domingo, fevereiro 22, 2009

E a Liberdade de Expressão de Dom Williamson?

A celeuma acerca de um bispo que nega o Holocausto tem ganho espaço na mídia. A história, para quem não tem acompanhado, é simples: ele é um de quatro bispos tradicionalistas (da Fraternidade de S. Pio X) que foram excomungados porque foram sagrados bispos sem a permissão do Papa. Bento XVI, que tem aproximado os tradicionalistas de Roma, levantou as excomunhões, para que essa aproximação possa continuar. Ou seja, nada relativo a anti-semitismo.

Acontece que um desses quatro bispos, o inglês Dom Richard Williamson, havia dado uma entrevista para uma TV sueca um tempo antes, na qual negava que o Holocausto tivesse ocorrido. Aproveitando que o levantamento das excomunhões estava para acontecer, grupos que se opõem ao Papa fizeram ela vir à tona. O Papa e toda a Igreja têm pressionado Dom Williamson para que ele se retrate, e a Argentina, país onde ele mora e dá aulas, já anunciou que ele será expulso do país em alguns dias.

Em primeiro lugar, deixo claro que não tenho dúvidas de que o Holocausto ocorreu. Além disso, sei também que, em geral, quem o nega é movido por profundo anti-semitismo. Não tenho nenhum tipo de simpatia por esse pensamento. Mas há que se perguntar: será que silenciar opiniões falsas à força é o jeito correto de combatê-las? Por que tanta celeuma e reações públicas de indignação? Até a presidente da Alemanha já deu seu showzinho.

Se alguém nega o igualmente real extermínio em massa pela URSS, ou a matança de milhares de padres e religiosos pela facção “liberal” da Guerra Civil Espanhola, ninguém se levanta para protestar ou para calar sua boca à força. Acho bom que essas pessoas possam dizer o que pensam, ainda que sua motivação seja má; não é pela força que se mudam as crenças de alguém, mesmo que a força sirva à verdade.

Lamento que Dom Williamson negue o genocídio nazista, seja por anti-semitismo ou por uma crença ingênua em historiadores pouco confiáveis. Ele mesmo, contudo, tem dado exemplo de conduta: diz que vai ler livros contrários às suas crenças e se informar melhor para ver se errou ou não. As vozes de condenação querem uma mudança automática de opinião pela força da ameaça, o que é ridículo. Uma opinião falsa deva ser combatida por argumentos e provas. Pode ainda ser ignorada, se o seu ridículo for tal que levá-la a sério seja dar-lhe um respeito imerecido. Mas ninguém deve ser coagido a se retratar. Nem Dom Williamson, e nem um socialista que negue as atrocidades monstruosas de Lênin ou Che Guevara.

Qualquer afirmação hoje em dia é motivo de acusação. Pessoas cada vez mais sensíveis e indignáveis procuram motivos para se sentirem insultadas e requererem algum tipo de punição ou compensação de quem feriu seus delicados sentimentos. Tudo é causa de processo, ou seja, do uso da força, e não da razão. Mesmo quando o perseguido tem uma opinião detestável, quem perde com isso somos todos nós.

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Violência Boa, Violência Má

Seria ótimo viver num mundo sem violência; sem guerra e sem crime. No qual, portanto, não haveria exércitos e nem polícia. E nem muro, cão de guarda ou cerca elétrica. Muitos de nós, inclusive, estariam dispostos a abrir mão desses e outros meios de defesa se soubessem que todo mundo se desarmaria.

Entretanto, o fato é que, por melhores que sejam as intenções pacifistas, a violência sempre existirá neste mundo. Se os EUA e a Europa desmantelarem suas armas nucleares, num esforço mundial pela paz, isso apenas cooperará para o fortalecimento de outras nações, e de outros grupos políticos, que não se importam nem um pouco com a paz, e que receberão a supremacia nuclear de bandeja.

Todo liberal duvida, por princípio, da violência. A agressão, a coerção, é o oposto da liberdade. Mas o liberal não é um ingênuo, que crê na chegada de uma utopia sem armas, na qual todas as desavenças sejam resolvidas pela força do argumento racional e do amor fraterno. Haverá sempre aqueles que usarão da violência, os quais devem ser repelidos violentamente. É raro que o homem comum se defenda diretamente, pois não está envolvido na luta contra o crime; esse trabalho é da polícia. Esteja a defesa nas mãos da polícia ou de cada cidadão, é um trabalho que tem que ser feito. No mesmo instante em que as forças que promovem a ordem e a paz social abdicarem do uso da violência, a bandidagem tomará o poder e instaurará um regime de terror tal que fará os pacifistas desejarem com nostalgia o bom e velho Estado de direito.

