sábado, dezembro 15, 2007

Pode A invadir a propriedade de D, para impedir que B mate C?

Essa é a pergunta que tem gerado polêmica na blogosfera libertária e liberal. Vide, por exemplo, os posts de Thomas Kang, Richard e Renato Drumond.

Qualquer pessoa razoável concordaria comigo: você vê um assassino a ponto de trucidar uma vítima indefesa, e sabe que conseguiria imobilizá-lo. Mas para chegar até eles terá que pisar no gramado de seu vizinho, que proibiu expressamente qualquer um, por qualquer motivo, de pisar em sua grama. O que é o certo a se fazer? Obviamente, correr até lá e salvar a vítima; depois, quem sabe, conversa-se com o dono do gramado.

Os anarco-capitalistas têm respondido diferentemente. “A propriedade é um direito natural que não pode ser violado. Portanto, não se deve invadi-la sob hipótese alguma”. Essa posição altamente contra-intuitiva, que contraria todo o senso comum, é o resultado de um pensamento pobre e restrito, que é incapaz de lidar com matizes e ponderações, aceitando apenas direitos claros e distintos, definidos a priori. Aceitar que alguém entre na casa do vizinho para impedir que ele afogue o filho na piscina é visto como equivalente a defender a tortura, a invasão do Iraque e a mutilação feminina. É a eles que respondo agora.

Qual a finalidade das leis e dos direitos? O bem dos homens: uma sociedade em que todos possam viver felizes e bem. Portanto, devem se estender enquanto, e na medida em que, contribuam para esse fim. As leis devem servir aos homens, e não os homens às leis.

O direito de propriedade é essencial à vida humana. Um grande mérito do célebre anarco-capitalista Murray Rothbard é ter provado que, mesmo para se discutir se existe ou não o direito à propriedade privada, é preciso aceitar, em alguma medida, a propriedade privada. Assim, o direito de propriedade é natural e necessário.

Mas até que ponto? Se for absolutizado, leva a injustiças e a situações que realmente não são boas. Todo anarco-capitalista concorda que permitir um homicídio facilmente evitável não seja algo bom. Mas como permitir essa pequena violação que impede um homicídio e não permitir invasões e desapropriações sistemáticas sempre que alguém o considerar benéfico? Onde desenhar a linha?

Esse tipo de pergunta só surge porque os anarco-capitalistas em geral são partidários de direitos definidos a priori e sem margem a qualquer consideração de suas conseqüências para a sociedade (embora o estabelecimento inicial que eles dão ao direito de propriedade tenha bases conseqüencialistas: “se não fosse assim, os homens não poderiam viver”).

Não há como um código legal prever todos os casos da realidade. A legislação tem que abrir espaço para que se aprenda com a prática e o costume dos povos (o que não significa que o costume legitime tudo; ele também é bom enquanto contribui para o bem dos homens). A diferença entre alguém que, no momento de emergência, usa a propriedade do outro sem pedir permissão, e alguém que rouba um carro para impressionar a namorada, é óbvia na prática, embora não seja possível expressá-la em termos puramente abstratos. A lei, que está preocupada com a vida concreta dos homens, deve levar em conta essas diferenças práticas. Permitir o primeiro caso impede muitas injustiças e evita muitos sofrimentos; permitir o segundo leva ao caos e à barbárie.

Por isso que o estudo da ciência econômica é tão importante para a organização da sociedade. É por meio da economia que sabemos o efeito de diversas possíveis leis, medidas e impostos. Para um anarco-capitalista rothbardiano a economia é irrelevante: não importam as conseqüências; o princípio da não-iniciação de agressão fornece todas as respostas a todas as possíveis questões da organização social.

Sempre repito a mesma pergunta aos anarquistas: se fosse provado que um imposto de 1 centavo sobre cada pessoa pudesse gerar uma grande melhora no padrão de vida de todos, que caso contrário viveriam em condições precárias, esse imposto deveria ser aceito? Se sim, então concordam comigo e são, na verdade, conseqüencialistas. Se não, por que sacrificar a vida e o bem da humanidade para salvaguardar um direito abstrato?

domingo, dezembro 09, 2007

Um Filme Bom - uma análise

O protagonista de “A Vida dos Outros” é um homem praticamente sem vida. Por isso mesmo, a maior parte do filme é preenchida pela vida dos outros personagens, da qual Gerd Wiesler é mero observador. E é conforme deixa de apenas observar para interferir que seu caráter se revela. Sua postura discretamente heróica dentro de um sistema mau e corrupto salva uma vida.

Wiesler não tem vida pois entregou a sua à Stasi, polícia secreta da República Democrática Alemã (RDA), da qual é membro fiel. A defesa da sociedade, e da segurança do regime socialista, são causas às quais ele se oferece incondicionalmente. Exímio interrogador e investigador, Wiesler é uma peça eficiente da poderosa máquina da Stasi, sempre pronto a identificar e desmascarar dissidentes.

