terça-feira, outubro 19, 2010

Um conto de duas farmácias

Motivos médicos têm me mantido um tempo nos EUA. Nessa temporada, tive a oportunidade dúbia de freqüentar muitas farmácias, e posso dizer que a experiência americana nesse quesito é muito diferente da brasileira. Querem saber em qual dos dois países as farmácias são melhores? Aposto que não, né? Mas mesmo assim acompanhem comigo esta disputa que, embora menos emocionante que a Copa, guarda uma lição.

Comecei a pensar no assunto farmácia ainda em São Paulo, quando tive que comprar lentes de contato e não as encontrei. Na segunda tentativa frustrada, perguntei à atendente da farmácia se alguma outra próxima teria (tenho memória recente de comprá-las). A resposta? Farmácias estão proibidas de vender lente e óculos. Interessante. Lá fui eu para uma ótica. Imagino que ter uma visão boa seja algo perigosíssimo ao indivíduo e à sociedade, e por isso as autoridades tenham decidido dificultar nosso acesso a ela. Agora, cada idoso pobre com vista cansada tem que marcar consulta com oftalmologista e apresentar receita médica para comprar óculos. Os consumidores já podiam, antes, consultar um médico e pegar a receita. Quem achava que isso tomava muito tempo e dinheiro e que o benefício dos óculos um pouco mais precisos não valia a pena podia comprá-los direto. Não mais.

A lente de contato é um pequeno passo na crescente restrição ao que as farmácias podem vender. Lembro de uma matéria do Jornal Nacional uns anos atrás sobre outros produtos cuja venda seria proibida (já não lembro quais) em que perguntavam a um comprador numa farmácia se ele aprovava a nova lei. Sim, claro, aprovava. Ironicamente, na cesta desse consumidor consciente estavam vários produtos que a lei proibiria. Para vocês verem como pesquisas de opinião e voto nas urnas refletem fielmente as preferências reais da população... O resultado é que hoje em dia nossas farmácias só vendem remédios, cosméticos e algumas coisas de banheiro. Em breve alguém vai perceber que shampoo é bem diferente de remédio, vai achar “irracional” juntar os dois produtos numa mesma loja e vai querer que a lei separe o que o bem-estar dos consumidores uniu. Devem existir motivos muito bons para proibir as farmácias de vender produtos em geral, fazendo com que os cidadãos percam tempo à toa indo a várias lojas diferentes. Será? Vejam a justificativa dada pelo presidente da ANVISA, Dirceu Raposo de Mello (ADVERTÊNCIA: o pensamento de quem trabalha com o Ministério da Saúde pode ser prejudicial a sua saúde mental): “A farmácia é um estabelecimento diferenciado, não se pode banalizar esse ambiente com produtos que não têm relação com seu objetivo”. Precisa criticar?

Pensemos em algo mais agradável do que a ANVISA, o que não é difícil. Vamos aos EUA! Lá, as farmácias vendem de tudo: remédios, eletrônicos, utensílios domésticos, brinquedos, livros, comida e mais, muito mais. Procuro um pouco e ali estão: óculos de até 3,5 graus por 15 dólares livremente expostos (é, a saúde americana ainda não chegou no nível invejável da brasileira, embora avanços importantes estejam sendo feitos nesse campo). Enquanto espero meu remédio ficar pronto (mais sobre isso abaixo) compro guloseimas. Não tenho a menor dúvida: farmácia banalizada é muito melhor.

O outro lado da pílula

Talvez você esteja pensando algo nessas linhas: “canalha liberal vendido ao capitalismo ianque!” Se for o caso, acalme-se. Na competição pela melhor farmácia ainda sobra um quesito no qual poderemos resgatar a honra brasileira. Notem que até agora eu falei de tudo, menos de remédio.

