Se passeio na Cracolândia à noite com um relógio de ouro à mostra falando no meu iPhone 5, há uma boa probabilidade de ser roubado. Se eu for roubado, a culpa é do assaltante, e não minha. Contudo, quem negará que a minha conduta aumentou a probabilidade de um roubo acontecer? Só alguém cego de ideologia. Cego como as partidárias da slut walk (e alguns partidários, se bem que o apoio desses costuma ser faca de dois gumes: de um lado, o direito das mulheres; do outro, ver gatinhas com pouca roupa), incapazes de fazer essa simples distinção: uma coisa é ser moralmente culpado de algo; outra é aumentar ou diminuir a probabilidade que esse algo aconteça. Vestir-se de maneira a atiçar o desejo sexual masculino (por exemplo, com um decotão bem grande para mostrar os peitos, com nanossaias, tatuagens à mostra que direcionem a visão para a genitália, dizeres sugestivos na camiseta e atrás da calça como “bitch” ou “fuck me”; e outras puritanices do gênero), bem, isso atiça o desejo sexual masculino. Também há certos locais ou circunstâncias em que os homens ficam naturalmente mais propensos a desejar sexualmente e de forma indiscriminada qualquer mulher que se lhe apareça na frente. Um baile de funk carioca (dos quais resultam não poucas gravidezes), uma balada com muitas drogas e dançarinas sensuais, etc. Infelizmente, alguns homens (por culpa própria, salvo em casos de doença mental) dão vazão a seus desejos sexuais sem se importar em saber se a mulher que será alvo de suas investidas deseja ou não tal honra. Alguns se limitam a comentários ofensivos e dirty talk em geral – o que já é aviltante -, outros buscam um contato físico indesejado e alguns outros estão dispostos até mesmo à violação sexual forçada, que é dos piores crimes possíveis. Devemos fazer todo o possível para que os homens não fiquem assim, e punir severamente aqueles que perpetuam qualquer violência sexual. A culpa é deles. Contudo, sabendo dessa realidade, as mulheres podem agir prudencialmente, por exemplo não usando roupas que incentivem os homens a vê-las como objetos sexuais; vestindo-se de forma a realçar sua humanidade. Talvez a maioria das mulheres ignore o quanto é fácil para um homem olhá-las como um mero objeto sexual e nada mais. Há, infelizmente, algo de desordenado na natureza humana, e essa desordem mexe também com nossa sexualidade. Cabe a cada um educar, domar e, quando a porca torce o rabo, barrar seus ímpetos mais descontrolados (sejam ligados à violência, à comida, ao sexo, etc.). Por isso a culpa do estupro é sempre do estuprador, e não da vítima. Contudo, a vítima pode agir de maneira a diminuir a probabilidade do estupro. Ao se vestir de forma provocante, a mulher aumenta a chance que ela provoque algum homem sexualmente; o homem sexualmente excitado está mais propenso a praticar alguma forma de violência sexual. As manifestantes da slut walk parecem querer, ao mesmo tempo, atiçar o desejo sexual masculino e não sofrer violência sexual. Infelizmente, embora no plano das idéias as duas coisas pareçam perfeitamente distintas, no mundo real elas frequentemente caminham juntas. Isso não quer dizer que a culpa do estupro seja das mulheres; mas elas têm à disposição algumas condutas fáceis para diminuir a probabilidade do estupro (embora nada possa garantir a segurança total). Quando você sai na rua, não procura, se possível, deixar celulares e objetos de valor fora da visão de todos? Não olha para os dois lados antes de atravessar, e se vê um carro desloucado à toda velocidade, não espera ele passar antes? Tanto no roubo quanto no atropelamento, a culpa é de quem rouba e atropela. Mas o celular é seu, e a vida é sua; trate de não facilitar! Por que no estupro o pensamento mais “iluminado” ignora isso? Mulheres, há dentro de cada homem heterossexual um forte desejo sexual pelo corpo feminino; esse desejo pode se manifestar de maneira sadia e positiva, que enfatize ao invés de negar a humanidade da mulher; ele pode também, contudo, se expressar de maneira bestial e violenta. Quando essa segunda opção lamentavelmente ocorre, a culpa é sempre do homem. Mas não a facilitem! Já falei que a culpa do estupro é do estuprador? Repito-o agora: a culpa do estupro é sempre do estuprador e nenhuma mulher merece ser estuprada. Assim, espero que as respostas fujam do usual “CULPANDOAVÍTIMACULPANDOAVÍTIMACULPANDOAVÍTIMA!!!!!111um”.
quarta-feira, junho 29, 2011
As Moralistas da Slutwalk
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Joel Pinheiro
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domingo, setembro 05, 2010
Desmontando Eutífron
Muita gente conhece o chamado “dilema de Eutífron”, que nos força a escolher entre uma de duas opções: ou a lei moral é criação de Deus e pode ser mudada por qualquer capricho seu; ou então Deus não pode mudá-la, e nesse caso ela é superior a Deus. Nenhuma das duas possibilidades é muito satisfatória. A segunda nos obriga a aceitar um Deus que não é onipotente, que conhece algo superior a si. E a primeira nos obriga a dizer que a moral é o produto arbitrário de uma vontade toda-poderosa. Se amanhã Deus decidir que beber água é imoral e estuprar é meritório, então assim será. Um dos grandes méritos da tese da lei natural é dar uma solução plenamente satisfatória ao dilema. Segundo ela, a moralidade — o certo e o errado — decorre da natureza do ser humano (não vou aqui entrar no mérito de como isso se dá — meu ponto não é defender a lei natural, só mostrar como ela desmonta o dilema). Sendo assim, da natureza humana como ela é, conclui-se que estuprar é destrutivo ao bem humano e beber água contribui com ele. Portanto o primeiro é mau e o segundo bom. Deus pode mudar isso com um ato de vontade? Não. Enquanto o homem continuar como ele é, a moral continua a mesma. Mas quem criou o homem? Deus. E Deus pode certamente mudar a natureza humana, ou até extinguir a espécie, caso no qual a moral também acabaria. Mudar a ética sem mudar o homem carrega consigo uma contradição, algo que Deus não pode fazer (não por alguma limitação de seu poder, mas porque a contradição, embora aparentemente, verbalmente, pareça ser algo, na verdade não é nada. “Solteiro casado” parece se referir a alguma coisa, mas na verdade é uma expressão sem significado). Assim, Deus criou a ética ao criar a espécie humana. A lei natural foi instituída no Jardim do Éden, e não no Monte Sinai, onde ela foi apenas revelada (como ajuda para o intelecto fraco do homem caído).
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Joel Pinheiro
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quinta-feira, agosto 05, 2010
A Morte nas Esferas Pública e Privada
Não sabemos lidar com a morte. Com menos gente morrendo “fora de hora” (o que é bom), pensamos menos nela. Ao mesmo tempo, a mídia e a Internet confundem as esferas pública e privada. Antes, saber que alguém distante morreu era só mais um fato abstrato; agora temos que ver a mãe chorando na TV e os vídeos-tributo que os amigos publicaram no Youtube. Sentimentos privados vêm a público, e todos se sentem obrigados a partilhar do sofrimento de quem era próximo. Pior: confundimos isso com respeito.
“Que homem bom: ele sente profundamente a morte de todos os seres humanos” - isso pode bem ser verdade, mas as poucas pessoas que de fato sentem assim só se encaixam em dois tipos de vida: se acreditam numa transcendência, vida dedicada à oração ou ritos propiciatórios para os que se foram. Se atéias, vida melancólica contemplando a tragédia da humanidade destinada aos vermes. Claro, a imensa maioria não está nem aí para a morte de desconhecidos, caso contrário viveríamos em luto constante, pois tem sempre alguém morrendo.
Ficamos tristes quando morre alguém próximo. Quanto mais conhecemos sua vida, mas tocados ficaremos em saber de seu fim. Mas se desconheço o morto e não tenho relação com seus entes próximos, por que manter a pose e condenar como “desrespeitoso” quem não entre no jogo? Quem nunca riu com o Darwin Awards que atire a primeira pedra.
A morte de Lincoln não me toca. Não me sinto constrangido a me fazer de triste ou pisar em ovos para falar dele. O mesmo vale para quem morre no presente e é distante de mim. Isso não é falta de respeito nem com quem faleceu e nem com seus próximos, dos quais eu não sou próximo. Se conhecesse algum amigo seu, é claro que, nessa esfera privada, comportar-me-ia respeitosamente de acordo com o sofrimento alheio. Mas na esfera pública nada disso está em jogo, ou pelo menos não deveria estar.
