quinta-feira, dezembro 09, 2010

Não se deve duvidar de tudo

Três argumentos: o ético, o filosófico, e o econômico.

Por duvidar quero dizer negar assentimento a uma proposição e procurar razões pelas quais ela possa não ser verdadeira.

O ético: crenças (e aqui falo no sentido mais amplo: afirmações sobre a realidade assentidas pelo indivíduo) levam a ações. Ações podem ser boas ou más. Assim, duvidar de uma crença qualquer pode fazer com que não mais façamos uma boa ação, ou com que façamos uma má ação. Se um abolicionista potencial duvidasse de que negros são seres humanos, a causa abolicionista perderia muita importância para ele. A máxima de Hume “Daring in thought, conservative in action” até funciona para impedir atrocidades, mas falha para nos convencer a agir bem (para além da mediocridade esperada) quando esse agir bem depende de crenças das quais duvidamos.

Esse argumento, contudo, tem uma grande falha que é submeter crenças à moralidade, que incentiva antes a suposição de contos de fada coloridos para preservar certas boas ações do que a procura da verdade acima de tudo e, como conseqüência dela, a descoberta de uma ética baseada na realidade. Ainda assim, em casos pontuais parece-me uma consideração legítima; há vezes em que é melhor não duvidar.

O filosófico: mesmo para se formular uma dúvida é preciso aceitar alguns pressupostos (por exemplo, que há tal coisa como verdade e falsidade). Portanto, é impossível duvidar de tudo de uma vez só. Seria, contudo, possível duvidar de tudo uma coisa de cada vez? Tampouco, pois há certos princípios (o mencionado acima é um deles) que devem estar presentes em todo e qualquer ato de duvidar; e mais, em todo e qualquer ato de pensar. Não é possível ser e não ser, uma coisa é o que ela é, etc. Dessas não podemos duvidar, pois ao duvidarmos estaremos aceitando-as. Se se trata de uma conseqüência da estrutura da mente (e portanto sem relação com a realidade em si) ou de uma percepção básica e inescapável da realidade vai do feitio filosófico de cada um.

O econômico (e favorito): A vida humana é finita e os recursos são escassos. Não temos nem tempo nem capacidade de fazer tudo o que gostaríamos; devemos priorizar o que se nos apresenta como sendo o melhor. Algumas dúvidas levam-nos a questões interessantes e a trabalhos intelectuais altamente proveitosos; outras são estéreis e contribuem muito pouco para nossa busca da verdade (que é a finalidade de toda e qualquer dúvida real). Duvidar demanda tempo. Portanto, é preciso priorizar aquelas dúvidas que têm o maior benefício esperado (do nosso ponto de vista) e deixar de lado outras que, embora possam até guardar um certo interesse, não parecem muito relevantes.

Portanto, ao contrário do que se diz por aí, não se deve duvidar de tudo. Ofereço uma alternativa que me parece superior: deve-se estar disposto a duvidar de qualquer coisa caso haja bons motivos para tanto.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Para que Serve a Filosofia?

Um amigo meu diz que no dia em que lhe apresentarem uma utilidade para a filosofia ele deixa de estudá-la. Em certo sentido, concordo plenamente: não dá para colocar uma finalidade externa à filosofia como tantos tentam fazer para justificar sua atividade.

Ganhar dinheiro, por exemplo, certamente não deveria ser o que motiva alguém a estudá-la. E se for, pobre dele. Agora, outras coisas mais bonitinhas também não podem ser de forma alguma: tornar o mundo um lugar melhor. Eu até entendo que é isso que motiva um estudante de geografia ou ciências sociais (um erro, mas um erro possível); mas se você está na filosofia, o que você lê e estuda é tão distante do espaço urbano opressivo das periferias, da fome da África e do aquecimento global que é impossível mantê-la como meio para tais fins. Só uma ginástica mental muito grave o permitiria. Claro, filósofos mudam o mundo para melhor (ao menos os bons). Platão e Aristóteles são mais importantes para a humanidade do que Mandela e Bono Vox. São consequências de suas ações, e não os fins. Um tratado pode mudar o mundo; mas quem acorde querendo mudar o mundo dificilmente quererá escrever um tratado. Todo mundo que estuda filosofia afirma, pelas suas ações, que considera uma questão abstrata a ser considerada solitariamente algo mais importante para si do que a pobreza e fome de uma boa parcela da humanidade.