A defesa da liberdade, ou seja, da ausência de violência nas relações sociais, passa necessariamente pela disposição em utilizar a violência contra os inimigos da ordem livre. Não há nada de errado em se defender; pelo contrário, é meritório. Um exército que invada um país para conquistar suas riquezas faz um mal muito grande. Mas o exército que se defende da invasão, cujos homens dão a vida para garantir a liberdade de seu povo, é um exemplo a ser imitado. Não fosse por pessoas assim, a causa da liberdade estaria morta e enterrada no mundo inteiro. Só com a força impede-se a vigência da lei do mais forte.

O desejo de um mundo melhor deve sempre incluir o conhecimento do mundo como ele é. Sonhos de uma sociedade de anjos são úteis apenas para os desígnios demoníacos de pessoas, infelizmente, muito reais. Assim, é muito apropriada e certa a frase do Mises: "Quem quiser permanecer livre deve combater até a morte aqueles que pretendem privá-lo de sua liberdade".

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Lucro ou Ação Social?

Um negócio prospera se satisfaz os desejos dos consumidores de forma eficiente. A empresa que cobra caro por um mau serviço ou muda ou desaparece, pois o consumidor preferirá comprar de outra. É assim que funciona o mercado, e é assim que as empresas ajudam a sociedade; esse é seu papel social. Uma empresa lucrativa é uma empresa que criou muito valor. O lucro é a indicação de que ela tem cumprido bem seu papel social, e é a própria sociedade que a premia. Já uma empresa que dê prejuízo destrói valor. Essa empresa tem falhado em cumprir seu papel social. É bom que, se ela não sair do vermelho, ela vá à falência. Uma empresa cumpre seu papel social ao prestar seus serviços aos consumidores, perseguindo o lucro.

E não ao dar dinheiro a caridades ou praticar “ações sociais”. Nada contra tais iniciativas; o que acontece hoje em dia, no entanto, é que as empresas procuram se justificar por meio de suas ações sociais: pelo número de ONGs que ajudam, pela quantidade de lixo que reciclam, etc.

As próprias empresas encaram esses gastos como marketing, algo que fazem para aparecer bem. No longo prazo isso as faz aparecer mal. Pouco a pouco se reforça a idéia de que a empresa de sucesso chegou lá porque explora a sociedade. O empresário que enriqueceu o fez às custas de seus consumidores e trabalhadores; contraiu uma dívida que deve ser paga com ações sociais. O lucro alto provoca reações similares a um grande crime. “Como pode uma empresa lucrar tanto? Com tanta gente passando fome...”; mal sabem que são exatamente as empresas e pessoas lucrativas que contribuem para o fim da fome. Deveriam se perguntar: “Como pode uma empresa criar tanto valor?”

O lucro do empresário não é uma exploração. É o resultado de sua capacidade acima da maioria de oferecer às pessoas o que elas querem. Imagina-se a riqueza da sociedade como um bolo, que existe por si só; se um empresário pega uma fatia grande, é porque outros ficaram com fatias pequenas. Mas as benesses comumente consideradas dados da realidade, ou “direitos” os quais seria criminoso não atender, são, na verdade, fruto do trabalho de empreendedores que viram necessidades não atendidas e a oportunidade de atendê-las. Sem eles, o mundo pararia.

Se usar papel reciclado for de fato econômico para a empresa, é ótimo que ela o faça. Por outro lado, se isso aumentar seu custo sem nenhuma vantagem, então é uma ação que destrói valor. Mas e se esse gasto com marketing se reverter em mais vendas, dado que os consumidores são “conscientizados” e valorizam esse tipo de coisa? É verdade, nesse caso a empresa está maximizando seu lucro e criando valor para os consumidores (assim como um charlatão que vende poções mágicas para crédulos ignorantes também cria valor para eles).

