quarta-feira, setembro 26, 2007

Uma pedra tão pesada que nem mesmo Deus pode levantá-la

Pode Deus criar uma pedra tão pesada que nem Ele consiga levantar? Se Ele puder, então terá criado uma pedra que não consegue levantar, e portanto não é onipotente. Se não puder, então há algo que Ele não pode criar, e portanto não é onipotente. E como Deus é, por definição, onipotente, Deus não existe.

Esse argumento é surpreendentemente popular, e conta com muitas versões (até mesmo nos Simpsons: "um burrito tão quente que nem Deus seria capaz de comer"). A maioria das pessoas não o leva a sério; parece ser mais uma brincadeira. Mas, ainda assim, tentar responder a esse argumento nos leva a considerar questões importantes sobre o que é a onipotência, sobre a linguagem e sobre a realidade das coisas. A brincadeira torna-se uma boa oportunidade para considerarmos coisas mais sérias.

O grande problema do argumento está na pedra: uma pedra “tão pesada que nem Deus possa levantá-la”. Deus é onipotente. Isso significa que, qualquer que seja o peso de uma pedra, Ele pode levantá-la. Portanto, é correto dizer, de toda e qualquer pedra, que ela pode ser levantada por Deus. Isso é uma propriedade que pode ser atribuída a todas as pedras.

Assim, falar em uma pedra tão pesada que nem Deus possa levantá-la é falar de uma pedra que, ao mesmo tempo, pode e não pode ser levantada por Deus. Isso é, obviamente, uma contradição.

Um ser cuja definição contenha uma contradição não pode existir. Mais do que isso: ele não pode sequer ser pensado. Uma pedra a qual Deus não possa levantar é equivalente a um solteiro casado ou a um círculo quadrado. Não existem, nem podem existir, sequer como pensamentos, pois envolvem em si noções contraditórias, que não podem ser unidas. As expressões “solteiro casado” e “pedra que nem Deus pode levantar” apenas parecem se referir a algo, mas não passam de seqüências de sons sem sentido algum. “Pedra que nem Deus pode levantar” e um ruído incoerente qualquer, digamos “m%kle#dè”, significam a mesma coisa: absolutamente nada.

Pode Deus, então, criar a tal pedra? Não. Isso significa alguma limitação de seu poder? Não, pois essa suposta pedra revelou-se, após uma análise um pouco mais profunda, não ser nada. O que significa ser onipotente? Ter em si, plenamente realizadas, todas as potências. Em outras palavras: poder fazer tudo. O fato é que a “pedra que não pode ser levantada por Deus” não faz parte do “tudo”, do conjunto dos seres; é nada, conjunto-vazio.

Portanto, Deus não pode criar tal "pedra", mas isso em nada fere sua onipotência. Logo, é perfeitamente possível sustentar que Deus seja onipotente. Portanto, o argumento falha em provar que Deus, onipotente, não existe.

domingo, setembro 23, 2007

Guerra sem fim: as motivações injustas das guerras americanas

Afeganistão. Iraque. Em breve Irã. Depois, quem sabe, Coréia do Norte? Seja como for, o governo americano está decidido a intensificar o atual militarismo agressivo. E não parece que isso mudará; todos os possíveis candidatos a presidente, à exceção do excelente Ron Paul, defenderam ou defendem as guerras da atual administração.

Que a guerra tenha efeitos nefastos para a economia tanto do agressor quanto do agredido não é preciso repetir. Meu ponto neste artigo é explicitar algo que, para muitos, talvez seja óbvio: a guerra do Iraque, e a guerra do Irã que se anuncia, são guerras injustas.

Não falo isso inspirado por algum pacifismo extremo. Há guerras justas; quando uma nação luta pela própria liberdade contra um agressor, é com justiça que recorre às armas. E é claro que apenas repelir o agressor não basta; é preciso também puni-lo, de preferência derrubando o governante beligerante, para que a paz possa novamente reinar.

Assim, o critério principal para se avaliar uma guerra é a intenção que guia os governantes e as autoridades militares. Toda guerra justa tem como finalidade a paz. Toda guerra, portanto, visa um estado de coisas no qual não haverá mais guerras. Claro que, dadas as constantes mudanças pelas quais o mundo passa, novas ameaças sempre aparecerão; ninguém com um mínimo de realismo acredita que o homem construirá um mundo plenamente pacífico. Mas isso não muda o fato de que o esforço de guerra deva ser algo fora do ordinário, fruto de uma necessidade presente, mas que, assim que possível, será desmobilizado.

