domingo, setembro 05, 2010

Desmontando Eutífron

Muita gente conhece o chamado “dilema de Eutífron”, que nos força a escolher entre uma de duas opções: ou a lei moral é criação de Deus e pode ser mudada por qualquer capricho seu; ou então Deus não pode mudá-la, e nesse caso ela é superior a Deus.

Nenhuma das duas possibilidades é muito satisfatória. A segunda nos obriga a aceitar um Deus que não é onipotente, que conhece algo superior a si. E a primeira nos obriga a dizer que a moral é o produto arbitrário de uma vontade toda-poderosa. Se amanhã Deus decidir que beber água é imoral e estuprar é meritório, então assim será.

Um dos grandes méritos da tese da lei natural é dar uma solução plenamente satisfatória ao dilema. Segundo ela, a moralidade — o certo e o errado — decorre da natureza do ser humano (não vou aqui entrar no mérito de como isso se dá — meu ponto não é defender a lei natural, só mostrar como ela desmonta o dilema). Sendo assim, da natureza humana como ela é, conclui-se que estuprar é destrutivo ao bem humano e beber água contribui com ele. Portanto o primeiro é mau e o segundo bom.

Deus pode mudar isso com um ato de vontade? Não. Enquanto o homem continuar como ele é, a moral continua a mesma. Mas quem criou o homem? Deus. E Deus pode certamente mudar a natureza humana, ou até extinguir a espécie, caso no qual a moral também acabaria.

Mudar a ética sem mudar o homem carrega consigo uma contradição, algo que Deus não pode fazer (não por alguma limitação de seu poder, mas porque a contradição, embora aparentemente, verbalmente, pareça ser algo, na verdade não é nada. “Solteiro casado” parece se referir a alguma coisa, mas na verdade é uma expressão sem significado).

Assim, Deus criou a ética ao criar a espécie humana. A lei natural foi instituída no Jardim do Éden, e não no Monte Sinai, onde ela foi apenas revelada (como ajuda para o intelecto fraco do homem caído).

2 comentários:

Amanda disse...

não conhecia o “dilema de Eutífron”, mas concordo que a ética foi criada a partir da espécie humana. Ainda assim, os próprios humanos necessitam da ética para alterar as leis morais válidas (ou não).

Marcílio disse...

Na essência da solução natural do dilema moral implícito no Eutífron está a simultaneidade necessária: 1° Homem.. 2° Lei moral humana..
Se Deus criou ou não o homem, a necessidade da permanência da lei substantiva (lei moral) decorre da presença do substantivo (homem), razão pela qual a interferência do que quer que seja sobre a lei moral pode ser decidida sem exame de pressuposto anterior que não lhe afeta, inclusive do pressuposto no criacionismo.. Portanto é irrelevante saber se Deus criou ou não o homem para decidirmos se Deus pode alterar a Lei moral sem alterar o homem..