A Stasi mantém os cidadãos sob total vigilância. O controle é tal que mesmo uma piada entre colegas de trabalho pode ter conseqüências brutais. Uma palavra errada arruina uma vida. Todo conhecido é um informante em potencial. Por isso, as ruas vivem vazias, e as portas fechadas. Ninguém quer falar e ninguém quer ouvir; a não ser, talvez, pela fechadura.

É esse ambiente de desconfiança e medo que Wiesler ajuda a manter. Não é, no entanto, a única, ou principal, peça da máquina. Muitos outros homens têm funções similares à dele na hierarquia construída pela Stasi. E enquanto nosso protagonista realmente serve à causa, outros, às vezes mais poderosos do que ele, utilizam-se dos mecanismos de poder para servir a si mesmos.

Apesar de ajudar a perpetuar um grande mau, Wiesler é um homem bom, que procura honestamente o bem; apenas o identificou no lugar errado. Já seu colega, o tenente Grubitz, nem sequer o procura. Não tem o mesmo grau de comprometimento com a causa; é mais tolerante e disposto a deixar passar pequenas indiscrições dos outros; mas é também mais perigoso e imprevisível quando seu auto-interesse, sua única causa, está na balança.

Grubitz e Wiesler são destacados, pelo ministro da cultura Bruno Hempf, a investigar a vida do dramaturgo Georg Dreyman em busca de algo que o comprometa. O ministro está interessado na mulher do dramaturgo, a atriz Christa-Maria. Logo, algo tem que ser encontrado.

Tendo colocado escutas por toda a casa de Dreyman, Wiesler se põe a escutar as conversas dele com a mulher. E é aí, por meio do casal, que entra em contato com anseios humanos que há muito deixara de lado. Sua existência vazia e sozinha contrasta fortemente com a convivência viva dos dois amantes. Viver pela Stasi, violando rotineiramente a intimidade e privacidade alheia, fez com que ele próprio fosse privado desses bens. E ao se dar conta disso, já é tarde: a coisa que ele mais quer, intimidade real com alguém que o ame, é algo fora de seu alcance. Uma garota de programa pode lhe dar o prazer do sexo, mas o que ele realmente quer é o que vem depois, e isso ela não pode dar.

Inicialmente, parece que essas carências se transformarão em obsessão doentia. Felizmente, não tomam esse caminho (e a leitura de Brecht é uma das causas dessa virada positiva), mas prosseguem retamente à atitude natural para aqueles por quem somos atraídos: o amor. Assim, não mais contente em apenas observar, Wiesler quer ajudar seus suspeitos. Ao mesmo tempo, percebe que o sistema ao qual ele serve destrói vidas como aquelas para satisfazer interesses sórdidos.

Dreyman e Christa-Maria, pessoas do teatro (subversivas por natureza), sabem que têm pouco espaço: vêem seus colegas mais talentosos perseguidos enquanto medíocres oportunistas brilham no cenário artístico. O sistema político premia a bajulação, e não o mérito. Revoltado, o dramaturgo entra para a subversão, e planeja um artigo bombástico a ser publicado no Ocidente. Assim, é o próprio caráter totalitário do regime comunista que gera a oposição cuja repressão é a justificativa desse totalitarismo. A Stasi, indiretamente, produz os dissidentes que persegue.

Enquanto Dreyman se revolta, Christa-Maria se submete: cronicamente insegura, procura em anti-depressivos e na opinião alheia a solidez que lhe falta. Essa falha de caráter a torna volúvel. Sob pressão, aceita ser amante secreta do ministro Hempf.

Fingindo-se fã da atriz, Wiesler convence-a a ser firme em seus valores, e não mais ceder ao ministro. Esse ato de ajuda desencadeia um processo inexorável: presa (por seus remédios ilegais), Christa-Maria é interrogada sobre as atividades subversivas de seu marido. É Wiesler que, vigiado por seu superior, a interroga. Se na primeira conversa a havia convencido a fazer o que é certo, nesta convence-a (apesar de tentar sugestioná-la ao contrário) a delatar seu marido.

Wiesler toma, então, uma decisão que selará o fracasso de sua operação e ruína de sua vida. Mas é a decisão certa. Desperto para a dignidade da pessoa humana, ele não pode permitir que o sistema do qual faz parte destrua a vida de alguém, como fizera com a sua. O amor à humanidade, abstrata, não justifica que se passe por cima de pessoas humanas concretas.

No final das contas, o filme é uma bela incitação à prática do bem. Não importa o quão fundo tenhamos descido, ou quanto tenhamos dado e perdido perseguindo fins maus. Há uma coisa que nunca poderá nos ser tirada: a capacidade de se fazer o bem. Por mais que se viole a privacidade, a consciência humana permanece inviolável.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Uma Jóia do Pensamento Econômico

“...E então, na década de 1870, com a revolução subjetivista, descobriram que o valor dos bens é determinado pela utilidade marginal, ou seja, pela satisfação de desejos humanos, e não pela quantidade de trabalho, como se pensava antes.” Errado, opinião popular! A tese subjetivista era, desde muito tempo, amplamente defendida; foi a tese do valor-trabalho que constituiu uma triste guinada para o lado errado na economia (prova de que a ciência nem sempre progride). Apresento uma evidência.