Com isso em mente, as guerras do governo americano não saem bem na foto. O Iraque não tinha atacado os EUA, e nem dava indícios de que iria fazê-lo. Os boatos sobre armas de destruição em massa revelaram-se fictícios; o exército iraquiano caiu com um sopro. Seja por ignorância apressada e culpável ou mentira deliberada, o governo agiu mal ao alardear armas inexistentes. Atacou uma nação que não lhe apresentava ameaça alguma, e conseguiu com isso apenas muitos soldados mortos e um ódio ainda maior contra si.

Uma vez dentro do Iraque, tem governado de forma desastrada. A violência no país não pára de crescer; prova da incapacidade dos EUA de controlar os insurgentes. A queda de Saddam liberou males ainda maiores que agora assolam a população civil.

E qual é a intenção do governo Bush? Será de fato alcançar a paz? Improvável, dado que suas intervenções têm criado situações de conflito permanente sem previsão de término. E a invasão ao Irã promete levar adiante o processo. O esforço de guerra, que deveria ser algo extraordinário e temporário, já se transforma no estado normal de coisas, consumindo grande parte do produto americano; isso para não falar das milhares de pessoas mortas.

Os únicos ganhadores na guerra são o governo americano, que se torna ainda maior e mais poderoso, apropriando-se de uma parcela maior da riqueza da sociedade americana, e a indústria bélica, sustentada pelo Estado. O complexo industrial bélico incentiva e patrocina os políticos americanos; estes, por sua vez, arrumam novas guerras para aumentar o lucro dessas indústrias (na mesma medida em que outras empresas, em outros ramos de atividade não ligados ao governo, deixam de lucrar). Essa relação simbiótica governo-indústria bélica parasita a sociedade americana, sugando cada vez mais os seus recursos.

Esqueça-se as pseudo-justificativas da paz e da democracia. O objetivo das guerras do governo americano é beneficiar as indústrias próximas do Estado às custas do resto da sociedade; e que centenas de milhares de inocentes tenham que morrer para isso é visto como um custo aceitável. A consideração do que é justo ou injusto nem passa pela cabeça dos senhores da guerra americanos; para eles o que importa é: “até onde podemos ir?”

quinta-feira, setembro 13, 2007

Renan Calheiros: produto natural da política

Renan Calheiros teve uma filha com sua amante e sustentava-as com dinheiro conseguido de um lobista de empreiteira junto ao governo. Não faltavam testemunhas. Em sua defesa apresentou notas fiscais que sequer tinham consistência interna. Mesmo assim, foi absolvido pelo Senado. Não quebrou o “decoro parlamentar”. Se isso não quebra decoro parlamentar, decoro parlamentar não existe!

O caso Renan torna mais explícito e presente aos nossos olhos o que, no fundo, já sabemos há tempos: a política brasileira é simplesmente podre. O Legislativo é um câncer em metástase; não passa de um cancro infeccioso. Grande parte de seus cargos e membros poderia ser abolida que a sociedade ganharia muito. Um juízo sobre o Executivo e o Judiciário não seria muito diferente. Ao invés de repetir obviedades sobre a política nacional, no entanto, acho mais interessante tirar dela uma lição sobre economia e política públicas em geral.

Ao longo dos textos deste blog, sempre que se considera uma política pública, parte-se do pressuposto de que os políticos desejem sinceramente os fins que declaram. Não há desonestidade ou incompetência; caso contrário, poder-se-ia contra-argumentar dizendo que o fracasso das políticas e medidas públicas deve-se ao fato de os políticos atuais serem muito desonestos, e que se outros políticos, de outro partido, mais ético, estivessem no poder, tudo mudaria. Como tento mostrar repetidamente, não é o caso: mesmo com políticos bem-intencionados, os resultados da grande maioria das políticas públicas são desastrosos.

Desastrosos, mas poderiam ser piores. O uso repetido desses argumentos pode cegar-nos para a verdade: não há motivo algum para se supor que os políticos tenham qualquer intenção de ajudar o povo ou de serem honestos. Tampouco há motivo para supor que entendam algo dos assuntos sobre os quais, freqüentemente, se metem a falar.

Não é coincidência que a política seja o palco de tantas e tamanhas desonestidades e sem-vergonhices. A própria estrutura da organização política incentiva à desonestidade e à incompetência. O político cuida de um dinheiro que não é seu; foi tirado de seus donos originais, e portanto não pertence, na prática, a ninguém. Ninguém sentiria falta dele se fosse desviado para um fim pessoal do governante. Assim, há o incentivo para a desonestidade e desvio de verbas. Para combater a corrupção, cria-se toda uma estrutura de fiscalização das contas públicas, que demanda uma grande quantidade de recursos; mas essa estrutura também ela incentiva o roubo; se o fiscal aceitar um suborno para fechar os olhos, quem ficará sabendo? Só se o fiscal do fiscal pegá-lo. Mas e se ele também tiver seu preço...?