Tornar-se uma pessoa melhor também não pode ser o objetivo do estudo de filosofia. Não que a filosofia não nos torne melhores. Mas ter isso como o objetivo quase certamente desvirtua a atividade filosófica, pois você colocará de antemão uma restrição extrínseca à sua própria razão quanto ao tipo de questão e posições que estará disposto a considerar. Além disso, embora possa ajudar o caráter, a filosofia (e mesmo a boa filosofia) é compatível com uma grande dose de vícios.

Mas tem uma finalidade que o estudo da filosofia tem que ter: o interesse intrínseco pela questão estudada. Se o cara estuda a crítica que Kant fez à metafísica, então ele tem que se interessar muito pelo que está em jogo nessa questão: a possibilidade de uma metafísica que fale da realidade em si, os limites do conhecimento humano, etc. Para quem se interessa pelas grandes questões do homem e do universo estudar filosofia é, portanto, muito útil. Se nem essa utilidade tiver, então está só perdendo seu tempo, ou pior: sob o pretexto “superior” da ausência de fins, está submetendo sua mente a fins muito inferiores, como a escalada de uma hierarquia de poder mesquinho da universidade ou exercitando sua vaidade para mostrar aos outros (ou a si mesmo) a própria inteligência e capacidade de dominar enormes sistemas intelectuais sem em nenhum momento preocupar-se com a realidade, que é o que motivou sua construção.

terça-feira, novembro 23, 2010

Frei Betto e S. Teresa

Neste mundo decaído, as idéias nunca são encontradas em forma pura, mas sempre misturadas ao seu contrário. Não há mal sem alguma mistura de bem, ou bem sem alguma mistura de mal. O que poderia ilustrar melhor esse princípio do que a recente edição do Livro da Vida de S. Teresa D’Ávila pela Penguin/Companhia, com prefácio de Frei Betto? Eu estranharia menos ver um prefácio de Richard Dawkins. A junção de duas figuras na minha mente tão díspares praticamente me obrigou a comprar o livro.

Frei Betto tem, descubro agora, uma longa história com S. Teresa; já disse querer se casar com ela; depois propôs a celebração de um novo homem que seria o rebento das núpcias dela com Che Guevara. Enfim, o presente prefácio, intitulado “A Sedução de Teresa”, tem história.

Curiosamente, ele também é uma mistura de bem e mal, o que mostra que a realidade é mais complexa que meu preconceito. Nunca poderia imaginar um teólogo da libertação, petista fanático, dizendo algo como “Em suma, Teresa me ensinou que Deus não se exilou no Céu; ao contrário, habita o coração humano.” Não existe nenhuma descoberta que nos afaste mais da tentação do socialismo do que essa; pois se o homem tem uma finalidade transcendente ao seu alcance seja quais forem suas condições externas, então a luta pelo socialismo fica, no mínimo, relativizada.

Há outras boas citações no curto prefácio, mas nada muito fora do comum. É quando ele se mete a falar de história e a interpretá-la que sua visão de mundo definitivamente imanente (ou seja, disposta a direcionar mesmo o transcendente para fins terrenos) se faz sentir. Para ele, S. Teresa foi uma “feminista avant-la-lettre” que abriu espaço para mulheres numa igreja até então medieval e machista. Por pouco não foi condenada pela Inquisição, enquanto outras visionárias menos sortudas como Madalena da Cruz foram. O que ele não conta é que essa tal Madalena, que era considerada santa e milagreira por muitos em sua época (gente de pouca monta, como a imperatriz Isabel, esposa de Carlos V), ao sofrer uma doença que parecia que lhe tiraria a vida, confessou voluntariamente que seus êxtases e milagres eram fruto de um pacto que fizera com o demônio. Resultado: a Inquisição à condenou à... você ia dizer fogueira? É o que Frei Betto leva a entender, tendo citado a fogueira poucas linhas antes; mas o fato é que a Irmã Madalena foi condenada, três anos depois dessa confissão, à reclusão em um convento, onde morreu em paz anos mais tarde.

