segunda-feira, dezembro 22, 2008

Filosofia e Falência Espiritual

Aula de Filosofia. Matéria: teoria crítica (“Lá vem...” - calma, algo bom sairá daí!). Discute-se o conceito de “democracia deliberativa”. Tudo muito vago e abstrato; repetição dos textos ao invés de entendimento. Mas a intervenção de um aluno, membro da chapa recém-eleita do C.A., trouxe o mundo real à aula. Acontece que a chapa vencedora teve 80 votos. Mais de mil alunos na faculdade; 80 votos.

A realidade da faculdade é essa. Grande parte das pessoas simplesmente não se interessa. Outra parte, também considerável, se interessa, mas sabe que isso de nada adianta. As chapas, as assembléias, enfim, as “estruturas de poder” dos estudantes estão tomadas por pequenos grupos. Um deles, em particular, cujos membros se dizem parte da Quarta Internacional Trotskista, faz questão de ir a todas as reuniões e não deixar ninguém mais falar. As assembléias são intermináveis; vota-se inclusive se determinado ponto deve ou não ir a votação, e os resultados são sabidos de antemão. Assim, mesmo os bons se desinteressam e se distanciam cada vez mais da política universitária e da esfera pública em geral, minimizando o desgaste que teriam em lutas infrutíferas. Cada um vai para seu canto, estudar para sua prova. A suposta democracia se resume ao ato de votar; ação pontual que, isolada de um debate mais amplo, perde todo o sentido. Assim é a faculdade, é assim é, infelizmente, o mundo fora dela também.

Poderia ser diferente. O professor Ricardo Terra propôs a idéia: imaginemos que, dos mil alunos, a metade deles, quinhentos, adotasse uma postura ativa e participativa com relação à faculdade. Quinhentas pessoas dedicadas a pensar e discutir idéias, ler coisas de seu interesse, escrever textos, organizar grupos de estudo, produzir obras de arte, propor e elaborar projetos que envolvam os outros estudantes, etc. Nesse caso, seria possível, por exemplo, criar e consolidar um jornal dos alunos, no qual fossem discutidas, com total liberdade, todas as idéias e pontos de vista (o próprio Terra sugeriu, para o jornal hipotético, uma questão provocadora: “por que nenhuma boa universidade do mundo tem eleições diretas para reitor?”). A vida universitária seria outra. Haveria razão para se interessar e participar dos grupos estudantis. As votações seriam a culminação das discussões e debates que ocorreriam o tempo todo por toda a faculdade, para aquelas questões de ordem prática que exigem uma solução única; e não o princípio e o fim de toda a política. Isso é democracia deliberativa. E é um ideal verdadeiramente apaixonante.

E por que não se concretiza? Por um lado, como já foi mencionado, há o forte obstáculo à participação criado pela organização atual das entidades e assembléias. Por outro, todo mundo precisa estudar para passar de semestre, e muitos precisam trabalhar; não têm tempo para mais nada. Isso é o que foi alegado em sala, e no qual custo a acreditar. Sim, de fato a estrutura oficial desanima qualquer um; mas novas iniciativas não têm que, necessariamente, passar por ela. Também é verdade que é preciso estudar, e muitos estudam e trabalham; mas o mesmo valia no passado, quando existia uma vida universitária mais rica. Será crível que um aluno da Filosofia, que cursa de duas a três matérias por semestre (o que significa ir à faculdade dois ou três dias da semana), não tenha tempo?

O tempo sempre foi curto; não vivemos em uma época especial nesse sentido. O que falta é vontade e a disposição de agir. Em outra matéria deste semestre estudamos o Contrato Social de Rousseau (“Agora já passou dos limites!” - sem revoltas; aqui também há uma boa lição). Ele observava, em seu tempo, essa mesma passividade que se vê agora. Homens adultos, para não arcar com a responsabilidade de suas ações, o que envolve correr riscos, passar desconfortos e ocasionalmente falhar, abrem mão da própria condição de agentes. Preferem delegar suas responsabilidades para outros, e pagar-lhes para que ajam em seu lugar. Para Rousseau, a causa disso era o desejo de bem-estar material. Hoje em dia, mesmo a busca do bem-estar material é delegada; espera-se do governo que ele forneça a cada homem todas as necessidades da vida; até mesmo a educação e o cuidado dos próprios filhos são vistos como incumbência do Estado, e não dos pais. Não é preciso dizer que essa estratégia é frustrada; mesmo o bem-estar material piora em conseqüência dela.

Tal piora, no entanto, é pequena se comparada à degeneração moral e espiritual que decorre de uma existência passiva. Todos os sonhos e aspirações nobres são deixados de lado para se garantir o pouco (e é cada vez menos) que se tem. Deixa-se de perseguir a felicidade para evitar o sofrimento. O homem deixa de ser um agente e passa a ser uma vítima; vítima da sociedade, do capitalismo, dos políticos; vítima de seus pais, de seus genes, de seu corpo; vítima de um universo mau que não se dobra para satisfazer cada capricho seu. A conseqüência é que todos passam a exigir seus direitos (“direito” hoje em dia nada mais é do que obrigar outras pessoas a prover aquilo do qual se carece), e cada vez mais fogem de sua contrapartida necessária: as responsabilidades. As conseqüências são sentidas em todos os âmbitos da vida individual e social.