Quando morre um intelectual, por pior que tenha sido, lá vêm os editoriais redimi-lo. Elegias não tardam a vir das fontes mais improváveis. Isso é especialmente verdade, na minha experiência, em círculos cristãos, que confundem a caridade devida aos mortos com falar uma coisa boa de quem morreu, mesmo que tenha sido crápula. Que me importa se Saramago morreu? Vou agora salvar sua alma? Tarde demais. Posso ajudá-lo de verdade rezando por ele, o que será virtuoso se feito privadamente. Espero que tenha ido para o céu e mantenho inalteradas minhas opiniões sobre sua obra e vida pública. No círculo dos entes queridos, ali sim é o lugar de lembrar o bem que ele fez; na esfera pública, nada de obituários chorosos de quem sempre o lamentou em vida. Quando morrer Fidel, virão elegias cristãs e conservadoras sobre “boas intenções infelizmente equivocadas” ou sobre a “realização imperfeita de um ideal”? Bota imperfeito nisso!
A morte é o maior drama da existência. Mas nem todas as mortes nos tocam. Uma coisa é a esfera íntima, e o respeito aos sentimentos de quem era próximo; outra coisa é a esfera pública, que não precisa e nem se beneficia de manifestações de tristeza e amor tardio. Alardear publicamente o comportamento apropriado à esfera privada não é virtude, é vaidade.
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domingo, agosto 01, 2010
Nem Tudo é Racismo
Uma coisa que obviamente não é racismo: afirmar que existem diferentes raças humanas. Circulou por aí - não sei se ainda circula; ouvia muito no colégio - que “de acordo com a ciência” não existem diferentes raças no homo sapiens, e que afirmar o contrário já é ser racista. Quem primeiro inventou essa não duvido que fosse bem intencionado, mas errou feio mesmo assim. Pois é óbvio que existem diferenças entre os homens, que são passadas aos descendentes, e que permitem que classifiquemo-los em diferentes sub-grupos. Qualquer classificação em níveis inferiores à espécie, ou seja, entre indivíduos que podem se reproduzir entre si, terá um quê de arbitrária. Mas não é por acaso que pais brancos têm filhos brancos, e pais negros, filhos negros. Falar em raças e, dentro de raças, etnias, é plenamente racional e nada racista.
Outra coisa que não é racista é apontar que, dado existirem diferenças externas entre as raças, podem existir diferenças internas, fisiológicas e neurológicas - há, inclusive, remédios com efeitos diferentes em brancos e negros. E portanto também não é racista supor diferenças de habilidades entre as raças, ou seja, afirmar que uma raça é, em média, mais apta para a matemática, outra é mais criativa, outra é mais inteligente (ou é melhor em um tipo de inteligência), outra melhor em certos esportes etc.
Notar diferenças de comportamento entre populações de diferentes raças não é racismo. Logo, reagir de acordo também não o é. Assim, se 90% dos crimes fossem cometidos por loiros, e estes representassem 2% da população total, faria sentido que um comerciante, se quisesse, proibisse a entrada de loiros em seu estabelecimento. Na mesma nota da discriminação, achar pessoas de uma raça em geral mais bonitas, ou até se dar melhor com gente dessa ou daquela raça ou etnia, também não implica racismo. Os gostos e os jeitos são diferentes; nada de mau aí.
Tudo o que está listado acima pode ser efeito do racismo, mas não necessariamente o é. E o que é racismo? A melhor definição, na minha opinião, é ódio racial. Considerar ou tratar membros de outras raças como seres inferiores, sub-humanos; deixar que a opinião que se tem sobre a raça prevaleça sobre o conhecimento do indivíduo: “Se ele é da raça X, então tem que se comportar da forma Y”, o que efetivamente nega que o indivíduo em questão tenha livre arbítrio.
O fato de negros serem mais pobres que brancos não prova, de si mesmo, a existência de racismo. Um milhão de variáveis além de “os brancos odeiam os negros” podem explicar essa diferença: desigualdade educacional, culturas mais ou menos propícias à geração de riqueza etc. Mas a moda é ver racismo em tudo. Se não encontramos racismo aberto, então ele é mascarado e hipócrita, “e por isso mesmo muito mais perigoso”. Na verdade o mesmo vale para todos os preconceitos: machismo, discriminação religiosa, homofobia etc. É confortável colocar-se na posição de vítima sofredora ou de acusador indignado. Nossa sociedade estimula essas práticas, conferindo-lhes a aura falsa de superioridade moral. Então cada um tenta mostrar que sofre mais que os outros, encaixando-se em alguma definição de vítima para conseguir a sua migalha de condescendência. São vítimas apenas de si mesmos.
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Joel Pinheiro
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quinta-feira, julho 01, 2010
Duas Visões do Mal
Duas maneiras de encarar o mal não necessariamente contraditórias mas contrárias em espírito: uma o enxerga nos fins, a outra nos meios. É possível conciliá-las até certo ponto, mas em última instância uma domina a outra. Qual delas vence em cada mente creio depender mais do temperamento e da visão de mundo básica do que de algum argumento decisivo.
Para o partidário do mal dos fins, o mal do mundo é fruto de homens que, em conspiração, encaminham tudo para seus objetivos perversos, arrastando consigo uma multidão que percebe muito pouco, com maior ou menor clareza, do processo em andamento. Ele enxerga o mal agudo, concentrado, seja nos comunistas infiltrados, nas ONGs progressistas, nos grupos de mídia, na alta burguesia, nos maçons, nos judeus, nos jesuítas, no movimento islâmico global, no capital internacional ou nas farmacêuticas.
Já o partidário do mal dos meios o vê melhor distribuído. Para ele, o mal consiste na incompetência, preguiça, vaidade, inveja, enfim, nos vícios comuns que a todos permeiam. Seu efeito independe de conspirações, que podem até existir, mas são apenas uma ponta menor do espectro - agora ocupada por A, amanhã por B, que terá outros planos - que continuará sempre o mesmo. O grosso dos homens vive como sempre viveu, “casando-se e dando-se em casamento”, sem dar a mínima para idéias e ideologias; as mudanças são superficiais, pois permanece a mesma natureza. Todos os desígnios, bons e maus, tendem a resvalar para a mesma modorrência mesquinha de sempre, engolidos por um processo implacável de entropia moral.
Se o dos fins estiver certo, então o mal entrópico dos meios é um fenômeno de menor importância, pois acomete apenas as massas de manobra que as grandes mentes da humanidade, os reais motores da história, usam para concretizar seus ideais. No fim das contas, é quem escapa da entropia que faz a diferença, dedicando-se com habilidade e devoção completa a algum projeto. Esses escrevem a história; os demais são escritos.
Se o dos meios estiver certo, então mesmo a conspiração mais funesta não consegue botar seus planos em prática com a eficácia que gostaria, pois a preguiça, o desleixo e a vaidade afetam também a seus agentes. O mau profundo que alguns gostariam de instaurar (que na visão deles é o bem) não é o mau corriqueiro que acabam produzindo. Vide a revolução socialista do PT. Tudo converge para uma distribuição normal cuja média é negativa ou positiva dependendo do nosso pessimismo ou otimismo, mas nunca distante de zero. Os monstros são poucos, e muitos os sacaninhas.
O grande problema de ver o mal nos fins é transformar a moralidade no ter a opinião correta. Bom é quem defende as causas boas; mesmo que isso não se traduza em virtudes vividas. Quem olha para o mal dos meios, a não ser que seja muito cego, percebe o quanto fica aquém do que poderia ser. Seu risco é cegar-se para o efeito real que crenças e ideologias podem ter, devido à suposição de que todos têm, mal disfarçados por trás das crenças manifestas, os mesmos interesses fisiológicos. Quem se foca no mal dos fins está mais consciente dos movimentos do tempo e é menos sujeito a servir de besta de carga bem-intencionada de uma cultura maléfica.
Tendo espontaneamente para ver o mal nos meios, o que significa aceitar que ele é sempre mais comum e menos interessante, e próximo de casa, do que gostaríamos; e também que podemos confiar, em geral, na boa intenção, mas raramente na capacidade, alheia. Para compensar, preservo uma saudável intransigência nas opiniões. Nada de escorregar involuntariamente para algum plano maligno! A entropia moral é um fato vivido, e vejo-a atuando inclusive nos grandes nomes da história. Não é impossível agir com base em filosofias e ideologias distantes do curso da natureza (sem pessimismo: lembre-se que a natureza é, em si, boa); mas é difícil. É possível sair da entropia? É. Alguns saem. Virtudes, talentos naturais, pura força de vontade, graça divina; não sei como, mas volta e meia nos deparamos com algum santo ou gênio produtivo que nos mostra claramente tanto o tamanho do buraco quanto a possibilidade de atravessá-lo.
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Joel Pinheiro
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segunda-feira, junho 28, 2010
Salvem as crianças!
Quando o assunto é criança, a racionalidade - especialmente dos pais - não tem vez. Tudo vale a pena “pelo bem das crianças”. Nenhum sacrifício é grande demais, nenhum inconveniente é relevante, a própria análise de custo-benefício é moralmente suspeita. A indústria de artigos para bebês bem sabe disso, e sempre inventa novos produtos “essenciais”, que os pais ansiosos (especialmente os de primeira viagem - meu caso) comprarão sem hesitar. Como será que os bebês sobreviveram por tantos séculos sem nossos 60 tipos de fralda e 300 variedades da chupeta? Sem falar nos CDs educativos para recém-nascidos.