No todo, a situação da mulher na Idade Média tinha suas injustiças: só podiam se tornar proprietárias se o marido morresse, por exemplo; e o machismo cultural sem dúvida existia. Lamentavelmente, como as universidades eram só para clérigos, mulheres não cursavam (havia exceções, contudo). Além disso, as guildas (ancestrais de nossos sindicatos, o que dá uma idéia de sua atividade) também costumavam proibir a entrada de mulheres. Ao mesmo tempo, tinham uma liberdade talvez até maior do que teriam na Idade Moderna. Havia mulheres empreendedoras, havia mulheres com autoridade sobre homens (mesmo em instituições eclesiásticas), autoras mulheres (por exemplo Christine de Pizan, que é provavelmente a primeira feminista do Ocidente - escreveu o clássico “A Cidade das Mulheres” como forma de protesto contra as tiradas machistas de Jean de Meun, um dos autores mais populares da época), místicas mulheres. S. Catarina de Siena dava broncas abertas no papa. A freira Hildegard de Bingen foi das mais importantes compositoras musicais do século XII; além disso escreveu visões místicas e tratados de medicina. A vida era mais simples e, digamos, mais “brutal” na Idade Média; para o bem e para o mal. A violência era maior, mas também o eram a doçura espontânea e a liberdade. A mulher era menos delicada e isolada da vida corrente; vide a esposa de Bath nas Canterbury Tales. Existiam normas mas os casos anômalos também não eram raros; os grandes Estados nacionais, que futuramente imporiam uniformidade em tudo (desde línguas até moedas passando pelos costumes) ainda estavam se consolidando. As próprias caçadas às bruxas, que vitimaram muitas mulheres, são fruto da Idade Moderna. O consenso medieval entre as pessoas educadas era de que bruxaria simplesmente não existia; crer em bruxaria era superstição.

S. Teresa teria, além do feminismo, inaugurado um novo jeito de se relacionar com Deus: finda a frieza da escolástica, com suas categorias “pagãs” (agora Frei Betto considera isso algo ruim?), se iniciaria uma relação íntima com Deus. Ele por acaso ignora a integral continuidade de S. Teresa e os místicos medievais? Ricardo de S. Vítor, Boaventura, Walter Hilton, João de Ruysbroeck, Richard Rolle, Henrique Suso, enfim, uma bela lista que inclui também mulheres como Juliana de Norwich (que chamava a Deus de mãe), S. Brígida da Suécia, S. Catarina de Siena, Catarina de Gênova; tudo isso só de medievais, para não entrarmos na era dos Padres da Igreja. S. Teresa desenvolveu e sistematizou a realidade mística que já era vivida e conhecida. A Idade Média não “fechou” a religião na teologia especulativa; ela criou a teologia, é verdade: ousou usar a razão para investigar e conhecer mais a fundo os conteúdos da fé; mas isso de forma alguma limitava ou impedia a mística. Pelo contrário: na Idade Média, ao contrário do que aconteceria na modernidade, a mística ainda era vista como algo próximo do ser humano. Tanto que temos inclusive leigos com experiências místicas (Margery Kempe, autora da primeira autobiografia em inglês, é um bom exemplo). Com a modernidade, cada vez mais a mística foi vista como uma exceção distante da experiência comum, acessível a uns poucos escolhidos por Deus e perigosa para todo o resto; preconceito que apenas no século XX começou a ser verdadeiramente superado (com obras como, por exemplo, “Perfeição Cristã e Contemplação” do Pe. Garrigou-Lagrange).

