título mas captou seu espírito: Tudo Pode Dar Certo, com ênfase no “tudo”. O resultado é incoerente: niilismo cósmico temperado com um pueril “cada um é feliz à sua maneira”, que não consiste no hedonismo carnal (o que seria moralmente detestável, concordo, porém consistente), mas num estado sentimental: estar apaixonado e se sentir acolhido. Nesse ponto Woody Allen ficou atrás do Orkut, que hospeda já há anos a comunidade “niilismo miguxo”, cuja mistura de Nietzsche e Hello Kitty! no fundo cor-de-rosa representa muito bem o espírito do filme. A incoerência das idéias reflete-se na incoerência da rabugice gostosa e bem-humorada do personagem central que, imagino, seria amargo e desagradável se existisse na realidade (mais aos moldes do verdadeiro Woody Allen). No mundo do filme, ninguém tem ciúmes nem mágoas, ninguém desgosta de ninguém, ninguém trabalha mas são todos independentes, não há escolhas erradas, culpa e nem remorso; é tudo na base do amórrr (sem consequências, claro) e do bom humor. Parece realista?

Já que se encarna o espírito de “no regrets”, “faz o que tu queres, pois é tudo da lei”, por que não levá-lo a sério, e mostrar versões alegres do incesto, da bestialidade e da pedofilia? Não funcionaria? Então existem critérios objetivos que determinam o que pode funcionar? Faltou coragem de enfrentar a questão, e essa timidez desonesta é o ponto fraco no cerne da obra. Na minha opinião, a coisa seria muito mais interessante, em vários níveis, se Melodie fosse a filha adotiva de Boris.