A farmácia americana goza de muita liberdade exceto quando o assunto é remédio; aí ela é o sonho de qualquer burocrata. Registrem bem: para comprar qualquer remédio de receita, é preciso dar a receita (que é nominal, numerada e tem um papel especial com várias marcas para não ser falsificada) ao farmacêutico, apresentar documento de identidade e dar endereço e telefone; daí o farmacêutico registra tudo no computador, faz algumas ligações e depois coloca a quantidade exata de remédio que a receita prescreve num potinho. Da primeira vez, o atendente me disse que estaria pronto em vinte minutos. Fiquei pasmo; vinte minutos? No Brasil a venda é instantânea (fora para remédios tarja preta - nos EUA é assim para quase todos): o atendente olha o seu papel e te dá a caixa. Uma lei nova que proíbe que o próprio consumidor pegue o remédio atrapalha um pouco as coisas, mas o serviço ainda é rápido. Bom, como dito, usei o tempo de espera para comprar sorvete, Coca-Cola e outros remédios da alma. O que eu nem suspeitava era que aquele fosse um dia de sorte; o normal é que o remédio demore uma hora para “ficar pronto”. Perguntei a um farmacêutico que conheci por aqui e ele me contou que a demora deve-se à checagem da receita e à negociação com as seguradoras. Falha de mercado? Mais para falha de governo: o mercado de seguros americano é dos mais regulamentados do mundo, e as seguradoras são obrigadas a dar muito remédio de graça sem aumentar o preço da mensalidade; naturalmente, lutam com unhas e dentes para não dar um centavo além do exigido por lei. O resultado é que os pedidos vão se acumulando e forma-se uma fila imensa. Esse farmacêutico lamenta que ele não tem mais tempo de ajudar nenhum cliente, conversando e tirando dúvidas sobre sintomas. Todo ele é consumido por tarefas burocráticas.

Se o sistema brasileiro já é desnecessariamente complicado, o americano é uma piada de mau gosto. Contei a um atendente aqui nos EUA como funciona a venda de remédios no Brasil. “É, aqui era assim também. Mas tinha muita receita falsa.” Não tive a presença de espírito de retrucar um “E daí?”. No Brasil também tem muita receita falsa. E daí? Se receita não fosse obrigatória, o número de receitas falsas cairia muito, pode apostar. E elas cumpririam sua função legítima: informar ao paciente e ao atendente da farmácia qual o remédio e a dosagem prescritas pelo médico; não servir de controle legal de quem pode ou não ingerir uma substância. Mas, você me dirá, e os perigos de se tomar um remédio errado e morrer? Será que vale a pena encarecer (em tempo e dinheiro) toda a nossa relação com a saúde porque algumas pessoas são temerárias o bastante para tomar remédios perigosos sem ter a menor idéia se ele é ou não indicado a seu caso? Ironicamente, muita gente que defende a saúde regulamentada admite que descumpre a lei corriqueiramente, por exemplo pedindo indicação de remédio ao farmacêutico (ou mesmo à mãe), o que é ilegal (talvez isso mude parcialmente; notem o medo dos médicos de perderem sua reserva de mercado).

Perto do FDA, órgão do governo americano que decide que substâncias podem ser vendidas e quais devem ser controladas, a ANVISA é benigna e liberal. O FDA já quer, por exemplo, limitar legalmente a quantidade de sal em todos os alimentos. Muitas grandes empresas já se adequaram voluntariamente. Para elas é uma boa: via de regra, qualquer nova regulamentação será mais facilmente colocada em prática por uma grande empresa (para a qual o gasto extra é relativamente pequeno) do que por uma pequena, para quem o novo gasto pode comprometer a existência do negócio. Depois não venham reclamar de monopólios e cartéis...

Estou me estendendo; hora de anunciar o vencedor. Quem ganha na comparação de farmácias; Brasil ou Estados Unidos? And the winner is... o mercado. EUA e Brasil têm prós e contras diferentes; mas nas farmácias de ambos os prós devem-se à liberdade das pessoas de transacionar voluntariamente para melhorar suas vidas e os contras às ações dos governos que decidem melhorar a situação.

sábado, outubro 02, 2010

Astrologia

O argumento mais forte pare se dar crédito à astrologia, na minha opinião, é sua universalidade histórica e cultural. Todas as culturas (ou quase todas), em todas as épocas, viram alguma relação entre a os astros e a vida humana. O que tornaria esse argumento ainda mais forte é mostrar que as diferentes tradições, as diferente astrologias (babilônica, chinesa, ptolomaica, asteca), concordam entre si, ou ao menos se complementam. Fora esse fato, que levou, aqui no Ocidente, ao desenvolvimento de todo um sofisticado sistema de análise, sobra a evidência pessoal de quem já teve consultas reveladoras com astrólogos (seja para descrição do caráter, seja para previsão de tendências futuras na vida da pessoa). Mas esse tipo de evidência funciona só para quem teve a experiência. Para quem ouve o relato, ficam muitas incertezas (o quanto foi revelação real e o quanto sugestão?); quanto mais longe se é da pessoa, menor é a força da experiência pessoal dela.

Experiências pessoais existem para absolutamente todos os tipos de crença: astrologia, leitura de mãos (um homem que conheço foi a um astrólogo, e muito tempo depois a uma leitora de mãos, e recebeu a mesma descrição de seu caráter, em termos nada banais, de ambos), espiritismo, pentecostalismo, candomblé, catolicismo, simpatias mil, etc. No fim das contas, nenhum deles pode ter poder decisivo para um ouvinte. Em primeiro porque nunca se tem certeza que, de fato, algo extraordinário aconteceu. Em segundo porque, mesmo que se aceite o evento extraordinário, não se sabe se a interpretação dada por quem a vivenciou é correta (isso vale tanto para o ouvinte quanto para o sujeito). Será que a força benevolente que o fez se sentir em casa no terreiro de umbanda não era um demônio querendo arrastar sua alma para o inferno?