Teologia e mística são coisas bem diferentes, de fato, mas uma não exclui a outra (S. Boaventura é um exemplo de quem escreveu sobre ambas). Mesmo um escolástico cuja obra é principalmente especulativa, como S. Tomás de Aquino, era alguém com bastante vivência mística, de tal maneira que chegou a afirmar que, perto do que essa via lhe tinha revelado, sua obra teológica e filosófica, um dos maiores patrimônios intelectuais do Ocidente, era “como palha”. E mais, místicas posteriores a ele como S. Catarina de Siena, usavam a teologia S. Tomás em suas obras místicas, evidência do rico intercâmbio entre essas duas áreas tão distintas. A própria S. Teresa partia de uma base teológica muito influenciada por S. Tomás. O exagero da escolástica, que desaguou num academicismo árido, foi sem dúvida um equívoco da Idade Média tardia, mas não era de forma alguma o que se propunha como ideal pela Igreja. Muito pelo contrário: eram comuns as advertências quanto aos perigos da curiosidade acadêmica esvaziada de sentido espiritual; em termos mais modernos, a cultura e a erudição por si só não salvam e muito menos santificam.

A obra de S. Teresa é intensamente pessoal, como bem aponta Frei Betto. Nela há uma preocupação em retratar a experiência pessoal e as particularidades de seu caso. A ausência dessa pessoalidade torna muito do que autores mais antigos escreviam um pouco frustrante para quem, nos dias de hoje, procura neles uma alma com quem se identificar (claro que também não é algo totalmente ausente da mentalidade antiga e medieval; é só pensar num Agostinho, num Abelardo ou ainda em autores seculares como Geraldo de Gales, que imbuem suas narrativas históricas e observações sociais com diversas observações pessoais). Mas isso não a torna moderna e antropocêntrica, em oposição a uma Idade Média teocêntrica.

A preocupação máxima, o valor maior de S. Teresa, é Deus; a grande marca para ela de que o indivíduo se aproxima da perfeição é parar de pensar em si mesmo - parar de querer que os outros falem bem dele - o que é óbvio - mas também deixar de querer que os outros não falem bem dele; enfim, esquecer-se de si mesmo e focar-se em Deus que é de onde vem todo o bem. A mística de S. Teresa, nesse sentido, finca o pé no terreno propriamente cristão, voltado para o Criador mas sem perder a identidade da criatura. O grande perigo da mística (na visão cristã) é que ela pode se dirigir, se não embasada numa formação teológica e doutrinal (novamente, o intercâmbio entre especulação e vivência), à dissolução da pessoa no Todo, o que acaba na constatação de que a existência (e portanto a multiplicidade e a individualidade) é má ou ilusória, que o Criador pessoal é mau e que portanto a verdadeira salvação é unir-se ao Deus escondido e impessoal anterior à divisão ser e não-ser; o homem é como uma gota que se mistura ao oceano e portanto deixa de ser gota. Místicos importantes como Mestre Eckhart foram condenados por causa disso (se a condenação foi justa ou se ele apenas usou a linguagem de forma mais livre para se referir ao inefável não é algo sobre o qual eu esteja minimamente capacitado para opinar). Para o Cristianismo, a pessoa (seja divina ou humana) tem um estatuto de realidade primária diferente das outras grandes tradições espirituais, nas quais ela é mais uma casca de uma realidade una e impessoal que a tudo engole. S. Teresa é, assim como a tradição em que ela se encaixa, teocêntrica; mas isso não quer dizer que ela negue ou anule o homem de sua perspectiva.

Frei Betto, enfim, parece subordinar a sabedoria de S. Teresa a lutas históricas (pelo feminismo, pelo “antropocentrismo”, contra uma igreja hierárquica e uma teologia abstrata) que ela supostamente ilustra. Depois dela, Deus deixaria de ser “um conceito” e viraria “uma experiência”. Só que tanto para os teólogos medievais quanto para a mística moderna ele não era (e não é) nem um nem outro.

quinta-feira, novembro 18, 2010

Televisão para Adultos

Não sei se é o meu gosto que mudou, mas vejo cada vez menos motivos para ir ao cinema. A quase totalidade dos filmes (ou ao menos dos filmes que passam aqui no Brasil) são produções boçais para o público adolescente. Basta lembrar que o filão de maior sucesso são os filmes inspirados em histórias em quadrinhos (nada contra as HQs; algumas dão bons filmes; mas não matam o desejo por algo mais denso e profundo). Ao mesmo tempo, as séries de TV têm ficado cada vez melhores. Sem a limitação de tempo do filme, e sem os recursos bilionários para se perder em efeitos especiais, elas podem se dar ao luxo de construir bons roteiros e personagens interessantes, indo além da pose que passa por caracterização em nosso cinema pós-Tarantino.