Mas tem coisas que nem o pai mais desesperado do mundo deveria engolir; a lei da cadeirinha nos automóveis é uma delas. A partir de primeiro de setembro, será obrigatório, no transporte de crianças de até sete anos e meio, levá-las numa cadeirinha que é instalada no banco traseiro, e que vem em três tipos, um para cada faixa de idade. Sim, sete anos e meio.
Primeiro ponto: é claro que a cadeirinha aumenta a segurança em caso de acidente. Assim como andar na rua de capacete e colete à prova de balas diminui o risco de se ferir gravemente ou até morrer (tropeções, assaltos, balas perdidas, meteoritos; nunca se sabe). Um toque de recolher às 10 da noite (o que um homem de bem faria na rua a essa hora?) também seria ótimo para a segurança. Aliás, o melhor seria ficar sempre em casa, e só sair em casos emergenciais. Evitaríamos muitas mortes.
Só que evitar mortes não é tudo; existem milhões de considerações relevantes. Cada medida de segurança traz consigo um custo (dinheiro, perda de tempo, dor de cabeça), que pode ou não superar o benefício esperado. Botar o cinto de segurança tem um benefício esperado positivo e o custo é quase nulo, então sempre ponho. Mas algumas vezes, quando vou atrás num carro que não é meu, o cinto está enfiado embaixo do banco. Nesse caso, o trabalho de ter que levantar o banco e pedir para o meu amigo parar, na minha opinião, supera a segurança adicional que eu teria durante o traslado e a sensação reconfortante que o cinto oferece. Posso estar errado, e um acidente terrível acontecer bem dessa vez; ninguém é onisciente. Mesmo assim, pela minha estimação (o trajeto é curto, meu amigo guia bem, não correremos), a segurança extra não compensa o estorvo.
Outro cenário: sua tia-avó vem para o almoço, e ela faz questão de comer sorvete de papaia na sobremesa. A quinze minutos dela chegar, você abre o congelador e constata horrorizado que o sorvete acabou. Considere que há dois jeitos de guiar o carro até a padaria: cautelosamente, que é mais seguro, ou temerariamente, o que aumenta o risco de acidente, mas é mais rápido. Em condições normais de temperatura e pressão, você, sujeito sensato, minimizaria o risco de morte; mas com a tia-avó a caminho, cada segundo é precioso. Aceitar o risco extra é perfeitamente racional: você sabe que o percurso é curto e confia na sua destreza ao volante; sabe que, mesmo guiando apressado, o risco é baixo. E voilà, volta são e salvo com o troféu de papaia em mãos.
Se até coisas básicas como cinto e direção cautelosa admitem exceções, quanto mais o trambolho que são as cadeirinhas infantis. Tiram um assento útil do veículo, são caras (o bebê-conforto, que é o assento para bebês muito pequenos, custa uns 200 Reais) e chatas de instalar. Isso para quem tem um filho. Quem tem três pode desistir de passear legalmente com a família completa. Quando eu era bebê, minha mãe me levava no colo e, a partir de uns 3 ou 4 anos de idade, eu ia atrás sozinho, muitas vezes sem cinto (para poder deitar) - era ótimo e cá estou, vivo. Hoje em dia, as enfermeiras da maternidade cometeriam suicídio em massa se eu sequer levantasse a possibilidade de transportar o bebê da forma antiga. Por causa da nossa neurose por segurança e saúde, quem não adere aos novos produtos e medidas é visto como um monstro sem coração. Um fenômeno social problemático, mas até aí tudo bem; ninguém é obrigado a seguir a opinião pública. É quando ela vira lei positiva que se torna inaceitável. Vamos admitir em alto e bom som: sim, há situações em que um minúsculo acréscimo na insegurança dos filhos se justifica por outros benefícios. E digo mais: todo pai minimamente são do planeta concorda comigo. Levar o filho a um restaurante aumenta suas chances de contrair doença; mas os benefícios de fazê-lo em geral superam esse risco adicional. QED.
É sintomático da nossa cultura que o único debate acerca da lei seja entre os que querem aplicá-la apenas a veículos de passeio e os que querem aplicá-la a todos os veículos (ônibus, táxis etc.). É inócuo, mas ao menos explicita o absurdo a que ela nos obriga, pois ou se aplica-a arbitrariamente a apenas alguns casos, ou se chega a situações obviamente estapafúrdias, como um ônibus comum perdendo assentos úteis para instalar cadeirinhas que ficarão sub-utilizadas. E se chega uma criança quando todas já estiverem ocupadas? Ficam ela e o pai barrados na porta? E o taxista, vai guiar por aí com as três variedades de cadeirinha no porta-malas? Um leve inconveniente.
Alguns objetarão que os acidentados custam para a saúde pública, e portanto a lei é bem-vinda. Antes, todos pagavam por um número X de acidentados. Agora, todos pagarão por um número menor, mas há, em contrapartida, o aumento do custo dos pais em comprar e instalar (e desinstalar, e instalar de novo) as cadeirinhas. O custo total é maior ou menor? Impossível saber (não que o governo tenha sequer tentado). Mas podemos ter certeza de que continuará a faltar dinheiro para a saúde, cujos gastos abusivos e onerosos devem-se ao eterno problema da saúde pública... o fato dela ser pública. Uns usam, outros pagam, a sociedade perde. Não se corrigirá esse problema sistêmico com leis punitivas para quem possa vir a precisar dos serviços médicos. A real solução, que é também a mais justa, é a única que o sistema não pode aceitar: cada um pagar pelo que utiliza.
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Joel Pinheiro
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terça-feira, junho 15, 2010
Livre mercado para além do mercado
O homem é podre, um mentiroso e trapaceiro contumaz, que estupraria e mataria sem remorso se lhe fosse dada a possibilidade de fazê-lo sem ser pego. É apenas o medo da cadeia (foi-se o tempo em que o medo da punição divina valia para algo) que nos mantém a um passo da auto-destruição final. É isso mesmo?
Bom, então considere a seguinte situação. Semanas atrás, precisei de um adaptador de tomada (graças ao novo padrão imposto pelo governo para sanar um problema inexistente). Fui até uma lojinha de material elétrico próxima, mas eles não tinham; o vendedor me indicou uma outra loja na rua. Notem, ele não precisava ter feito isso; essa outra loja é sua concorrente em vários serviços. Fui à nova loja, e vi que o melhor era comprar logo uma tomada nova. Só não sabia se era uma de 10 ou 20 amperes. Solução? O vendedor me deixou levar a de 10, testá-la e, se não fosse, trocar pela de 20. Novamente, algo que ele não precisava ter feito.
Ações que, no curto prazo, parecem danosas à loja (vender uma tomada ao invés de duas), no longo prazo compensam (ganhar a confiança do cliente). E são fatos absolutamente banais e corriqueiros no mercado, como qualquer um sabe. Os homens não são crápulas sempre à procura de uma oportunidade de engambelar o incauto. O nosso modo de vida é baseado na cooperação, e essa não é forçada ou dissimulada, mas voluntária e em geral sincera, caso contrário não funcionaria. A idéia do egoísta esclarecido que se comporta exatamente como um homem bom exclusivamente por motivos egoístas é um mito; caráter e ações não são realidades separadas. O mercado é exatamente o processo pelo qual essa ajuda mútua é facilitada e incentivada, pois harmoniza o bem de cada um com o bem dos demais. A confiança e a confiabilidade são remuneradas, e as práticas anti-sociais punidas.
Claro, isso não garante que todos serão bons. A minha compra de tomada estava, por exemplo, ligada à compra de uma lava-louça cuja instalação deu um enorme problema, custando muito tempo e dor de cabeça em conversas frustrantes com o SAC da empresa. E isso se explica. Empresas grandes têm que ter uma política padronizada de trocas e outros serviços gratuitos para impedir que, de pequenas decisões generosas de muitos vendedores e atendentes, emirjam grandes prejuízos. Mas mesmo nelas, na medida em que têm que sobreviver no mercado, o que prevalece é a cooperação. Vejam só: saindo uma vez do caixa do McDonalds com o almoço na bandeja, derrubei o refrigerante no chão. Qual a reação dos atendentes? Deram-me um novo. Eles sabem que brigar por migalhas é prejudicial para eles próprios, mesmo que isso lhes custe uma Coca. E até no caso da lava-louça, no final das contas, a empresa responsável pela instalação forneceu a peça nova.
São exemplos casuais - cada leitor terá vários - que ilustram um fato antropológico e moral. O homem não é um calculista a espera da primeira oportunidade de passar a perna. Quem age assim prejudica a si mesmo; confiança e boa vontade são características muito difíceis de se dissimular ao longo do tempo, e constituem parte importante do capital humano. Quanto menos confiança, mais advogados, juízes, contratos, e menos possibilidades de transação; tudo isso tem um custo, não apenas monetário. Por outro lado, boas relações resolvem problemas de ambos os lados e deixam todos felizes, criando laços de boa vontade. Como Aristóteles já apontara, o fazer negócios juntos, a harmonia de utilidades, estabelece entre as partes um tipo de amizade.