Mas esse benefício no curto prazo tem seu custo no longo. Quanto mais as empresas pedirem perdão por existir, mais forte fica a convicção de que elas são essencialmente más. Uma ou outra empresa beneficia-se com um dúbio marketing; toda uma cultura tem suas bases corroídas. As ações sociais têm sim trazido alguns benefícios sociais; mas as pilhas acumuladas de vítimas desconhecidas também não são pequenas.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Buddy Holly

Num fim-de-tarde de domingo de 2005, enquanto eu guiava até o shopping Villa-Lobos, um programa já falecido da Kiss FM tocou a música “It’s So Easy”: um rock n’ roll bem simples, com uma alegria fácil e ingênua transmitida por um vocal em geral contido mas que, nos momentos certos, arranhava a voz em rajadas intensas. Foi a primeira vez que ouvi Buddy Holly.

Pouco tempo depois encontrei um CD dele na FNAC. Eu descobrira o rock dos anos 50; demorei um tempo para realmente gostar do Buddy, pois ele não se encaixava facilmente nos moldes do rock n’roll e do rockabilly que eu perseguia avidamente; e a todos os outros. Mas se isso fez com que seja mais difícil apreciar sua música, também fez com que o valor dela seja muito mais duradouro. E é por isso que até hoje recebe homenagens, novas versões de seus clássicos continuam a ser gravadas por bandas de todos os estilos, e influências audíveis suas estão presentes em muitos artistas contemporâneos.

Buddy Holly foi um músico inovador. Escrevia grande parte de suas músicas; foi dos primeiros a sobrepor sua voz a ela mesma, criando uma harmonia consigo; seus arranjos musicais contavam com instrumentos inusitados (“Raining in my Heart” tem uma flauta; “Everyday” tem uma celesta, instrumento ouvido na suíte do Quebra-Nozes de Tchaikovsky - quem viu Fantasia conhece); suas melodias fugiam do óbvio e do esperado, da estrutura básica que identificamos ao rock dos anos 50. O que mais me toca, no entanto, é a amplitude emocional que ele trouxe ao rock, principalmente pela voz.

Um bom intérprete de rock é capaz de fazer letras relativamente pobres dizerem muito mais do que está escrito. As letras de Buddy Holly são superiores ao padrão da época, mas o que realmente o destaca acima dos demais é a qualidade de seu canto.

Talento vocal ele tinha. Sua voz era lisa e fluía como um tranqüilo riacho, não de água, mas de nuvens, nos momentos mais pensativos e íntimos. Um bom exemplo é “Moondreams”, na qual o eu-lírico, sozinho, fala consigo e com a amada, vista em sonhos; o ouvinte é também ele levado para um mundo de sonhos. “Raining in my Heart” tem a mesma atmosfera tranqüila, embora essa tranqüilidade seja fruto da tristeza resignada. “Dearest”, que figura na trilha sonora do filme Juno, é uma extremamente singela e terna declaração para a amada, que está distante.

Em outros momentos, emoções mais fortes tomam conta. O rock clássico gira em torno de relações românticas entre jovens: o cortejo, a desilusão, a dança, o namoro, o término do namoro, o casamento, etc. Por mais que o jovem goste de aparentar auto-confiança, seu peito é um poço de insegurança e nervosismo. Buddy refletia isso em sua música; o soluço, a gagueira, a hesitação, a mudança repentina no tom, a voz trêmula - o amplo uso desses recursos nos transporta para o estado de espírito do jovem apaixonado, no qual convivem êxtases e calafrios, coragem e timidez.

A alegria e a agonia de se estar apaixonado fundem-se, por exemplo, em “Rave On”, uma declaração de amor exagerada (como todas) e explosiva, da qual transborda a expectativa aflita de que a amada sinta o mesmo. Em “Changing All Those Changes”, rockabilly de batidas bem marcadas, o eu-lírico se arrepende de ter terminado o namoro e promete mudar; sílabas são gaguejadas e a voz é entrecortada pelo arrependimento desesperado. Nos momentos de maior intimidade a dois, trechos são cantados na voz “de bebê” usada entre namorados (“Peggy Sue”, um de seus clássicos mais famosos, é um bom exemplo). Os sentimentos nunca são unívocos; na melancólica “It’s Too Late”, a lamentação da perda tem uma ponta de esperança, uma súplica por uma segunda chance. Em “Last Night”, a tristeza de ter sido deixado é superada pelo desejo de que a amada esteja bem. Já na mais animada “Reminiscing”, o eu-lírico, revoltado com a infidelidade da ex-namorada, promete superá-la ao mesmo tempo em que chega à fronteira do choro, não se sabe se de ódio ou de saudade; a arranhada na voz é usada para marcar a raiva, e a mudança repentina de tom e os soluços a angústia que o leva às lágrimas. A desilusão amorosa chega a um pico em “Mailman Bring Me No More Blues”, que não é propriamente cantada, mas chorada, e em “Lonesome Tears”, um apelo violento e inconsolável à namorada que se foi, que cresce até culminar num arroubo de paixão arranhada e desafinada.