Mesmo nas séries, há as adolescentes e as adultas. Nas adolescentes nada é permanente: empregos e relacionamentos mudam com facilidade; aliás, o enredo consiste basicamente na troca de casais, briguinhas explosivas e saídas repentinas. Apesar de constantes e irrelevantes, as mudanças são sempre acompanhadas de muito drama, e a falta de valor objetivo é inversamente proporcional à quantidade de lágrimas e considerações pseudo-filosóficas para convencer o espectador de que tudo aquilo é profundo e “importa”, sempre da forma mais óbvia e escancarada possível. O melhor exemplo desse tipo de série é Grey’s Anatomy.

The Good Wife, cuja segunda temporada acaba de começar, pode ser classificada na categoria oposta: a série adulta. Isso quer dizer que os eventos na tela de fato importam. Coisas reais estão em jogo: uma família, uma carreira, uma empresa, uma reputação. Por isso mesmo não há necessidade de se exagerar no melodrama; ela pode ser sutil.

O centro da série é a advogada Alicia Florrick, que teve que retornar à profissão quando o marido Peter, promotor público, é preso num escândalo envolvendo corrupção e prostituição. Até que ponto ele é corrupto nunca fica claro, mas quanto ao uso de uma prostituta não há dúvidas. Com o marido preso, Alicia e os filhos mudam-se para um apartamento e ela volta ao Direito que havia abandonado para se tornar dona de casa; mais especificamente, vai trabalhar na Sterne, Lockhart & Gardner, empresa de seu velho amigo e antigo flerte de faculdade, Will Gardner. O problema é que a própria empresa não tem ido muito bem das pernas, e só pode contratar mais um associado; Alicia terá que disputar a vaga com Carey Ago, um jovem promissor recém-saído de Harvard Law. Paralelamente, Peter e seu estrategistas conseguem aos poucos reverter a situação calamitosa e suas perspectivas começam a melhorar, de forma que ele não só talvez saia da prisão, como mesmo possa voltar à vida pública. A relação com Alicia, contudo, continua fragilizada; Peter a quer de volta, mas Alicia resiste.

Esse é, em poucas linhas, o enredo da primeira temporada de The Good Wife. Vamos ao que torna a série um produto superior. Em primeiro lugar, fugir de todas as resoluções fáceis. Uma série inferior com um enredo desses teria uma saída fácil e convencional: Peter como o grande vilão, o machista dominador que manipula sua esposa, ao passo que Will seria o verdadeiro amor da vida dela. Nada disso por aqui. Primeiro porque o próprio Will é alguém com sérios defeitos: é alguém que encarnou em si a lógica do Direito, e para quem vitórias no tribunal e dinheiro para a firma estão acima de tudo (a proximidade com Alicia parece abrandar um pouco sua inescrupulosidae); ao mesmo tempo, é alguém distante e defensivo, que foge de seus verdadeiros sentimentos em casos puramente carnais. Que o objeto de interesse ilícito seja imperfeito é até comum; o mais inesperado é a caracterização de Peter e sua mudança ao longo da temporada.

Seria muito fácil transformar Peter num crápula: corrupto, adúltero, dominador; e de quebra isso daria uma licença moral para Alicia jogar-se sem remorsos num caso com Will. Mas, surpreendentemente, Peter arrepende-se do que fez, defende-se com maestria das acusações legais e passa, na frente dos espectadores, por algo que, ao que tudo indica, é uma verdadeira e sincera conversão espiritual. Que um político queira aparentar piedade religiosa depois de envolvido num escândalo é comum o bastante, e inclusive é isso que leva seus assessores à igreja do pastor Isaiah. Mas que a conversão seja real e, para desespero dos mesmos assessores, leve Peter a conter os golpes baixos contra sua concorrência e a recusar possibilidades de adultério é surpreendente.