A cooperação livre entre os homens é um fato; é um fenômeno que emerge naturalmente, sem qualquer necessidade de uma autoridade estatal para regular, controlar, medir e definir (o que só congela e endurece o que deveria ser fluido e flexível para melhor se adaptar às infinitas circunstâncias dos homens). E essa cooperação se dá em todos os níveis da sociedade; não é privilégio da “elite”, embora seja isso mesmo que vai acontecer se o governo continuar a dificultar e proibir a existência de versões mais baratas e populares; se o padrão mínimo legal for o Golf, não existirão nem Gols, nem Fuscas, nem Brasílias; mais gente andará a pé.
Mais um exemplo banal: um dia, indo para o aeroporto, vi num trecho ao lado esquerdo da marginal, acho que junto a uma rampa, barracos num espaço muito estreito. Um deles, apertado entre os demais, era uma barraquinha de comes e bebes. Está aí a força vital do espírito humano, que não deixa de inventar soluções nem sob as condições mais inóspitas. A condição do lugar era, para nossos padrões, deplorável; mas aquela barraquinha tornava-a um pouco melhor. Não seria um crime matá-la com regulamentações as quais, obviamente, o dono nunca seria capaz de obedecer? Pois o momento em que um fiscal do governo passasse por lá seria o momento em que aquele pequeno oásis deixaria de existir. Ainda bem que o governo não vê tudo, e que existe a corrupção! Imagine se as regulamentações e tributos do país fossem seguidos sempre e à risca; camelôs, vendedores piratas e, enfim, todo o mercado informal, que beneficiam tantos consumidores e empregam tantos trabalhadores, sumiriam. Hoje em dia, eles funcionam fora da lei; e - surpresa! - funcionam. Sem decretos políticos, sem vereadores e deputados inúteis, o Promocenter ia muito bem obrigado.
Quando o dinheiro sai da jogada, fica ainda mais claro. Vejam o couch-surfing: pessoas disponibilizam suas casas para viajantes se hospedarem de graça, e sabem que, quando viajarem, também encontrarão pousada. O único sistema de controle são as opiniões dos próprios usuários publicadas no site. Qualquer um pode se cadastrar. E adivinhem: funciona muito bem, como um amigo meu que já hospedou gente do mundo inteiro pode garantir. Haveria algo mais contrário ao espírito dessa rede do que se o governo decidisse “regulamentá-la”, criando requisitos mínimos para as casas (“devem ter pelo menos dois banheiros e um sistema de combate a incêndio certificado”) e para os viajantes (“devem enviar, duas semanas antes da visita, cópia autenticada do passaporte e trazer inventário da bagagem pessoal”)? A quantos seriam reduzidos os membros dessa comunidade vibrante? Pois a mesma destruição burra ocorre em tantos outros serviços; a diferença é que estamos acostumados e não percebemos o quão melhor eles poderiam ser. Por que absolutamente todo estabelecimento comercial deve ter uma lixeira na frente? Por que um shopping precisa de 5% de vagas para idosos? Por que toda vitrine deve ter tarja sinalizadora? Soluções pontuais são transformadas em imposições ossificantes; o que é inteligente em alguns casos pode ser estúpido se transformado em lei universal.
Trata-se de um problema de mentalidade, que afeta todos os políticos, burocratas, legisladores, advogados e engenheiros sociais que acreditam que suas definições mal-escritas num pedaço de papel criam e ordenam as relações humanas; quando na verdade as corrompem e destroem. A imensa maior parte da classe política brasileira não só é inútil como prejudicial à nação. Ao invés de punir os crimes (roubos, fraudes), querem prever e delimitar o que é mutuamente benéfico, limando de imediato todas as manifestações que escapam a seu olhar estreito.
O número de impostos, de encargos, de regulamentações e de regras aos quais estamos sujeitos (e mesmo assim, pode ter certeza que se um fiscal quiser, ele encontrará alguma infração - são 85 tributos e dezenas de milhares de leis) não nos afetam apenas na “esfera econômica da vida”, como se a vida humana fosse divisível em partes estanques, e como se o trabalho e o consumo fossem realidades menores, de pouca importância. A guerra de independência americana foi travada por muito menos. E ainda se acredita na mentira de que a liberdade interessa aos ricos. Isso é falso. O liberalismo econômico não é o sistema das grandes empresas, dos grandes bancos, dos tecnocratas. Claro, algumas grandes empresas seriam beneficiadas com um mercado mais livre; mas elas não seriam as maiores ganhadoras, mesmo porque muitas recebem ajuda do governo, seja direta (concessões, subsídios) ou indireta (as regulamentações infinitas e encargos pesados que impedem a existência dos pequenos). O principal beneficiário do liberalismo é todo homem honesto em suas relações cotidianas, que estão cada vez mais burocratizadas por um sistema desumano que demanda sempre mais recursos para se sustentar.
Ser livre significa, enquanto consumidor, poder escolher aquilo de que mais gosta na gama de preços e qualidades compatível com sua própria renda; enquanto produtor, poder trabalhar no que quiser, e prover que serviço quiser, da melhor forma que souber, sem que ninguém lhe impeça; e, enquanto ser humano, viver de acordo com o que se considerar o melhor sem ser impedido por ninguém e sem impedir ninguém de fazer o mesmo. Sem precisar de aprovação por qualquer órgão que seja, apresentar documento algum e nem emitir nota fiscal, pois o fisco não tem direito nenhum de saber o que você faz da vida e muito menos de puni-lo se for bem-sucedido. A liberdade permite que, ocasionalmente, alguém aja mal? Sim. E para alguns desses casos (os que violem direitos alheios) existem as leis e os tribunais. Mas, e isso é muito mais importante, é só ela que permite que os homens ajam e vivam bem, e que criem soluções novas e adaptem antigas para seus problemas e melhorem todas as esferas (não apenas a econômica, o comércio e a venda de ações) de sua existência.
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segunda-feira, maio 10, 2010
Válvula ou arame
Freud ou Aristóteles: dois modelos de funcionamento humano - válvula hidráulica ou arame entortável. São duas perspectivas em alguma medida conciliáveis, mas na prática bastante contrárias, de se encarar os efeitos da ação no agente. Teste para ver em qual você se encaixa: quando o sujeito é mal-tratado continuamente, e vai acumulando toda aquela raiva aos poucos, o que ele deve fazer? E quando o desejo sexual fica incontrolável, e ele só pensa nisso, como libertá-lo da obsessão?
Quem responde algo na linha de extravasar e aliviar a tensão pensa como Freud (não sei se o verdadeiro Freud ou o Freud dos gibis que chegou até mim via cultura popular; mas é só um nome), e segue o modelo da válvula hidráulica: não pode ficar nem muito cheia nem muito vazia. A válvula da raiva está até a borda? Melhor liberar essa tensão para a máquina não explodir ou o câncer não aparecer.
Não vou negar que tenha sua validade. Aliás, para algumas funções ele parece perfeito. O tubo digestivo, da entrada à saída, é isso mesmo: tubo. Bebeu bastante? É hora de fazer xixi. Mas a válvula não conta a história toda. Coma até se saciar; e depois de novo, e o faça sempre, coma até se satisfazer plenamente. A mudança será gradual, mas depois de um ano, na barriga onde cabia um Big Mac, caberão três; e na calça onde cabia um de você agora cabe 1/3. Pouco a pouco, o lanche pequeno dos americanos tornou-se o nosso gigante.
É aqui que entra Aristóteles e o modelo do arame (a pobreza da imagem é por minha conta). Todo ato consciente tem um efeito no caráter (as disposições constantes que nos levam a agir dessa ou daquela maneira) do agente: quem nunca reparou que, quanto mais se dorme e se demora para sair da cama, mais difícil fica levantar? E quanto mais se come, mais guloso se vira. Isso num nível sub e quase extra-racional. Para trazer o ponto a uma esfera com maior influência do intelecto, cada vez que se vai além de um limite previamente proposto cria-se um incentivo psicológico para violá-lo sem restrições futuramente: “Já fiz isso da vez passada; qual o problema?”. Cada novo ato também muda nossa percepção de nós mesmos. Se entrei de vez na lagoa fria, vejo-me como alguém capaz de fazê-lo; se não entrei, a própria lembrança do fracasso passado serve de obstáculo para tentar futuramente. Antes de cometer o crime, tudo é possível, eu ainda não estou determinado; depois, já me vejo como um assassino, ou um ladrão, e não tem mais volta.
Um arame fica do jeito que você dobrá-lo. O caráter humano também: vá pressionando ele numa direção que ele acaba se entortando. A válvula tem sua aplicabilidade? Tem. Extravasar a raiva tem efeito calmante no momento seguinte; e quando satisfazemos o desejo sexual nos sentimos livres dele. Mas esses não são os efeitos principais, de longo prazo. A pessoa que explode de raiva, e que aceita explodir de raiva, é justamente aquela que cria a tendência a ficar cada vez mais raivosa mais facilmente. E quem sempre satisfaz o impulso sexual fica cada vez mais dependente e viciado nesse prazer, e portanto menos livre, e mais escravo, dele.