Além disso, a receita com a qual o político deve trabalhar não depende de seu desempenho. Um empresário só conseguirá o dinheiro para mais investimentos se satisfizer bem os desejos da população. O político não precisa servir a ninguém; seu dinheiro vem por meio dos impostos e da emissão de moeda. Se o orçamento não cobrir todos os gastos, é só pegar mais! E é muito mais fácil gastar mal do que fazer gastos eficientes. Assim, todo político é incentivado a ser incompetente, a gastar mal o dinheiro. No final das contas, seu mandato depende ou de relações internas ou de fazer boa propaganda quatro anos depois.

Não quero com isso dizer que todo político é desonesto e incompetente. Mesmo no Senado deve haver pessoas sérias, entre os que votaram contra Renan (e talvez até mesmo algum que tenha votado a favor; vai saber...). Mas um político honesto e competente é um verdadeiro herói, pois todos os incentivos da organização governamental empurram-no na direção contrária.

No futuro, ao escrever mais textos sobre políticas públicas, continuarei a me basear na premissa do governante honesto. Entretanto, não se iludam: além de todos os desastres causados pelas políticas mais bem-intencionadas, temos de arcar também com os pagamentos de lobistas, desvios de verba, compras super-faturadas, propinas, chantagens, fisiologismo, enfim, com o descalabro que é o governo brasileiro.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Indivíduo ou Coletividade?

Noto que, na discussão política e econômica, procura-se exaltar um dos dois supostos valores contrários: o indivíduo ou a coletividade.

Os defensores do livre mercado, em geral, valorizam o indivíduo: a pessoa humana com todas as suas peculiaridades, que não deve nunca ser sacrificada tendo em vista os objetivos de uma “humanidade” coletiva e impessoal. A sociedade, afinal de contas, nada mais é do que o conjunto dos indivíduos.

Já os socialistas e intervencionistas em geral frisam o valor da coletividade. O homens não vivem isolados, cada qual no seu canto, mas em sociedade; a felicidade humana só é possível num contexto social; além disso, cada indivíduo é em larga medida formado pelos valores, cultura e formas de relacionamento de sua sociedade.

Ninguém pode negar que há muito de bom na visão de ambos os lados. Mas há também muito a ser criticado; e, com efeito, cada lado tece críticas ao outro: os partidários do indivíduo acusam os coletivistas de não se importarem com os seres humanos concretos, e de os tratarem como meros números ou instrumentos para os objetivos dos governantes. Os partidários da coletividade, por sua vez, acusam os individualistas de ignorarem a importância do ordenamento social, de nutrirem uma visão egoísta de como deve ser a vida humana e de simplesmente desprezar os mais pobres.

Não se deve escolher entre indivíduo e sociedade. A sociedade é formada de indivíduos, que por sua vez formam-se no interior de uma sociedade; um depende do outro. Se constatarmos que os fins de ambos são inconciliáveis, não haverá forma satisfatória de organização social. Felizmente, a oposição entre indivíduo e coletividade não é necessária, e existe uma instituição social que os harmoniza.

Essa instituição é o mercado. No mercado, os interesses de cada indivíduo e da sociedade como um todo se harmonizam perfeitamente. Um indivíduo quer atingir seus objetivos, que exigirão o trabalho e a prestação de serviços de outras pessoas. Para conseguir o que quer, esse indivíduo deverá prover algo que seja valorizado pelo resto da sociedade.

O único jeito de ganhar dinheiro no mercado é satisfazendo as necessidades e desejos dos outros membros da sociedade. Mesmo o mais egoísta dos homens, no mercado, se vê obrigado a servir ao próximo para satisfazer seus próprios interesses mesquinhos.

O grande empresário lucra apenas porque ajuda os outros membros da sociedade; e no momento em que seus serviços deixarem de satisfazer os desejos da sociedade, ele perderá sua fonte de renda. Querer punir os grandes empresários para beneficiar a “coletividade” tem como resultado prejudicar não apenas o empresário, mas também a sociedade que se beneficia de seus serviços.

Todo indivíduo é escravo e senhor dos outros. Enquanto produtor de bens e serviços, é escravo; sua fortuna depende dos caprichos dos consumidores, ou seja, dos desejos da sociedade. Enquanto consumidor de bens e serviços, é senhor. E seu poder de consumo depende exclusivamente de sua capacidade de servir à sociedade enquanto produtor.