Como bem disse um amigo meu, The Good Wife é sobre tentação. A tentação de se abrir mão de quaisquer princípios para se perseguir com mais eficácia os próprios objetivos. No final das contas, princípios não-negociáveis são uma vantagem ou um obstáculo à vida bem-sucedida? Alicia é uma boa mulher e uma boa esposa; alguém que tem valores não-negociáveis. Ao assumir as novas responsabilidades do mundo do trabalho (ao qual ela volta inicialmente sob necessidade, mas no qual continua por decisão livre), ela será pressionada a deixá-los de lado. Terá ela que podar sua natureza benevolente e disposição de ajudar para o bem de sua carreira e de sua empresa? E estará disposta a usar de quaisquer meios para chegar aos fins que almeja? É possível ser um bom ser humano e um bom advogado?

Há dois personagens que representam o uso inescrupuloso dos meios: Eli Gold, estrategista da campanha de Peter; e Kalinda, investigadora privada contratada pela Lockhart & Gardner. Eli emana uma aura de invencibilidade e superioridade; Kalinda é obviamente alguém mais vulnerável. Reservada, ambígua (a começar por sua sexualidade, que é uma das ferramentas a seu dispor), implacável quando quer algo e, ao mesmo tempo, dotada de um lado benevolente. Fica patente que ela quer ajudar Alicia, e faz muito mais por ela do que o mínimo profissional exigiria; ela é a mentora de Alicia no lado negro do mundo do Direito. O que a leva a ajudar Alicia? Talvez veja na nova advogada o ideal de mulher que ela nunca conseguiu atingir. Alicia é alguém que, acima de tudo, se preserva; Kalinda se entrega e se vende, e carrega na alma as cicatrizes de suas decisões. Já Eli Gold, ao que tudo indica, não faz favores a ninguém; com ele tudo é uma troca, um negócio; e sua grande virtude é deixar isso claro, sem rodeios ou máscaras. Até que ponto isso tem afetado sua vida pessoal é algo deixado para a segunda temporada. Uma terceira personagem, que pode ser ou não uma manipuladora de primeira ordem, é a mãe de Peter, Grace; sempre por trás dos panos, ela mexe as cordas para ver o sucesso de seu filho e da família dele como um todo - uma boa vovó (que cuida e gosta verdadeiramente de seu filho, nora e netos) que pode ocultar uma leoa sanguinária por trás da doçura. Se sua influência é moralmente positiva (e portanto de acordo com seu nome, Grace, ou seja, a Providência que imperceptivelmente conduz todas as coisas ao seu legítimo fim) ou negativa (algo mais próximo das conspirações apenas superficialmente boas do diabo), é algo que ainda não se pode dizer.

Outro dado distintivo da série é que ela se passa no mundo real: na Chicago dos dias de hoje. Não faltam alusões e referências às figuras reais da política (Obama, Hillary, Sarah Palin) e nem à divisão cultural dos EUA. Liberais e conservadores aparecem e, novamente, nem sombra do maniqueísmo que facilmente se insinua até nas séries supostamente neutras. E ao mesmo tempo, a série deixa ver que a posição política do indivíduo é, por vezes, seu traço mais superficial. Diane Lockhart, uma das donas da firma, é liberal até a medula; e mesmo assim, mesmo contra todas as suas convicções políticas, envolve-se mais do que seria prudente (tanto profissional como pessoalmente) com os tipos mais reacionários que o Tio Sam tem a oferecer.

