quinta-feira, dezembro 09, 2010

Não se deve duvidar de tudo

Três argumentos: o ético, o filosófico, e o econômico.

Por duvidar quero dizer negar assentimento a uma proposição e procurar razões pelas quais ela possa não ser verdadeira.

O ético: crenças (e aqui falo no sentido mais amplo: afirmações sobre a realidade assentidas pelo indivíduo) levam a ações. Ações podem ser boas ou más. Assim, duvidar de uma crença qualquer pode fazer com que não mais façamos uma boa ação, ou com que façamos uma má ação. Se um abolicionista potencial duvidasse de que negros são seres humanos, a causa abolicionista perderia muita importância para ele. A máxima de Hume “Daring in thought, conservative in action” até funciona para impedir atrocidades, mas falha para nos convencer a agir bem (para além da mediocridade esperada) quando esse agir bem depende de crenças das quais duvidamos.

Esse argumento, contudo, tem uma grande falha que é submeter crenças à moralidade, que incentiva antes a suposição de contos de fada coloridos para preservar certas boas ações do que a procura da verdade acima de tudo e, como conseqüência dela, a descoberta de uma ética baseada na realidade. Ainda assim, em casos pontuais parece-me uma consideração legítima; há vezes em que é melhor não duvidar.

O filosófico: mesmo para se formular uma dúvida é preciso aceitar alguns pressupostos (por exemplo, que há tal coisa como verdade e falsidade). Portanto, é impossível duvidar de tudo de uma vez só. Seria, contudo, possível duvidar de tudo uma coisa de cada vez? Tampouco, pois há certos princípios (o mencionado acima é um deles) que devem estar presentes em todo e qualquer ato de duvidar; e mais, em todo e qualquer ato de pensar. Não é possível ser e não ser, uma coisa é o que ela é, etc. Dessas não podemos duvidar, pois ao duvidarmos estaremos aceitando-as. Se se trata de uma conseqüência da estrutura da mente (e portanto sem relação com a realidade em si) ou de uma percepção básica e inescapável da realidade vai do feitio filosófico de cada um.

O econômico (e favorito): A vida humana é finita e os recursos são escassos. Não temos nem tempo nem capacidade de fazer tudo o que gostaríamos; devemos priorizar o que se nos apresenta como sendo o melhor. Algumas dúvidas levam-nos a questões interessantes e a trabalhos intelectuais altamente proveitosos; outras são estéreis e contribuem muito pouco para nossa busca da verdade (que é a finalidade de toda e qualquer dúvida real). Duvidar demanda tempo. Portanto, é preciso priorizar aquelas dúvidas que têm o maior benefício esperado (do nosso ponto de vista) e deixar de lado outras que, embora possam até guardar um certo interesse, não parecem muito relevantes.

Portanto, ao contrário do que se diz por aí, não se deve duvidar de tudo. Ofereço uma alternativa que me parece superior: deve-se estar disposto a duvidar de qualquer coisa caso haja bons motivos para tanto.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Para que Serve a Filosofia?

Um amigo meu diz que no dia em que lhe apresentarem uma utilidade para a filosofia ele deixa de estudá-la. Em certo sentido, concordo plenamente: não dá para colocar uma finalidade externa à filosofia como tantos tentam fazer para justificar sua atividade.

Ganhar dinheiro, por exemplo, certamente não deveria ser o que motiva alguém a estudá-la. E se for, pobre dele. Agora, outras coisas mais bonitinhas também não podem ser de forma alguma: tornar o mundo um lugar melhor. Eu até entendo que é isso que motiva um estudante de geografia ou ciências sociais (um erro, mas um erro possível); mas se você está na filosofia, o que você lê e estuda é tão distante do espaço urbano opressivo das periferias, da fome da África e do aquecimento global que é impossível mantê-la como meio para tais fins. Só uma ginástica mental muito grave o permitiria. Claro, filósofos mudam o mundo para melhor (ao menos os bons). Platão e Aristóteles são mais importantes para a humanidade do que Mandela e Bono Vox. São consequências de suas ações, e não os fins. Um tratado pode mudar o mundo; mas quem acorde querendo mudar o mundo dificilmente quererá escrever um tratado. Todo mundo que estuda filosofia afirma, pelas suas ações, que considera uma questão abstrata a ser considerada solitariamente algo mais importante para si do que a pobreza e fome de uma boa parcela da humanidade.

Tornar-se uma pessoa melhor também não pode ser o objetivo do estudo de filosofia. Não que a filosofia não nos torne melhores. Mas ter isso como o objetivo quase certamente desvirtua a atividade filosófica, pois você colocará de antemão uma restrição extrínseca à sua própria razão quanto ao tipo de questão e posições que estará disposto a considerar. Além disso, embora possa ajudar o caráter, a filosofia (e mesmo a boa filosofia) é compatível com uma grande dose de vícios.

Mas tem uma finalidade que o estudo da filosofia tem que ter: o interesse intrínseco pela questão estudada. Se o cara estuda a crítica que Kant fez à metafísica, então ele tem que se interessar muito pelo que está em jogo nessa questão: a possibilidade de uma metafísica que fale da realidade em si, os limites do conhecimento humano, etc. Para quem se interessa pelas grandes questões do homem e do universo estudar filosofia é, portanto, muito útil. Se nem essa utilidade tiver, então está só perdendo seu tempo, ou pior: sob o pretexto “superior” da ausência de fins, está submetendo sua mente a fins muito inferiores, como a escalada de uma hierarquia de poder mesquinho da universidade ou exercitando sua vaidade para mostrar aos outros (ou a si mesmo) a própria inteligência e capacidade de dominar enormes sistemas intelectuais sem em nenhum momento preocupar-se com a realidade, que é o que motivou sua construção.