A válvula hidráulica tem sua validade, num horizonte de uma ou duas horas. Mas esse modelo “The Sims” do comportamento humano não dá conta do longo prazo. No horizonte existencialmente mais relevante de uma vida, o que prevalece é o arame entortável aristotélico. No longo prazo, o que liberta é o auto-controle. O carro precisa de bons freios para chegar longe.
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quinta-feira, maio 06, 2010
'A Estrada' e a natureza humana
Humanidade: hecatombe moral?
A premissa de A Estrada é simples: algum desastre não-especificado destrói a Terra: o céu fica cinza, há terremotos intermitentes e chuvas de fogo e poeira à noite. Toda a vida vegetal perece e a civilização colapsa irremediavelmente. Tudo o que resta é lutar para não morrer de fome coletando restos e enlatados cada vez mais raros e evitar tornar-se vítima do estupro e canibalismo onipresentes. Mulheres e crianças são especialmente visadas.
Leva-se às últimas conseqüências o pessimismo de um Ensaio Sobre a Cegueira. Só que em A Estrada, ao mesmo tempo em que a situação é mais desesperadora (a humanidade vai acabar), há, talvez por isso mesmo, mais abertura a uma possível transcendência. Pois o bem ainda resiste: um pai e seu filho pré-adolescente mantêm viva a dignidade humana e caminham para o sul em busca de algo melhor, embora não saibam ao certo o quê. Rejeitam terminantemente o canibalismo e o roubo. Carregam, diz o pai - que, ao mesmo tempo em que oferece esperança, contempla desesperado o suicídio - um fogo dentro de si, que se apagaria se capitulassem à conduta geral.
É uma experiência cinematográfica lúgubre como poucas. O cinza predomina, a atmosfera é de solidão e paranóia; numa cena particularmente chocante num porão escuro, vemos seres humanos num estado de degradação e violação indizível, que nos remete a um horror existencial incomunicável. A humanidade sai mal na foto.
A discussão é antiga: O homem é bom ou mau? As relações humanas consistem, fundamentalmente, em cooperação ou guerra? Aristóteles ou Cálicles? Locke ou Hobbes? No plano teológico: o homem absolutamente perverso em quem a graça deve eliminar a natureza má (Sto. Agostinho em momentos mais pessimistas, a doutrina calvinista da “depravação total”, os franciscanos, Pascal); ou o homem corrompido mas cuja natureza permanece essencialmente boa, sendo papel da graça aperfeiçoá-la (Tomás de Aquino, os dominicanos e jesuítas)? Na economia: Karl Marx ou Adam Smith? O marxismo, ao pintar a vida social como baseada na exploração, tende, na prática, ao pessimismo; já o liberalismo clássico enxergava a prevalência da cooperação, e via o mercado como mecanismo harmonizador dos desejos individuais.
Os pessimistas gostam de se ver como realistas, os únicos que não adocicam a verdade cruel escondida sob a fina e frágil camada da sociabilidade. Será? Discordo. Mesmo em meio à guerra, mesmo onde o braço do Leviatã não alcança (aliás, este sim é capaz do mal numa escala sobre-humana), o que prevalece no mundo real é a vida normal, a cooperação e a coexistência pacífica, ainda que o que venda jornais sejam os crimes. Na Somália sem governo, o mercado de telefonia e a Internet popular floresceram; nas favelas brasileiras há lan houses, bares e lojas. Voltando um século, lembremos que os soldados de ambos os lados na Primeira Guerra, para horror dos comandantes, saíram das trincheiras e confraternizaram na noite de Natal. O homem é capaz do mal, mas esta não é sua vocação e nem sua natureza.
A capacidade agregadora do bem
Mas quem é mau, sem escrúpulos, se dá melhor, não é mesmo? Em situações pontuais, no curtíssimo prazo, talvez. No geral e no longo prazo, o bem é mais poderoso. Falta essa percepção ao filme. Os bandos de canibais eram compostos de assassinos e estupradores. O que garantia sua unidade? A traição e o motim deviam ser medos constantes para homens desprovidos de qualquer sentido de honra, de amor ou de uma causa maior.
São justamente os bons (na medida em que são bons) que têm a capacidade moral de formar e sustentar agregações duradouras e produtivas. Exposta em termos diferentes - menos moralistas - esse ponto faz parte do currículo de qualquer curso de administração. A empresa que não cria uma cultura interna positiva, de respeito mútuo e confiança, que não facilita a comunicação entre as partes, mas que permite ou até incentiva intrigas, falta de transparência e autoritarismo, arca com altos custos inexistentes numa empresa mais sadia, o que pode botar tudo a perder, como no caso da WorldCom. Monastérios (católicos, ortodoxos, budistas) perduram séculos enquanto comunas hippies de amor livre e gangues do tráfico definham em anos; esperávamos o contrário?
Se o cataclismo de A Estrada ocorresse de fato, seria de se esperar que os bons, os mais confiáveis e respeitosos, fossem bem-sucedidos em montar grupos e pequenas sociedades; todos teriam a ganhar. A divisão de tarefas (uns procuram alimento, outros preparam esquemas de defesa, etc) eficiente precisa de um mínimo de confiança e comprometimento. Seriam eles que se defenderiam com mais eficácia. Digam o que quiserem sobre os EUA e Israel, mas é um fato que sua conduta bélica é eticamente superior à dos seus adversários: há práticas que eles se negam moralmente a adotar (terrorismo, homens-bomba, seqüestro, escudos humanos). Será mera coincidência que sejam também militarmente superiores? Os bárbaros, os canibais, as tribos de guerreiros nômades, condenam-se à miséria perpétua, pois a aposta nos ganhos imediatos da falta de escrúpulos (pilhar é mais fácil do que produzir) destrói suas chances de crescer. Um bando armado no qual, na hora de dormir, teme-se que os colegas do dia anterior metam-lhe uma faca no peito para garantirem o almoço de amanhã não é uma instituição particularmente estável.
Portanto, parece-me inverossímil que os maus sejam organizados e poderosos e os bons solitários e indefesos. Notem que nossa situação difere da do filme apenas em grau: todos morreremos, e a espécie humana certamente se extinguirá (ao final do processo irreversível de entropia cósmica, se não antes). Só mudam o número de gerações até essa data terrível (uma ou duas no filme, indeterminadas, provavelmente muitas, no nosso caso). Vamos já para a guerra de todos contra todos? Para quê construir, se dá trabalho e tudo virará pó? É aí que entra a esperança transcendental (não necessariamente religiosa), o reconhecimento de valores que vão além da vida humana, à qual os protagonistas estão abertos, e que os difere da massa de malvados. No fim das contas, é isso que os salva. Tomistas e agostinianos alegram-se em pleno acordo.
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terça-feira, abril 13, 2010
O que é hipocrisia?
Ocorreu, é verdade, uma mudança de definição. Para muitos, hipócrita é quem ousa fazer apelo a uma ordem moral objetiva para condenar o que quer que seja. É uma definição difícil de engolir: levá-la a sério significa, perante um crime hediondo, ver como única reação aceitável o “não julgar”. Ademais, é autocontraditória, pois, ao julgar que é mau julgar, se está julgando. Ainda assim, essa definição capenga preserva algo verdadeiro: a condenação moral é um ato no qual a hipocrisia pode se dar. O dicionário dá conta de defini-la melhor: manifestação de virtude fingida; e uma forma de fingir a virtude é condenar alguém para parecer bom em oposição.
Usando a definição, vemos que muito do que é considerado hipócrita na verdade não é. Assim, condenar um pecado do qual se é culpado não é, de si, hipócrita. Dou um exemplo: Todos nós já mentimos alguma vez, e volta e meia mentimos de novo em casos que consideramos injustificados. Seria hipócrita, então, condenar a mentira? Claro que não. Mais problemático seria quem se recusasse a fazê-lo, justificando assim o próprio vício.
A própria definição do dicionário, entretanto, é imperfeita, e inclui mais do que apenas a verdadeira, odiosa hipocrisia. Nem sempre é hipócrita a tentativa de esconder um vício (o que via de regra implica fingir-se virtuoso); há situações em que é objetivamente bom. Um professor pode ser preguiçoso e querer genuinamente que seus alunos não o sejam. Transparecer seu próprio vício para eles seria um grande obstáculo para esse fim. Sua postura na classe deve ser a de alguém ativo, trabalhador, para encorajar os alunos. Ademais, é agindo como se fôssemos virtuosos que adquirimos, aos poucos, a virtude; um processo cujos primeiros passos podem ser só para manter as aparências (claro, estagnar nesse ponto é botar tudo a perder).
Em geral, o bom exemplo é motivo suficiente para não transparecer para tudo e todos os vícios que se possui; sem falar no dano desnecessário ao próprio nome. A vergonha não chega a ser uma virtude, mas está bem longe da hipocrisia. O sujeito considera ruim um certo vício que possui (se esforça, inclusive, para melhorar), que ele obviamente não sai mostrando por aí; e se se depara com esse pecado sendo cometido, condena-o e dá seus motivos (que são sinceros).