É apenas no âmbito da ação governamental, do planejamento central, no qual se verifica a oposição entre interesses privados e interesses públicos. O mercado é o meio pelo qual (e único meio no qual) esses interesses são harmonizados de forma que uns existam em função dos outros. A defesa do livre mercado não prioriza o indivíduo e nem faz pouco da coletividade ou da sociedade; muito pelo contrário, valoriza ambos, pois percebe que se reforçam mutuamente.

domingo, setembro 02, 2007

O que a Economia não é, ou Uma crítica ao uso acrítico da Estatística

A estatística e a econometria estão tomando o lugar da ciência econômica. Os danos disso para o entendimento do funcionamento do mercado são enormes. Mas a maioria dos economistas não o percebe. Preferem iludir-se, crendo que, assim como nas ciências naturais, a economia deve testar seus modelos teóricos pela observação dos fatos, isto é, pela estatística.

O primeiro ponto a se levar em conta é que não é possível, quando se lida com a sociedade humana, fazer qualquer experimento; não há controle de variáveis; há as inúmeras interações humanas, sujeitas a todo tipo de circunstância e alteração, a todo tipo de surpresa, o tempo todo.

Além disso, ao contrário dos eventos naturais, a ação humana não obedece a relações de magnitude constante. Podemos ter certeza de que, amanhã, a aceleração da gravidade na Terra continuará a mesma. Mas não podemos afirmar que as pessoas reagirão da mesma maneira aos mesmos eventos. Cada ação humana é única, e suas condições particulares são irrepetíveis. Ontem julguei que um copo de Coca-Cola era o suficiente para minha sede; hoje, em condições similares, tomei dois.

Como procede um economista contemporâneo, que ignora esses fatos? Ele forma uma conjectura, uma hipótese; digamos, de que um aumento no salário mínimo legal causa um aumento do desemprego. Bom, mas até aqui essa tese não passa de “teoria” (no mau sentido), um exercício abstrato, mera elocubração mental. Precisa ser confrontada com a realidade, precisa sair do estúdio e pisar no chão do mundo real! Nosso economista, então, coleta dados de um determinado país durante um certo período.

Surpresa: De acordo com esses dados, durante o período, o salário mínimo aumentou e o nível de desemprego caiu. Resignado, o economista se convence: é, a teoria estava errada nesse caso. Ou então, quem sabe, ele se convence de que existem outras variáveis relevantes que não foram observadas; é preciso de mais dados.

Qualquer que seja a conclusão dele, vejam só a falácia da inferência estatística em economia: quem disse que, apenas por que há uma correlação entre desemprego e salário mínimo, existe uma relação de causalidade entre eles? Será que o salário mínimo mais alto causou a diminuição do desemprego? Ou será que foi a diminuição do desemprego que levou os legisladores a aumentar o salário mínimo? Ou, quem sabe, há uma mesma causa para esses dois eventos, ou, ainda, a relação entre os dois é pura coincidência? Podemos ir mais longe: a diminuição do desemprego pode ter ocorrido apesar do aumento do salário mínimo.

Como decidir entre essas diversas interpretações conflitantes dos dados? Todas são possíveis; os dados não contêm sua própria interpretação. A escolha dessa interpretação depende da teoria aceita a priori, sem qualquer referência aos dados. A estatística sem a teoria não pode nos dizer nada. Com efeito, a própria escolha de quais variáveis medir já depende de uma teoria sobre quais variáveis são relevantes para explicar o fato que se tem em mente.

As relações estatísticas (no que diz respeito à economia) só se tornam inteligíveis à luz de uma teoria, e não há motivo para supor que as diversas variáveis manterão, no futuro, a mesma relação numérica que mantêm hoje. Todo o economista, ao fazer um teste estatístico e ao interpretá-lo já aceita, mesmo que não perceba, uma teoria econômica que guia sua escolha de dados e sua interpretação.

A estatística não pode nem refutar nem comprovar nenhuma tese econômica. Pode apenas estabelecer as relações históricas que se estabeleceram entre algumas variáveis. A economia, portanto, não é não pode ser uma ciência empírica, como o são as ciências naturais. Isso não quer dizer, no entanto, que ela não sirva para nada na economia. Ela é essencial para que façamos história econômica, isto é, conhecer os fatos passados (à luz da teoria correta, sem a qual os dados perdem seu valor por completo). Além disso, pode, diversas vezes, ilustrar a teoria; mas nunca com a pretensão de comprová-la ou refutá-la!