quinta-feira, novembro 20, 2008

Problemas Libertários

Apesar de toda a ideologia perversa por trás do dia da consciência negra, ao menos é feriado, e por isso sou grato. Dias sem obrigações são ótimos para se dedicar a atividades lúdicas, e coisas mais divertidas, como... dissertar sobre uma aparente inconsistência lógica no anarco-capitalismo.

A defesa do anarco-capitalismo é feita com base na idéia de uma moral objetiva e anterior a qualquer governo. Até aí, perfeito; qualquer pessoa com um mínimo de sensatez admite que o certo e o errado existem objetivamente, isto é, decorrem da natureza humana, e não da vontade de algum indivíduo ou instituição. Uma moral objetiva significa que nem tudo vale; algumas ações são erradas e não devem ocorrer. O problema do libertarismo (usarei libertarismo e anarco-capitalismo como sinônimos) é exatamente conciliar isso com a inexistência do Estado.

A filosofia libertária baseia-se no princípio de não-agressão. Para dar conta do problema dos recursos escassos (que geram conflitos e, portanto, agressão), existe todo um sistema de regras para determinar quem é o dono de algo. A principal delas - e com razão, por se basear no senso comum humano - é a da apropriação original. Se algo não tem dono, a primeira pessoa que o utiliza, que mistura seu trabalho com ele, vira o dono. Faz todo o sentido.

Pela própria teoria libertária, é preciso que a pessoa de fato utilize o bem que ela deseja apropriar. Não basta apenas dizer que se é o dono ou, no caso da terra, cercá-la. Caso contrário, alguém poderia simplesmente comprar arame e sair cercando propriedades gigantes de floresta. Pela filosofia libertária, o cercador é, se muito, dono apenas da fina faixa por ele cercada; o vasto interior da cerca permanece sem dono. Se alguém pulasse lá de pára-quedas, poderia se apropriar da terra.

Mas se não há um Estado para fazer valer essa lei (e esse é apenas um exemplo), ela não passará de uma idéia morta e ineficaz. O que impedirá um homem ou grupo de homens qualquer de cercar uma terra enorme e declarar-se dono dela, sem deixar que ninguém entre, expulsando inclusive os pára-quedistas espertinhos? Como esse, existem muitos outros casos em que a aplicação do direito libertário depende de alguma autoridade com poder coercitivo. A própria determinação das penas justas para cada delito necessitaria de uma instância suprema que a impusesse.

A resposta sempre recai nas agências de segurança e de justiça, que funcionam como Estados (defendem, julgam e punem), mas com relação à qual os indivíduos são consumidores. Qualquer um pode deixar de ser cliente de uma empresa para sê-lo de outra. Sendo assim, as empresas refletirão a crença de seus clientes sobre o que é certo (ou então do que crêem ser o mais benéfico para si). As que não o fizerem, logo sairão do mercado. Portanto, a não ser que a população seja e viva pela filosofia libertária, a filosofia libertária não vigorará sem a existência do Estado.

Assim, para o anarco-capitalismo existir, não basta que o Estado deixe de existir. É preciso que todas as pessoas sejam anarco-capitalistas convictas e sinceras. Caso contrário, as empresas de proteção e justiça operarão segundo outros critérios, inclusive segundo o critério de que é justo, em alguns casos, iniciar uma agressão. E quem vai impedi-las, se elas forem as mais fortes?

A maioria dos sistemas políticos não requerem que seus membros adiram todos à filosofia política em vigor; basta o consentimento tácito (a ausência de revolta). A grande maioria dos homens não precisa nem pensar no assunto. Pode viver normalmente e se dedicar a outras preocupações. A ordem social está estabelecida e é estável; crimes são punidos e há uma autoridade para fazer valer a justiça, quer se goste ou não.

Num mundo onde as leis às quais cada um se submete dependem da vontade de cada pessoa (o que inclui, se ela quiser, não estar sujeita a lei nenhuma), há alguma dúvida de que grande parte irá simplesmente se filiar a empresas de justiça e proteção que defendam os seus interesses, muitas vezes contra algum outro grupo ou indivíduo? E há alguma dúvida de que, fora um ou outro libertário de carteirinha, pouquíssimos aderirão a algo semelhante ao código de leis naturais libertário?

segunda-feira, novembro 03, 2008

Um novo tipo de democracia

A grande vantagem da democracia sobre outras formas de governo é que ela permite a transição pacífica de poder quando as idéias e os valores da maioria da população mudam. No longo prazo, qualquer governante precisa do apoio ideológico (ainda que tácito) da população. Mesmo um tirano sanguinário precisa do consentimento do povo para reinar. Não é ele que fisicamente obriga seus ministros e generais a obedecer suas ordens; e esses, por sua vez, também não têm poder físico coercitivo sobre aqueles que comandam. Esse poder depende de que os generais aceitem a autoridade do tirano, que os soldados aceitem a autoridade dos generais, e assim por diante.