O caso acima finge ter uma virtude que realmente gostaria de ter. Mas e o caso daquele que não quer ser virtuoso? Ou seja, a pessoa que possui um vício, não deseja superá-lo, condena-o publicamente nos outros e ainda por cima finge-se virtuosa, essa certamente é hipócrita? Mesmo essa pode não sê-lo. É só imaginar o caso de um velho autocomplacente que, apesar de tudo, não quer decepcionar os que o admiram. Perdeu a esperança em si, mas ainda nutre alguma pelos que o rodeiam, e detestaria vê-los resvalar pelo mesmo desânimo quanto ao bem do qual ele próprio desistiu (“Sou um caso sem volta; mas meus netos podem ser melhores do que fui.”). Finge ser virtuoso, condena o vício e, embora não queira sair de seu estado (conformou-se), nem por isso é hipócrita.
Estamos chegando perto. Para ser hipócrita, bastaria que a preocupação do sujeito fosse com sua própria aparência enquanto tal, e não enquanto meio para o progresso moral dos netos. Nesse novo caso, o fingir a virtude e condenar o vício não decorrem de nenhuma percepção de que eles constituem um objetivo desejável para si ou para os outros, mas do simples desejo de se engrandecer. Isso é compatível com (e até depende de) uma boa dose de auto-engano: ninguém é aberto consigo mesmo quanto ao amor ao vício e à dissimulação - a percepção clara da própria condição causaria na grande maioria o imediato desejo de mudar. Em alguma medida, o sujeito se considera virtuoso, embora esse juízo próprio decorra da opinião alheia baseada na aparência falsa que ele construiu. Mas o seu verdadeiro desejo não é ser bom: quer, no fundo, apenas aparentá-lo enquanto continua mau; quer a glória devida ao bem sem o bem em si.
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quinta-feira, fevereiro 11, 2010
Consumo não é consumismo, ou Apologia do shopping center
As atitudes contemporâneas acerca do consumo são totalmente equivocadas. Quais são as duas coisas que se costuma dizer? 1) o consumo é um vício, algo que destrói o indivíduo; 2) entretanto, ele ajuda a economia a crescer e nos torna mais prósperos. As duas estão erradas; o consumo não causa crescimento econômico nenhum - ele é apenas consequência do crescimento, e pode inclusive significar retração econômica se for aumentado às custas da poupança. Mas mais importante do que isso é que o consumo não é mau e nem degrada o ser humano; antes, ajuda-o a chegar à plenitude de sua existência.
O que é consumir senão utilizar algum meio externo (isto é, distinto do próprio agente) para atingir alguma finalidade? Comer um hamburger é consumir, vestir uma roupa é consumir, ouvir uma sinfonia é consumir, ler um tratado filosófico é consumir. O que muda é a finalidade. Por acaso é algo mau se alimentar, estar bem vestido, apreciar uma obra de arte ou ponderar sobre as grandes questões da existência? São coisas boas? Então também são bons os meios pelos quais chegamos a elas.
Ademais, repare no seguinte: quem considera o consumo um mal deveria, conseqüentemente, ter a mesma opinião acerca do trabalho, pois todo trabalho visa ao consumo; seja o consumo do próprio trabalhador ou o consumo de outros, por meio da troca. Não faz sentido, portanto, louvar um e condenar o outro, a não ser que o ideal do sujeito seja o trabalho supostamente praticado por alguns monges, que teciam cuidadosamente cestos de vime para depois desmanchá-los e tecê-los novamente. Não conheço a origem dessa história, e nem se é verdadeira; sei que os primeiros monges e eremitas do Cristianismo, os chamados padres do deserto, que abandonaram o mundo para meditar e orar no deserto, faziam cestos que eram vendidos no mercado, e com o dinheiro compravam seus víveres (muito poucos, obviamente, pois sua vida era de abnegação). O mesmo vale para a imensa maioria dos monges, aos quais mesmo os ateus são gratos pelas cervejas e bolos. Fim do parêntese histórico-teológico. Tudo isso para dizer que consumir é, em si, um bem, uma necessidade humana.
Coisa muito diferente é o consumismo, a doença do consumo, que é o desejo excessivo de comprar. Acho que há uma série de motivações por trás dele: o apego aos prazeres sensíveis de curto prazo; o gosto superficial da novidade pela novidade; o desejo de aparecer e ser admirado pelo que se tem. Todos eles, creio, fluem de algo mais profundo, um vazio da alma que não será preenchido nem por dez mil acessórios Louis Vuitton.
É muito fácil fazer a acusação de consumismo genérico. Compra-se muitas coisas supérfluas; para quê ter um celular que tira foto? No caso particular, contudo, cada compra parece ter sua razão de ser. De perto, o que parecia um aglomerado de zumbis arrastado por campanhas de marketing rumo ao shopping revela-se uma família normal (no bom sentido) satisfazendo suas necessidades de forma razoável e eficiente. É ótimo e prático ter um celular que tira foto; assim posso registrar e partilhar momentos que de outra forma perderia; por que não? Pois é; é muito fácil bater no peito e dizer que se é consumista no geral, mas difícil identificar quais compras são realmente desnecessárias e prejudiciais.
Para dificultar a questão, a diferença entre o consumo e o consumismo é apenas indiretamente ligada à quantidade de produtos comprados. Em geral, tudo mais constante, o consumista tenderá a comprar mais do que o consumidor temperante. Mas mesmo alguém que não consuma tanto ou de forma tão extravagante pode ter sua atenção inteiramente voltada para sonhos de consumo ao qual ele não tem acesso (carros, iates e mansões que ele não tem dinheiro para comprar). E há o consumismo alternativo, o desejo por produtos raros e únicos (o artesanato da tribo perdida, o CD da banda que ninguém conhece); aqui não se busca a quantidade e nem alguma qualidade do produto em si, mas uma sensação socialmente atribuída a ele (a raridade, a sensação de superioridade intelectual ou cultural, etc). Em suma, é fácil valorizar exageradamente os bens materiais, mas não é fácil identificar as ocasiões em que isso ocorre.
Já repararam que muita gente fala mal de shopping center e bem de museu, mas frequenta sempre o primeiro e quase nunca o segundo? É que o shopping ganhou a fama de símbolo do consumismo, então pega mal dizer que se gosta dele. Eu, apreciador assumido do bom shopping center, tendo passado diversos bons momentos em suas dependências, sinto-me moralmente compelido a defendê-lo; que não mais se confunda consumo com consumismo!
Vejam só: sempre que é preciso fazer uma compra ou que se quer ir ao cinema, lá está o shopping como a opção mais prática, na qual ainda pode-se tomar um lanchinho ou saborear uma boa refeição. Ora, por que não ir a uma rua de comércio? Porque o shopping simplifica e facilita muito a nossa vida. Reúne várias conveniências num mesmo ambiente com ar-condicionado, pouco barulho (passeie pela Teodoro Sampaio e me diga se uma trilha easy-listening não é preferível à barulheira dos ônibus, e o ar condicionado ao sol de rachar, ou à chuva), é muito mais fácil de parar o carro e bem mais seguro. Isso permite uma alta concentração de lojas num local agradável o bastante para permitir que os consumidores passeiem com calma; e é aí que descobrem novas oportunidades de compra.
O shopping é um templo do consumo? Só para quem faz do consumo seu deus. Para quem tem suas prioridades em ordem, é onde se resolve com pouco gasto de tempo as necessidades de consumo, sem falar na boa sociabilidade e nas opções de lazer oferecidas. Um ponto concedo de bom grado: o shopping é palco de muita cafonice. Ele reflete, afinal de contas, o gosto dos consumidores; e hoje em dia, por algum motivo que desconheço, imitações baratas de arquitetura neo-clássica e orquestras de papais Noéis tocando standards americanos passam por elegantes (bom, até aí, Campos do Jordão é muito pior). Além disso, algumas de suas qualidades geram defeitos: a segurança relativamente confiável, por exemplo, faz com que os pais deixem seus filhos lá sem grande medo. A conseqüência é termos que aturar a euforia boçal das trupes de pré-adolescentes que experimentam, no shopping, seu primeiro gostinho de liberdade (eu bem sei; já fui um deles).
Mas nada disso deve inibir o consumidor virtuoso. Vá lá ao shopping com seus amigos (ou desacompanhado - o estranhamento de ir ao cinema ou a um restaurante sozinho ocorre somente na primeira vez; a partir daí, vira um ótimo programa - tenho experiência nesse departamento), tenha uma tarde excelente e, quando um pseudo-intelectual ou um “geração saúde” vier com aquele olhar reprovador, lembre-se de que a diferença de hábitos pos si só não os torna imunes ao consumismo.
