quarta-feira, julho 29, 2009

4 meses, 3 semanas, 2 dias

É uma marca da superficialidade brasileira interpretar qualquer obra de arte apenas nas suas implicações políticas ou econômicas mais simplórias. Se fosse depender da mídia nacional e dos comentários que ouvi, nunca me interessaria por “4 meses, 3 semanas, 2 dias”, um filme romeno, ambientado no regime comunista de Ceaucescu, sobre uma jovem grávida que, auxiliada pela amiga, pratica um aborto clandestino. A vida é curta demais para gastá-la com propagandas pela legalização do que considero, francamente, uma prática hedionda. Foram duas resenhas americanas (esta e esta) que me fizeram mudar de idéia e aproveitar a oportunidade quando o filme passou na TV. E o que vi ia, de fato, muito além da cansada ladainha nacional sobre o drama feminino face ao conservadorismo malvado.

Gabita é uma jovem tonta que engravidou e agora quer abortar. Incapaz de tomar conta de si mesma, depende de sua amiga Otilia para organizar tudo: da reserva do quarto de hotel e contratação do abortista a desaparecer com o feto. Como o aborto é tardio (mais um indício da falta de capacidade de Gabita em tomar conta de si mesma), e por isso altamente arriscado, Otilia tem que recorrer ao Sr. Bebe, um homem frio e duro, que explorará as duas de forma monstruosa.

Um grande mérito do filme é não ser propagandístico - nada fácil quando se trata de um tema polêmico como o aborto - procurando, ao invés, ser real. O diretor não poupa a audiência de mostrar todos os lados do problema: o abortista inescrupuloso, os riscos do aborto clandestino, a mãe desesperada, a amiga solícita e, mais chocante de todos, o “produto final” do procedimento. Todos esses elementos concorrem para produzir uma experiência não só verdadeiramente perturbadora, como também formativa.

Tomemos Gabita, a jovem grávida. Indefesa e vulnerável, ela usa suas óbvias fraquezas para manipular a amiga, que acaba arcando com os altos custos (não apenas financeiros) do procedimento. Mentira, auto-piedade e culpa são os meios normais pelos quais ela lida com a realidade, o que não quer dizer que seja fria ou calculista; sua condição de vítima impotente é real, assim como seu sofrimento e angústia; a manipulação é inconsciente e natural, não planejada, mas nem por isso menos detestável.

Otilia é a personagem principal e aquela com quem se cria mais empatia, pois é ela que carrega o maior fardo psicológico desse dia, que configura-se num verdadeiro pesadelo existencial. Mesmo sem nunca se perguntar sobre a moralidade do ato, transparece nela uma genuína preocupação com sua amiga e o desejo de ajudá-la. É só quando tudo já está terminado que ela sente o peso do que transcorreu. Tendo que lidar com pressões de diversos lados - o detestável abortista, as demandas crescentes de Gabita, o compromisso de ir ao aniversário da mãe de seu namorado, a mediocridade opressiva imposta pelo regime comunista - seu grande sonho é ser alguém na vida e transcender suas origens rurais. Essa busca por realização é o que a torna uma mulher ativa, capaz de aguentar uma barra à qual outros sucumbiriam. Contudo, é essa força de caráter que a deixará, no fim das contas, emocionalmente exausta e moralmente destroçada.

Como eu disse, o filme não omite nenhum lado da realidade. A culminação disso é uma tomada estática, que deve durar uns 5 segundos na tela mas que ficará ainda um bom tempo na minha memória, do feto abortado no chão do banheiro do hotel. O foco excessivo sobre a mulher e os riscos do procedimento muitas vezes ofusca a outra parte envolvida, que o filme mostra cruamente. Ao literalmente dar um rosto ao feto, é como se dissesse ao espectador: “Você pode até ser a favor do aborto; só não se engane sobre ele. É isto aqui.”. Se fosse legalizado, o processo ficaria de fato mais limpo e seguro para a mãe. Mas o resultado final, escondido sob o branco da assepsia hospitalar e rumo a uma lata de lixo distante da nossa visão, seria o mesmo.