A ordem social está baseada, antes de tudo, em crenças, nas quais o poder coercitivo se baseia para punir detratores minoritários. Se, amanhã, os generais deixarem de obedecer ao presidente, ou os soldados deixarem de obedecer aos generais e os policiais a seus superiores, a ordem política do país é imediatamente extinta. O mesmo se dará se a maioria da população deixar de aceitar a autoridade do governo e se revoltar contra ela. Os laços de poder dependem sempre da aceitação voluntária da autoridade dos superiores por grande parte dos subordinados.

Assim, se houver uma mudança radical na mentalidade da população, de forma que ela não mais tolere o jugo dos governantes atuais, a queda destes é inevitável. Outros governantes, que representem idéias, valores ou condutas diferentes virão substituir os antigos. Se o governo for monárquico, o rei será deposto, o que raramente se dá sem violência (a não ser que ele deixe o trono de bom grado, como ocorreu no Brasil). Na democracia, essa transição ocorrerá por meio das urnas, pacificamente, e isso é uma grande vantagem.

No entanto, se a democracia assegura a paz, ela o faz ao custo de tornar cada cidadão um pequeno dono do Estado. Cada um vota com seus interesses em mente, esperando conseguir do governo aquilo que ele quer. Todos tentam viver às custas de todos, tirando uns dos outros, pelo braço armado do Estado, os bens almejados. O resultado final dessa situação é a piora geral; se todo mundo quer tirar, e ninguém quer produzir, não restará nada a ser tirado. Na esfera pública (governamental), o auto-interesse de cada um leva à piora geral.

Como fugir dessa conseqüência nefasta da democracia? Num passado não muito remoto, isso era feito por meio do voto censitário. O governo servia para proteger a propriedade; assim, votava quem tinha propriedade a ser protegida. No entanto, se naquela época isso já permitia abusos e clientelismo, esse sistema seria ainda mais distorcido hoje em dia, visto que grande parte dos empreendimentos são financiados pelo Estado e é ele que remunera o grande capital.

Muito mais relevante do que a distinção entre pobres e ricos é a distinção entre quem paga e quem recebe impostos. Um trabalhador privado que utilize poucos serviços públicos e pague seus impostos dá mais dinheiro ao Estado do que recebe em serviços assistenciais. Já um funcionário público recebe impostos (seu salário é integralmente constituído deles). O mesmo vale para um empresário cujo negócio é financiado pelo banco estatal; ou para o usuário contumaz da saúde pública; ou para quem recebe renda de títulos públicos. A matemática é simples: se há gente que, liquidamente, recebe mais do Estado do que paga a ele, então há gente que paga mais do que recebe. A proposta política também é simples: só vota quem sustenta o Estado, isto é, quem paga mais do que recebe.

É bem possível que as pessoas continuem votando de acordo com seus interesses pessoais. Mas a partir do momento que o eleitor deixa de ser explorado pelo Estado e se torna um explorador, ele deixa de ser eleitor. Um político pode se eleger com o voto agrário, prometendo vastos subsídios agrícolas. Se o plano for colocado em prática, sua base eleitoral, os agricultores, não votará nas próximas eleições. Votarão aqueles que tiveram de pagar pelo subsídio e nada receberam em troca.

O grande problema dessa idéia seria sua implementação. Como medir o quanto cada um paga e recebe do governo? Certamente a tecnologia informática atual permite contabilizar os impostos pagos e a maior parte dos serviços recebidos. Um cadastro digital nacional seria necessário. Se esse cadastro substituir a papelada que inexplicavelmente ainda se requer dos cidadãos, ele poderia ser feito sem aumentar a burocracia estatal. Quem sabe é esse modelo de democracia que pode nos levar a um governo limitado e eficiente sem, com isso, perder a estabilidade pacífica da ordem democrática e nem eliminar do eleitorado permanentemente qualquer setor da população.