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quarta-feira, janeiro 27, 2010
O "eu" contra o "para mim"
Tendo sorvido uma dose considerável de Ayn Rand, concluo que nem o altruísmo, e nem o egoísmo, são bases satisfatórias para a ética. Ambas as tentativas têm que, para manter-se com os pés no chão, esvaziar-se de significado, e acabam perdendo o insight precioso que lhes dera origem para manter intacto um sistema trivial. Sob a constatação óbvia de que ajudar um ente querido é bom, a ética do egoísmo é forçada a interpretar esse ato como egoísta. No fim das contas, ela dá um jeito de mostrar até que morrer por outro pode ser uma ação “egoísta”. Isso acaba apagando o insight original de que não devemos, antes de tudo, considerar o que os outros vão pensar, ou fazer o que os outros consideram melhor; ninguém deve pensar por nós, e nem querer por nós; nesse sentido, não se deve viver para os outros; meu valor não depende da opinião que outros têm de mim.
Mas o altruísmo também capta uma verdade, ao menos no plano psicológico: o próprio agente não deve, via de regra, figurar como o objeto de sua ação. A auto-referência constante é um mal sério. Vou dar um exemplo prosaico: um sujeito anda normalmente pela rua, como qualquer outra pessoa, quando, subitamente, vê sua amada secreta na outra calçada, e seu andar muda: ele quer parecer mais legal, mais confiante, blasé, quer um gingado maneiro. Em suma, seu foco deixa de ser o destino ao qual se dirigia e passa a ser sua própria imagem enquanto se desloca - o que explica a trombada num poste dez passos à frente. Seu andar, antes perfeitamente apresentável e dotado de um estilo próprio (pois não há dois andares iguais), é agora um espetáculo ridículo, e se a menina tiver algum discernimento vai ver através das aparências e dispensar o comediante, a não ser que ele transpareça uma alma doce e simpática por trás da falta de jeito - uma conseqüência involuntária da afetação. Entretanto, se ele for calculista o bastante para afetar inclusive a falta de jeito enternecedora de um jovem encabulado que quer parecer confiante (uma auto-referência à segunda potência), bom, daí a reação mais caridosa da menina seria cochichar algo para a amiga, olhar para ele e rir, na esperança de macerar seu ego com o pilão da vergonha.
Quem ouve música para que os outros a ouçam (auto-falantes virados para fora do carro é um sinal...); quem escreve num estilo afetado, ou melhor, quem procura “ter um estilo” na hora de escrever - “vou ser pernóstico e irônico como um narrador do século XIX”; quem participa da conversa só para mostrar o quanto é sabido; quem se veste para chamar a atenção ou pertencer a uma patota; quem tenta ser o cara malucão e idiossincrático do grupo de amigos; quem pauta sua conduta e maneirismos pelo que algum ídolo diz ou disse (no sentido religioso de “ídolo”: o popular da escola, um astro da mídia, um intelectual da moda, o blogueiro radical, a imagem mental que se faz do pensador predileto morto há séculos); quem fica na sua e não fala nada para parecer que é um cara denso, profundo; tanto quem quer agradar a todos sendo politicamente correto quanto quem quer chocar a todos sendo politicamente incorreto. Cada um desses padece dessa auto-referência ou auto-consciência: suas ações sempre voltam-se para si mesmos. Mata-se a verdadeira identidade pessoal em prol de uma cartolina mal desenhada que cada um elegeu como preferível à própria alma.
No nível da cultura, a auto-referência também é letal. Para mim, o sinal de que uma cultura está morrendo é que suas manifestações não decorrem mais de uma necessidade natural que está sendo atendida, mas do desejo de “valorizar/mostrar nossa cultura”. Se vamos ao cinema nacional só porque “é o cinema nacional”, então talvez exista um bom motivo para seu insucesso. O mesmo vale para danças folclóricas, rituais indígenas e outras batucadas; a partir do momento em que viram atração turística, o que era cultura viva, espontânea e orgânica vira uma curiosa peça de museu e, em breve, peça de descarte. A morte de uma cultura é decretada oficialmente quando se cria um Ministério da Cultura para preservá-la.
Quando se conta uma piada, o foco deve estar na piada e não em quem a conta, sob pena de que ele próprio vire a piada. É só na imaginação do agente que ele está dando um show; visto de fora é só mais uma aparência superficial, que pode até agradar por um tempo mas se tornará cansativa logo mais. O estilo verdadeiro do autor aparece apenas quando ele não está tentando criar um estilo próprio. Uma cultura digna do nome nasce e se desenvolve de ações que não visam criar uma cultura. Quem se esforça para ser cool já não é cool.
Isso não é para dizer que o próprio indivíduo nunca deva ser objeto de suas ações, e sim que ele não deve ser o objeto de todas, e nem da maioria, delas. No plano teórico, todos sabem que o universo não gira em torno de si, mas frequentemente agimos como se girasse. Ser o centro das atenções deve ser o resultado, a conseqüência - em geral involuntária - de realmente termos algo de excelente a apresentar aos demais, e não a finalidade que determinará o conteúdo apresentado. O psicólogo Viktor Frankl identificou bem o problema: enquanto o indivíduo pensa em “encontrar a felicidade”, ele está condenado à tristeza; a felicidade só vem quando ele encontra um valor fora de si e passa a persegui-lo. Se não há valores lá fora a serem descobertos, se eles são todos criados pelo meu capricho, então não há valores, e caímos mais cedo ou mais tarde no tédio.
Essa auto-referência que redireciona todos os nossos desejos para nós mesmos, que nos transforma no centro e na finalidade do universo, é, na minha opinião, uma das maiores causas da insinceridade, do receio de mostrar aquilo que se é para os outros e para si - enfim, a recusa de ser o que se é. É, por um lado, um egoísmo, um voltar-se para si; por outro, um altruísmo: o verdadeiro eu precisa se anular e moldar-se à opinião alheia para sentir-se bem - ainda que essa opinião alheia venha da própria imaginação, de uma projeção de como eu gostaria de ser visto por mim mesmo. De uma forma ou de outra, muitas (todas?) ações acabam sendo maculadas por ela, e seria um erro parar de agir só porque ainda não se atingiu um estado de sinceridade total. Fazer uma auto-análise escrupulosa e paralisante seria, na verdade, fortalecer ainda mais essa prisão. Como, então, sair dela? Não há uma chave de fácil alcance. Quando penso “vou fazer X e Y para não mais pensar em mim mesmo” já estou pensando em mim mesmo; o foco está em mim, e não no X e muito menos no Y.
Ninguém decide dormir. O sono só vem quando não nos concentramos em nada, nem mesmo em dormir. Há várias medidas práticas que nos preparam para chegar no estado em que dormir é possível, mas nenhuma delas produz o sono da mesma forma que movo voluntariamente o braço. Bom, isso sem entrar nos remédios. E, ao contrário do sono, não há droga para mudar a nossa atitude perante a realidade. Assim, o problema da auto-referência é insolúvel.
Insolúvel, mas com solução. Inalcançável para nós, pelo mero esforço consciente, e, por isso, insolúvel do nosso ponto de vista, ela consiste numa mudança profunda de atitude, um voltar-se para fora, que não está plenamente em nosso poder, embora, é claro, possamos favorecê-lo ou dificultá-lo. A graça tem um papel fundamental aí, essa influência divina sobre nossas disposições e caráter, que não depende de nossas capacidades e que nos estimula e ajuda a sermos bons e progredir moral e espiritualmente, superando os entraves internos, os auto-enganos e indo mesmo à revelia dos nossos desejos; basta a decisão de não refrear seus impulsos. O abrir-se para a ação de Deus, mesmo que inicialmente apenas no plano mais raso da consciência, prepara a alma, sem grande trabalho de nossa parte, para sair cada vez mais de si mesma em busca do bem que está lá fora.
Como a auto-referência nos prende dentro de nós mesmos, é natural que a solução venha de fora, e não de nós, a causa do problema. Por isso, tendo reconhecido a importância do que está em jogo, o melhor a fazer é sair atrás do verdadeiro, do bom e do belo e não pensar mais no assunto.
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quinta-feira, outubro 15, 2009
Carlos, o consequencialista
Carlos era um jovem estudante de economia numa faculdade privada paulistana, e estava insatisfeito. Ele queria fazer algo para ajudar os necessitados, mas os professores só falavam em maximizar o lucro, em perseguir o auto-interesse. E isso não era o exato oposto da ética? Os princípios morais de Carlos eram outros: “o bem da coletividade deve vir antes do bem individual”; “fazer o bem é trazer o máximo benefício para o maior número de pessoas”; “uma ação é má quando é egoísta, e boa quando é altruísta”. E alguém discordava? De forma nenhuma: os colegas, os amigos, os parentes, todos estavam de pleno acordo, mas mesmo assim nada mudava. Era como se, para todo mundo menos ele, essas máximas devessem ser só faladas, e não vividas.
Seu tio, por exemplo, era rico e comprara um carro importado; por acaso era justo uns terem carro importado enquanto outros pegavam ônibus lotado? “Ah, Carlinhos, o mundo é assim, seria ótimo se todos fossem iguais, mas não são. Fazer o quê? Cada um corre atrás do seu”. Alguns colegas ajudavam uma entidade estudantil que dava aulas de reforço para crianças carentes. As intenções até que eram boas, mas qual o resultado prático? Quase nenhum. E fazer o bem era, por acaso, ter intenções boas, ficar de consciência tranquila? Isso também era egoísmo. Até seu melhor amigo da faculdade, o Dado, o decepcionou. No começo do curso, um verdadeiro revolucionário; só falava da revolução e o mundo igualitário que ela traria; até viajou para Cuba nas férias. Já no quinto semestre, amoleceu. “Olha, não dá para viver como se estivéssemos numa utopia; se quisermos ter algum impacto social, precisamos entrar no jogo do sistema capitalista.” Nessa época, Dado já estagiava.