Enquanto essa atitude espiritual de fundo não mudar, as instituições políticas não mudarão; ela é sintoma, e não causa, do problema (embora, como em quase tudo na ação humana, o sintoma reforce a causa). Como mudá-la? Não sei ao certo, mas acho que a universidade, e especialmente a faculdade de Filosofia, deveria ter um papel aí.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

terça-feira, dezembro 02, 2008

Moral Objetiva e Filosofia Moral

A distinção entre o certo e o errado é objetiva ou subjetiva? A moral ou tem origem subjetiva, na vontade humana (fruto de um acordo entre os homens, ou da imposição do mais forte) ou é objetiva, isto é, decorre da própria natureza humana. Vou, neste texto, responder às críticas feitas pelo Ricardo (nos comentários ao texto anterior) à idéia de que ela é objetiva.

Ele começa apontando um fato: o valor moral de uma ação não é algo diretamente perceptível pelos cinco sentidos. Nada a discordar aqui. Contudo, os cinco sentidos são apenas o canal pelo qual as informações externas chegam à nossa mente; todas as operações mentais mais importantes ocorrem depois. Exemplifico: o que recebemos da visão são apenas manchas de cor. Não é a visão em si que nos diz que essas manchas compõem uma árvore, e aquelas uma casa; não é ela que nos informa que o carro pequeno está longe e o grande está perto. Esse trabalho de interpretação é feito pelo intelecto, ou entendimento (num nível ainda instintivo, é verdade, dado que nem pensamos para fazê-la, assim como todos os animais). Se fôssemos apenas um receptáculo de informações sensoriais, nossa vida seria uma seqüência caótica de experiências sem sentido ou coerência nenhuma.

A distinção entre o certo e errado, o julgamento moral, também é feita pelo entendimento, que parte de uma base instintiva e vai além dela. Pela experiência, sabemos que algumas coisas contribuem para uma boa vida e outras são nocivas. Além disso, temos consciência de que nossas ações podem alterar a realidade: nossa vida e a vida de outras pessoas. A moral decorre daí: sabemos que algo é bom, e que nossas escolhas nos aproximam ou afastam dele. Deixar as obrigações sempre para a última hora resulta em muito estresse, em tarefas mal feitas e mancadas ocasionais. Está em nosso poder cultivar ou combater esse hábito. É, portanto, um mau hábito, e quem o cultiva age mal. Já salvar um bebê que se afoga é dar-lhe a vida, condição necessária para os outros bens; é, portanto, uma boa ação.

A interação entre os instintos humanos (que são a base sensível dos nossos desejos: alimentação, sexo, lazer, curiosidade intelectual, empatia, etc) e a experiência sobre como conciliá-los costuma dar conta da maioria dos problemas e das escolhas morais. Não é preciso ter estudado filosofia para saber que mentir, estuprar ou torturar por prazer é uma má ação. Aqui chegamos à segunda crítica apontada pelo Ricardo: muitos filósofos dizem coisas muito diferentes sobre a moralidade; não há um método racional universalmente aceito para se chegar à verdade no campo da moralidade.

Ao se fazer essa crítica, perde-se de vista que o juízo moral não depende de uma fina e precisa distinção de conceitos. Se assim fosse, apenas os filósofos seriam capazes de agir moralmente. Na realidade, os filósofos morais não têm como objetivo, via de regra, “descobrir” o que é certo e errado; suas conclusões já estão dadas. Se alguém afirma provar, de forma indubitável, que estuprar é certo e beber água é errado, não é preciso estudar sua teoria: ela é obviamente falha. Todos os grandes filósofos morais (posso incluir aqui Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Locke, Hume, Kant, Mill e muitos outros) tentavam, em seu trabalho, chegar àquilo que o senso comum mais ou menos já mostrava. Sua finalidade é explicitar a base racional que justifica os juízos morais. Além disso, visam apresentar-nos um método confiável para nos guiar em situações dilemáticas, para as quais o senso comum não basta.

Outra função da filosofia moral é corrigir o senso comum quando ele erra. Embora seja uma importante fonte de conhecimento para o direcionamento de nossas vidas, é inegável que a experiência partilhada de uma sociedade carrega erros ocasionais que, com o tempo, se tornaram normas de conduta aceitáveis ou até mesmo obrigatórias. É o caso da escravidão no Ocidente de poucos séculos atrás, do canibalismo dos povos americanos, ou do aborto no mundo atual.

Assim, a filosofia, embora importante, não é estritamente necessária para o julgamento moral. Podemos andar perfeitamente bem sem conhecer a mecânica por trás da nossa locomoção. Com esse conhecimento, é possível corrigir erros de postura ou de pisada, mas não foi com base em tratados de anatomia e física que demos nossos primeiros passos. O mesmo vale para a outra grande faculdade própria da razão humana: o conhecer. Os maiores filósofos discordam sobre como se dá e se embasa o conhecimento; mas nem por isso o ceticismo radical é a posição mais razoável. Da mesma forma, apesar de todas as discordâncias sobre como discernir o bem do mal, que tal distinção exista não só é evidente como é aceita, na prática (embora nem sempre na teoria), por todos os seres humanos.