Depois de se livrar do corpo (sua incumbência final), Otilia volta ao hotel e encontra Gabita no restaurante, comendo as sobras de um jantar de casamento que não ocorreu, o que imediatamente nos remete às sobras humanas de algumas cenas atrás. Concordam em nunca mais mencionar os eventos daquele dia; um silêncio culpado, mais eloqüente do que qualquer manifesto sobre o horror ali vivenciado. Quantos abortos limpos, seguros e legais não são escondidos sob o mesmo voto de silêncio? O que esse silêncio diz sobre os resultados psicológicos do ato? Dá o que pensar para qualquer ideólogo.

sexta-feira, julho 03, 2009

Discutindo mentiras

Sua esposa está dormindo e alguém do trabalho dela liga para sua casa. O que você responde? “Ela não está.”, talvez? Bem, trata-se de uma mentira. Não sei se justificada ou não, mas não há dúvida de que suas palavras não correspondem à sua crença. Num caso como esse muitas outras saídas são possíveis: “Ela não pode atender”, “Será que eu posso anotar o recado e ela te liga depois?”, etc., então o dilema não é tão forte.

Vamos dificultar um pouco as coisas. Seu amigo escreveu um poema destestável. A cada verso lido você franze a testa perante tamanho mau gosto. As rimas são todas de verbos no infinitivo ou oxítonas terminadas em “ão”. Contudo, ele se dedicou muito à obra-prima. Eis que ele aparece, todo ansioso, e pergunta: “E aí? Gostou?”. O que se deve dizer? Aqui muito depende do jeito que se fala, e acho que a maioria das pessoas concordaria que, se ele pressionasse mesmo, o certo seria falar sinceramente a verdade (ainda que, na prática, predomine a mentira branca preservadora de egos).

Mas e aqueles casos em que a verdade traz uma conseqüência grave? O melhor exemplo é o do oficial nazista que pergunta se você está escondendo judeus em casa. Você está. Qualquer resposta que não seja um “Não!” direto e reto, qualquer tentativa de equivocação ou mudança de assunto, ele interpreterá como uma evasiva e invadirá sua casa atrás dos judeus. Nesse caso extremo, a grande maioria julgaria que o correto é mentir.

Contudo, na história da filosofia, muitas figuras de peso disseram que a mentira é errada sempre. E não estou pensando só no Kant, não! Sto. Agostinho e Sto. Tomás de Aquino, por exemplo, chegaram à mesma conclusão: a verdade deve ser dita sempre não importando as conseqüências. Se possível, em alguns casos, é lícito fazer algum tipo de equivocação (”Achei esse o seu melhor quadro!”, sem dizer que você detestou todos, e que mesmo o melhor é uma porcaria) ou evasiva, mas mentir nunca. Punha-se uma ênfase excessiva na verdade literal das palavras, sem levar tanto em conta a intenção de enganar. Afinal, na mentira e na equivocação a intenção é a mesma: enganar; a diferença é apenas que, no segundo caso, as palavras são literalmente verdadeiras.

Tomás de Aquino diferenciava entre três tipos de mentira: a viciosa, que visa enganar por um fim vil mesmo; a oficiosa, que visa algum bem (por exemplo, a vida da pessoa); e a jocosa, que visa divertir ou entreter. Essas duas últimas são, na opinião dele, pecado venial, ou seja, não muito graves, mas ainda assim moralmente erradas.

Hoje em dia, a maioria de nós (inclusive eu) pensa diferente. Mentir é errado, mas há casos que o justificam, como salvar a vida de um inocente, por exemplo. E para outros bens, menores do que a vida? Contar uma pequena mentira para tirar um inocente da prisão? Ou para ajudar alguém a conseguir um emprego? Ou para não ferir sentimentos? É um pouco arbitrário dizer que só se pode mentir para salvar uma vida e excluir outros valores importantíssimos (liberdade, honra, dignidade, sustento, bem-estar material). Uma vez feita a exceção, fica difícil impedir que novas desculpas entrem em cena. Ou a verdade deve ser sempre obedecida e dita, ou então é sempre uma questão de ponderar a verdade com outras considerações.

E se o beneficiado com a mentira formos nós mesmos, e não outra pessoa, a licitude da mentira muda? Se a vida ou o emprego na berlinda forem meus, posso mentir para mantê-los?

A posição radical me parece a mais adequada para a formação do caráter. A outra, mais liberal, parece que aos poucos cria o hábito de mentir, ou pelo menos torna-nos insensíveis à mentira, de forma que mentir se torna quase um reflexo para sair de situações embaraçosas, para não ferir os sentimentos de um conhecido, etc. Mas, ao mesmo tempo, não acho nada errado mentir nos casos extremos em que algo sério está em jogo. Como sair dessa inconsistência?