Vejam esse autor que, antes mesmo de Adam Smith nascer, tinha uma teoria já bastante refinada do valor. Cito as passagens mais notáveis de seu “Tratado sobre as compras e vendas”.

“Deve-se dizer que o valor das coisas pode ser tomado sob dois aspectos. Sob um primeiro aspecto, segundo a bondade real da natureza e, assim, o rato e a formiga valem mais do que o pão, pois que aqueles possuem alma, vida e sensação, enquanto o pão não possui. Sob um segundo aspecto, atribui-se valor às coisas segundo a utilidade que elas têm para nós e, nesse sentido, quanto mais algo é útil para nosso uso, tanto mais é valioso e, sob este aspecto, o pão vale mais que o rato ou o sapo. E como os atos de vender e comprar ordenam-se às necessidades da vida humana, e são também eles certas necessidades, por isso, neles o valor dos bens é considerado e calculado do segundo modo e não do primeiro.

Além disso, deve-se saber que tal valor de uso – ou valor das coisas venais – é calculado de uma tríplice maneira.

a) Em primeiro lugar, na medida em que a coisa, por suas qualidades intrínsecas e suas propriedades, é mais apta e capaz de satisfazer nossas necessidades. Deste modo, um bom pão de trigo é mais útil às nossas necessidades do que o pão de cevada, e um cavalo forte é mais útil para a tração ou para a guerra do que um asno ou um cavalo trôpego.

b) Em segundo lugar, pelo fato de que as coisas, pela sua raridade e dificuldade de serem encontradas, tornam-se mais necessárias para nós, na medida em que, devido à carestia delas, tornam-se mais necessárias e temos menos possibilidade de obtê-las e usá-las. Assim, por exemplo, o mesmo cereal, no tempo de carestia, de fome ou de penúria, vale mais do que no tempo da abundância geral. Do mesmo modo, os quatro elementos – a água, a terra, o ar e o fogo -, por causa de sua abundância, possuem para nós um preço mais vil do que o ouro e o bálsamo, embora eles sejam, em si mesmos, mais necessários e úteis para nossa vida.

c) Em terceiro lugar, avalia-se segundo o menor ou maior beneplácito de nossa vontade em possuir tais coisas. Ora, “usar”, no sentido aqui entendido, significa tomar ou possuir uma coisa segundo o arbítrio da vontade; assim, uma parte significativa do valor das coisas utilizáveis é calculada devido ao beneplácito da vontade, que se compraz mais ou menos no uso desta ou daquela coisa e de tê-la à disposição. Sob este prisma, um cavalo, um ornamento ou um brinquedo agrada mais a um indivíduo que a outro e, em vista disso, um aprecia muito e considera como preciosa para si uma coisa que outro toma como vil, e vice-versa.

Um tal cálculo de valor das coisas utilizáveis dificilmente, ou nunca, pode ser feito por nós, a não ser de forma conjetural ou provável. De fato, o valor não se determina de modo exato, com um critério ou medida absoluta, que não admite mais nem menos, mas antes com uma devida amplidão, dentro da qual as cabeças dos outros homens e os juízos humanos diferem na avaliação. (...)”

Aqui o autor indaga se se deve impedir que os preços subam em épocas de escassez, e conclui que não:

“A escassez geral de alguma coisa provoca de diversos modos a carestia geral. Primeiro, porque quem possui tais bens desfaz-se deles mais dificilmente e sua colocação no mercado torna-se mais cara para os compradores ou para o possuidor. Em segundo lugar, porque se, naquele momento, o preço não for aumentado, isto viria em prejuízo do bem comum, pois os possuidores não quereriam de tão boa vontade vender tais bens aos que não os possuem e aos necessitados e, com isso, não se proveria a escassez geral da melhor forma. (...)”

Para tal autor, o “paradoxo da água e dos diamantes”, que confundiu tantos economistas no século XIX, não apresentava grandes mistérios. Ele mesmo o havia resolvido, com água e ouro.

É bem verdade que falta à análise dele o pensamento marginal, da última unidade. Essa peça final da teoria correta do valor só viria mesmo com os marginalistas.

Mais surpreendente é que o autor das linhas acima era Pedro de João Olivi, um frade franciscano do século XIII. Sim, da “obscurantista” Idade Média. O fato é que a grande maioria dos escolásticos medievais (inclusive figuras de peso como S. Tomás de Aquino e S. Bernardino de Siena) defendiam a teoria subjetiva do valor. E mais: para a grande maioria deles, o preço justo era o preço de mercado.

A História do Pensamento Econômico contemporânea tem muito a ganhar se ousar olhar para o passado, além dos fisiocratas e mercantilistas.

Mas, agora, que finalizei minha monografia, espero passar um tempo sem pensar em economia medieval; e economia em geral!

fonte:
de Boni, Luís Alberto. Filosofia Medieval - Textos. Porto Alegre. EDIPUCRS. 2005.