É sempre bom lembrar que todas as músicas, por mais tristes que fossem, guardavam algo de divertido e jovial; trata-se, afinal, dos altos e baixos de um jovem com um futuro pela frente, e não da amargura negra de uma velhice frustrada ou das reclamações mimadas de uma juventude entediada, como no EMO.

Em outras canções, os sentimentos são outros; Buddy era um mestre do rockabilly. Suas interpretações são verdadeiras explosões de vitalidade e excitação, da emoção da conquista (que em geral se dá na dança - o que explica porque tantas músicas de rock sejam sobre... o próprio rock), como na dançante “Rock Around with Ollie Vee”; ou da provocação e vingança contra a mulher que o rejeitou (ex. “Midnight Shift”, “Don’t Come Back Knocking”). Outras são mera celebração do fato de se ser jovem (“Ain’t Got No Home”, “Ting-a-Ling” - na minha opinião, os dois melhores rockabillies dele), ou ainda exultações de alegria por se estar apaixonado (“It’s So Easy”) e por se casar com a mulher amada (“Now We’re One”).

Diferentemente de tantos músicos da época, Buddy Holly não se restringia a um único estilo. Ele experimentou diversas possibilidades, tanto em direções mais agitadas quanto mais calmas. Suas baladas e canções de maior carga sentimental, embora tivessem algum sucesso nos EUA, estouraram mesmo é na Inglaterra, onde influenciaram muito os Rolling Stones e os Beatles, que ascenderiam ao estrelato logo em seguida (gravando inclusive músicas dele). Muito de seu mateiral é difícil de classificar. “Peggy Sue” não tem nem sequer uma batida sincopada - uma linha contínua de tambores e de violão acústico constituem a base sobre a qual a voz declara repetidamente, com pequenas variações, seu amor pela namorada.

A importância de Buddy Holly na música é reconhecida por todos os grandes artistas do rock. É uma pena que ele tenha morrido ainda jovem, aos 22 anos, num acidente aéreo (eternizado por Don McLean na música “The Day the Music Died”, também conhecida como “American Pie”). Sua carreira de sucesso não tinha sequer três anos. É uma pena pensar em tudo o que ele poderia ter realizado; ao mesmo tempo, a importância do que ele deixou é o bastante para consagrar um artista de qualquer idade.

Buddy Holly morreu no dia 03 de fevereiro de 1959, há exatos 50 anos. Acho uma boa data para fazer esta homenagem a um dos meus músicos favoritos, e quem sabe levar alguém mais a conhecer e apreciar sua obra.


segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Ciência VS. Qual Religião?

Detesto debates de “Ciência e Religião”. As religiões são muito diferentes umas das outras. Algumas são nocivas à ciência (o Islã que vemos hoje em dia, certos tipos de protestantismo fundamentalista, etc); mas acontece que a própria ciência deve sua existência a uma religião em particular: o Cristianismo. Não digo isso meramente porque a Igreja Católica foi, por séculos, a maior patrocinadora da ciência no mundo, e nem porque muitos dos maiores cientistas da história foram cristãos. Falo de algo mais profundo: dos princípios metafísicos do Cristianismo, que foram de onde a ciência nasceu. Há um motivo pelo qual isso não se deu na Grécia Antiga e nem no Islã (que teve uma respeitável idade de ouro), mas na Europa medieval.