Não. Não dava para continuar sendo hipócrita. Ainda que ninguém no mundo fosse moral, Carlos seria. A decisão não podia esperar. Todo egoísmo, toda preferência por si mesmo e pelos próprios desejos devia ser eliminada. O bem da maioria deveria sempre vir antes do bem individual. Por que o mero acidente, o acaso, de uns nascerem ricos e outros pobres significava que os primeiros teriam direito a uma vida boa e os segundos não?
O primeiro passo foi vender o carro e doar o dinheiro para uma ONG que ajudava vítimas da violência no Paquistão. Ele até considerou doar para alguma causa mais próxima, mas ver o resultado de sua caridade daria um certo prazer, e seria portanto um tipo de egoísmo; fora que seria injusto preferir alguém só porque esse alguém estava mais próximo. A responsabilidade moral não se pauta por algo tão arbitrário quanto a distância. Afinal, ele queria fazer o bem ou apenas reconfortar sua consciência individualista?
O passo seguinte foi largar a faculdade (privilégio de poucos) e passar os dias nas ruas, distribuindo alimentos e roupas para os mais miseráveis que pudesse encontrar. Com o dinheiro da faculdade (que os pais, que moravam no Rio, continuavam depositando na conta dele, sem suspeitar de nada) ele comprava para si apenas o mínimo necessário: a comida mais barata que permitisse a sobrevivência de seu corpo e algumas outras necessidades vitais; o resto era doado. O espaço do apartamento charmoso que ele alugava não ficou improdutivo. Expulsou o Marcos e o Alex, dois colegas que moravam com ele (tinham meios para se sustentar; não ia ser ele a auxiliar o egoísmo alheio) e trouxe doze mendigos para viver lá. O bem de doze é superior ao de dois. Da Leni, a empregada que costumava cozinhar e limpar a casa, nem preciso falar - demitida. Daí para frente nada poderia impedir sua progressão rumo ao altruísmo total.
Sua única muda de roupa estava preta de tão imunda, não tomava banho, o corpo era uma vara suja e fedorenta; comia do lixo, ia ao banheiro na rua e dormia no chão. Mas ainda estava insatisfeito; queria fazer algo a mais. Um dia, o Robério, um dos mendigos do apartamento, teve um piripaque, babou sangue e foi para o hospital; precisava de um pulmão novo. Aí veio a revelação: o corpo esbelto e saudável de Carlos tinha órgãos que poderiam salvar a vida de muitos doentes. Qual o critério ético objetivo para priorizar a própria vida sobre as vidas de outras pessoas? Nenhum. Manter-se vivo enquanto outros padeciam era um ato egoísta; era o ato egoísta supremo. A decisão era clara.
Foi uma espera de dois meses até que Robério morresse. É que Carlos não queria correr o risco de ajudar alguém próximo. Era para evitar esse egoísmo da preferência pessoal que ele procurava afastar de si os amigos ou quem quer que lhe agradasse (o que já não era difícil, dado seu aspecto). Morto o mendigo, foi até o saguão de um hospital bem equipado e se degolou na frente das enfermeiras. Os médicos tentaram salvar o rapaz mas não teve jeito, e os órgãos foram, então, doados. Receberam-nos cinco jovens em condições críticas. Desses, dois tiveram problemas sérios de rejeição e não resistiram. Dos outros três, dois tiveram vidas normais e pouco notáveis. Já o terceiro, um menino de 13 anos, que recebera um dos rins, foi um caso a parte.
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Joel Pinheiro
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quarta-feira, setembro 30, 2009
Seria, a propaganda, do mal?
Qual é o grande problema com as propagandas? Por que é que todo mundo tem alguma propaganda que gostaria de proibir? O que está por trás dessa mentalidade, que vai aos poucos corroendo nossa liberdade de expressão?
Vimos recentemente a tirada do ar da infeliz campanha publicitária da Vovó Safalda, que fez sucesso entre a molecada conscientizada com seu sábio conselho à netinha: “Mas quem falou em casamento? Eu tô falando em sexo!”. Claro que é bem triste ver uma senhora, que devia ser respeitada por sua experiência e sabedoria, por sua capacidade de ir além dos desejos de curto prazo, capitular para a mentalidade de um adolescente tarado e hedonista. Se bem que, perto do que se vê na televisão, essa propaganda era até bem casta. É no mínimo curioso que sensibilidades que agüentaram incólumes décadas de Malhação e Xuxa tenham sido mortalmente feridas ao ouvir uma vovó dizer a palavra “sexo”.
Bom, não quero perder o foco. O fato é que alguém achou a propaganda ofensiva e ela foi tirada do ar. Isso já traz à mente vários outros casos parecidos: a Zeca-feira, a tartaruguinha cervejeira, as propagandas de cigarro. Nem sempre é a lei que proíbe; as próprias empresas já se auto-policiam e, temendo represálias do governo ou de grupos da sociedade civil (leia-se ONGs), controlam o que vai ao ar, buscando um equilíbrio meio dúbio. Coloca-se, em fast forward, o aviso “aprecie com moderação” depois de uma propaganda inteira, ou melhor, de uma cultura inteira, que grita com toda a força “beba SEM moderação”, “persiga o seu prazer SEM moderação”. “Ah sim!” deve exclamar o espectador; “eu iria ao bar para encher a cara, mas depois deste aviso sensato, acho que um copo é o bastante”. Chegou-se ao extremo ridículo em que as companhias de cerveja não mostram pessoas bebendo em seus comerciais. O ator olha a garrafa, segura a garrafa, sorri para a garrafa, e brinda; beber, nunca. Agora sim, a moral e os bons costumes estão a salvo!
As companhias entraram no jogo semântico de seus adversários. Sinto muito, mas a propaganda não visa apenas “garantir o direito à informação”. A empresa quer sim influenciar o público e aumentar suas vendas. Se se aceita a premissa de que a propaganda manipula o espectador, transformando-o num zumbi sem alma que quer apenas consumir, então não tem jeito, a empresa já perdeu. A defesa mais honesta da propaganda é a seguinte: sim, queremos influenciar o consumidor, mas ele vai comprar nosso produto apenas se quiser; a responsabilidade é dele. O mesmo com a propaganda de brinquedos. Há uma campanha crescente para que ela seja proibida e limitada de todas as formas, pois as crianças não têm discernimento para escolher. Ainda bem que não é a criança que tem poder de decisão sobre a renda da família, né?
Há algo de mau na cultura de indulgência e excessos em que vivemos? Sem dúvida. Ela é causada pela propaganda? É claro que não. A propaganda apela para desejos e pulsões já existentes nas pessoas. Se ela criasse esses desejos, manipulando as massas de pobres ignorantes, como afirmam tantos sociólogos conscientizados, então não existiria campanha publicitária fracassada. As propagandas que apelam ao hedonismo e à irresponsabilidade são efeito do hedonismo e da irresponsabilidade já existentes nos consumidores brasileiros. Os jovens querem beber até cair e guiar loucamente na volta para casa; então vamos proibi-los cada vez mais de beber, e proibir as propagandas de cerveja. Os pais já não cuidam mais dos filhos, deixam-nos na frente da TV o dia inteiro e compram tudo o que eles pedem; então vamos proibir as propagandas de brinquedo. O povo fuma sem pensar nos seus preciosos pulmões; então vamos proibir o fumo e a propaganda de cigarro. Isso só alimenta a irresponsabilidade. Quanto mais regras, quanto mais proibições, menor a autonomia individual, e menor a responsabilidade de cada um por suas ações. As pessoas se preocupam apenas em obedecer (para poderem, quando algo der errado, dizer “não foi minha culpa, eu segui as regras”) ao invés de agir da melhor forma possível.
Não adianta proibir a propaganda. Não adianta botar avisos no fim do comercial. Não adianta proibir toda nova atividade que apresente riscos de saúde. Isso é um controle tolo de sintomas que só ajuda o alastramento da doença. O problema real, a causa verdadeira, é moral e espiritual, ou seja, está nos valores pelos quais as pessoas vivem. Fazer escândalo quando esses valores são retratados no comercial é, no mínimo, ingenuidade. E todo o resto da cultura? Não deveria ser proibido também?
A saída moralista fácil (não alterar a realidade, apenas impedi-la de ser mostrada) encontra o anti-capitalismo normal do povo brasileiro (“lucro é mau”). E as empresas entram na dança, aceitando as premissas e o raciocínio, mas negando, sabe-se lá com que malabarismos retóricos, a conclusão: o homem não é responsável por suas escolhas, e portanto não deve ter a liberdade de escolher.
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Joel Pinheiro
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