Claro que a astrologia tenta se dissociar de experiências “espirituais” desse tipo e se apresentar como uma ciência, na qual a experiência em questão não é um sentimento ou contato sobrenatural mas a constatação de que o astrólogo, lendo o mapa astral, sabe coisas sobre o cliente que não teria como saber, ou que fez previsões acertadas. Mesmo assim, a experiência humana comum é falível o bastante para nos deixar céticos. Peguem o exemplo da sangria: essa prática medicinal foi usada por milênios e em várias culturas. E vejam só: não só ela não curava doença nenhuma, como danificava a saúde do paciente, aumentando o risco de morte e dificultando a recuperação. E mesmo assim os melhores médicos, geração após geração, não percebiam. Pô, Aristóteles achava que os corpos caíam com velocidade diretamente proporcional ao peso, e muitos seguiram a linha dele; tem coisa mais obviamente falsa que essa crença? Para quem já sabe é óbvio; mas para a experiência casual humana pode parecer plausível. Isso é o bastante para, no mínimo, criar um bom ceticismo com relação a teorias cujo mecanismo proposto não podemos observar diretamente. Precisamos de uma experiência mais rigorosa do que a corriqueira.

O que a astrologia afirma é uma correlação constante entre a disposição dos astros no momento do nascimento e o caráter da pessoa. Isso é uma baita afirmação. Vejam: todo mundo aceita que os astros tenham influência sobre a vida na Terra. O sol bate, as plantas crescem, os homens sentem calor; uma estrela brilha, o amante sente-se inspirado a escrever um poema. Os fótons enviados pelos astros celestes a Terra podem ter efeito - direto ou indireto - inclusive sobre o bebê que acaba de nascer (e também sobre homens em todas as fases da vida); nada disso é muito polêmico. O polêmico é afirmar que esse efeito é previsível, ou seja, que a correlação entre os dois eventos (caráter da pessoa e disposição dos astros) é constante. É como afirmar que um pequeno objeto jogado de uma certa altura, ao bater no chão, irá sempre para o mesmo lado, o que sabemos não ser o caso; o número de micro-variáveis é tanto que algo genérico e maior como a temperatura do dia não influencia o processo de nenhuma forma previsível.

A posição dos astrólogos de que não se trata necessariamente de uma causalidade astro-pessoa, mas apenas de uma correlação cuja causalidade é desconhecida, é perfeitamente defensável. Mas a própria correlação precisa de mais evidências. Um bom exemplo seria procurar correlação entre os signos e comportamentos observáveis. Certo signo tende a ser mais audacioso? Então que tal medir sua correlação com acidentes de carro, ou com abertura de novas empresas? Outro tende a ser mais preocupado? Que tal medir sua correlação com problemas cardíacos? São só exemplos. O caráter (quero dizer, todas as características de sua personalidade) do indivíduo tem relação com seu comportamento. Sendo assim, dado que os astros têm relação com o caráter, então eles têm relação com o comportamento, que é algo mensurável. Nunca vi estudo que mostrasse relação clara de signo com comportamento algum. Também admito que nunca procurei muito, embora eu imagine que, se a evidência fosse forte, ela seria mais comentada publicamente. Por isso, não acredito em astrologia.

Isso tudo diz respeito à astrologia enquanto disciplina científica; mas não quer dizer que é imoral praticá-la. E de fato, se ela se restringir a esse plano puramente científico, não há porque condená-la moralmente (a não ser do modo trivial: é errado se dedicar ao estudo do falso - mas é óbvio que quem estuda não acha que é falso...). O problema moral só pode existir se a astrologia se coloca como algo além de uma mera ciência; como algo mais diretamente ligado ao plano sobrenatural. A simbologia astrológica se presta a esse tipo de leitura, assim como a ligação do astrólogo a disciplinas esotéricas, e a constante ligação histórica dela a cultos religiosos também. Aí ela se torna outra coisa: uma tentativa de violar a ordem espiritual, buscando a comunicação com espíritos para aprender verdades sobre a vida na Terra; a tentativa do homem de submeter o mundo espiritual ao seu poder, e que lança o homem num abismo de ilusões no qual ele está cada vez mais sob o poder de algo que não é nada bom. E isso sim, é digno da condenação moral dada por muitas religiões, inclusive o Cristianismo.