Por que a ciência não nasceu entre os filósofos gregos e romanos? Porque suas próprias idéias impediam tal concepção. Duas correntes podem ser discernidas. Numa delas (pitagóricos, platônicos e derivados), reinava a idéia de que o mundo observável pelos sentidos é pouco real, se comparado ao mundo das idéias e das relações lógicas. O conhecimento é possível apenas acerca de idéias eternas e imutáveis; o mundo à nossa volta, com suas incessantes mudanças, permite apenas opiniões incertas, e nem vale a pena se dedicar muito ao estudo dele. Alternativamente, outra visão (aristotélicos e estóicos) era a de que o mundo é fixo, eterno, e não poderia ser de outro jeito. A experiência dos sentidos é pouco importante, pois é a metafísica que nos diz como as coisas são.

Aristóteles deu um grande avanço, é verdade; frisava a importância da observação. Mas ainda vigorava em seu pensamento, e no de seus seguidores, uma idéia muito fixa de como o mundo tem que ser para se encaixar em certos pressupostos metafísicos. Assim, a observação extensa e detalhada caminhava junto de afirmações patentemente falsas (ex: um corpo mais pesado cai mais rápido que um mais leve). Já conhecemos a estrutura básica do universo; a observação preenche essa estrutura, sem nunca questioná-la. O Motor Imóvel de Aristóteles não é um criador livre, mas o princípio motriz de um mundo eterno e necessário. Que tudo é composto de quatro elementos, que o universo extra-lunar é uma grande engrenagem incorruptível, composta de esferas de éter; essas e outras premissas básicas só seriam questionadas, pouco a pouco, séculos mais tarde, depois que a cultura clássica (difundida pelo Império Romano) fosse penetrada pelo Cristianismo.

E o Islã? Diferentemente da filosofia grega, o Islã acredita na criação do mundo; ou seja, o universo não é algo eterno e necessário; é uma criação de Alá, e poderia, portanto, ser diferente do que é. O problema é que, para o muçulmano, todo evento é ação direta de Alá. Não existem leis da natureza: é Alá que faz com que, neste momento, a pedra caia; no momento seguinte, sua vontade pode mudar. A vontade de Alá não se pauta por nada, nem por ela mesma. Ordena o que antes proibira. Não há segurança; a razão humana é falha e duvidosa. Houve no Islã ótimos filósofos e pensadores; não eram, entretanto, bons muçulmanos. Fé e razão são inconciliáveis. Com o fortalecimento da ortodoxia religiosa, sua cultura caiu no fideísmo obscurantista do qual jamais saiu.

No Cristianismo, o mundo também é fruto da vontade livre de um Criador. Contudo, esse Criador não é um tirano caprichoso que manda e desmanda, mas um pai bondoso e racional. O universo é um sistema ordenado, no qual o funcionamento de cada parte, ainda que possa ser atribuído em última análise a Deus, é o resultado de causas segundas contidas no próprio universo. O mundo é sujeito a leis inteligíveis, mas não é necessário ou eterno; precisamos descobri-lo, e para isso temos que usar os cinco sentidos, com base nos quais a razão infere leis gerais. Diferentemente do Islã, não há antagonismo entre o cultivo da inteligência e da fé. Pelo contrário: houve grandes filósofos que foram santos e homens de virtude reconhecida.

O universo não precisava existir, mas existe, e segue uma ordem racional, reflexo da Razão que o criou. Seu funcionamento é observável e mensurável, e portanto cognoscível, mas tem que ser descoberto pelos sentidos. É essa posição metafísica que conduziu ao nascimento da ciência. De fato, a ciência experimental, ou seja, que não se contenta em observar e anotar fenômenos, mas faz testes, elabora perguntas para a natureza, surgiu na Europa medieval (o próprio termo “ciência experimental” foi cunhado por Roger Bacon, um frade franciscano inglês do século XIII).

É óbvio que esta não é uma explicação fechada da origem da ciência. As contribuições científicas da cultura clássica grega e da cultura islâmica são inegáveis (a esfericidade da Terra e o heliocentrismo são descobertas gregas; e foram pensadores islâmicos que lançaram as bases da ciência ótica). Mas nada que se compare à produção científica ocidental da Idade Média em diante. Premissas de fundo têm o poder de direcionar nosso pensamento sem que o percebamos, e é no plano histórico que as diferentes direções tomadas pelas várias culturas aparecem claramente.

Ao se debater “Ciência e Religião”, opondo os avanços da ciência moderna ao Cristianismo, combate-se a própria metafísica da qual a ciência nasceu, e sem a qual sua existência futura é incerta.