O mundo adolescente é o mundo das ações sem consequência. Troca-se de namorada, troca-se de emprego, troca-se de sonho de vida, troca-se de amigos, sem maiores conseqüências. Em The Good Wife estamos em território francamente adulto. Tudo tem conseqüências. Alicia tem um casamento e filhos, e agora uma nova paixão que é sua carreira; Peter tem sua reputação e futuro político na linha. A firma Sterne, Lockhart & Gardner é a grande obra de Will e Diane. Todos têm o que perder. Seguir um impulso, um desejo momentâneo (que por algum motivo a nossa sociedade confunde com o amor profundo), é uma burrice. E, ao mesmo tempo, os dilemas são reais; pois para que servem os laços duradouros se eles não dão ao homem aquela satisfação mais profunda que um arroubo momentâneo promete por alguns instantes? Pegue quaisquer dois personagens da firma, e você encontrará uma combinação de competição e cooperação. É impossível descrever os relacionamentos em sua complexidade. A graça mesma de assistir está em vê-los se desenrolar aos poucos; um olhar, um desencontro, um silêncio; há histórias progredindo nas entrelinhas, há o passado de cada personagem que descobrimos pouco a pouco e as inseguranças quanto a um futuro ainda indefinido. Tudo muito real e relativamente sutil.

A primeira temporada termina num clímax. Todos os conflitos se intensificam, e mesmo os que se resolveram dão uma virada nova (a disputa pela vaga entre Alicia e Cary foi resolvida mas deu lugar a algo ainda mais sério). Se a segunda e as subseqüentes mantiverem o mesmo nível, teremos bons motivos para ir menos ao cinema.

terça-feira, outubro 19, 2010

Um conto de duas farmácias

Motivos médicos têm me mantido um tempo nos EUA. Nessa temporada, tive a oportunidade dúbia de freqüentar muitas farmácias, e posso dizer que a experiência americana nesse quesito é muito diferente da brasileira. Querem saber em qual dos dois países as farmácias são melhores? Aposto que não, né? Mas mesmo assim acompanhem comigo esta disputa que, embora menos emocionante que a Copa, guarda uma lição.

Comecei a pensar no assunto farmácia ainda em São Paulo, quando tive que comprar lentes de contato e não as encontrei. Na segunda tentativa frustrada, perguntei à atendente da farmácia se alguma outra próxima teria (tenho memória recente de comprá-las). A resposta? Farmácias estão proibidas de vender lente e óculos. Interessante. Lá fui eu para uma ótica. Imagino que ter uma visão boa seja algo perigosíssimo ao indivíduo e à sociedade, e por isso as autoridades tenham decidido dificultar nosso acesso a ela. Agora, cada idoso pobre com vista cansada tem que marcar consulta com oftalmologista e apresentar receita médica para comprar óculos. Os consumidores já podiam, antes, consultar um médico e pegar a receita. Quem achava que isso tomava muito tempo e dinheiro e que o benefício dos óculos um pouco mais precisos não valia a pena podia comprá-los direto. Não mais.

A lente de contato é um pequeno passo na crescente restrição ao que as farmácias podem vender. Lembro de uma matéria do Jornal Nacional uns anos atrás sobre outros produtos cuja venda seria proibida (já não lembro quais) em que perguntavam a um comprador numa farmácia se ele aprovava a nova lei. Sim, claro, aprovava. Ironicamente, na cesta desse consumidor consciente estavam vários produtos que a lei proibiria. Para vocês verem como pesquisas de opinião e voto nas urnas refletem fielmente as preferências reais da população... O resultado é que hoje em dia nossas farmácias só vendem remédios, cosméticos e algumas coisas de banheiro. Em breve alguém vai perceber que shampoo é bem diferente de remédio, vai achar “irracional” juntar os dois produtos numa mesma loja e vai querer que a lei separe o que o bem-estar dos consumidores uniu. Devem existir motivos muito bons para proibir as farmácias de vender produtos em geral, fazendo com que os cidadãos percam tempo à toa indo a várias lojas diferentes. Será? Vejam a justificativa dada pelo presidente da ANVISA, Dirceu Raposo de Mello (ADVERTÊNCIA: o pensamento de quem trabalha com o Ministério da Saúde pode ser prejudicial a sua saúde mental): “A farmácia é um estabelecimento diferenciado, não se pode banalizar esse ambiente com produtos que não têm relação com seu objetivo”. Precisa criticar?

Pensemos em algo mais agradável do que a ANVISA, o que não é difícil. Vamos aos EUA! Lá, as farmácias vendem de tudo: remédios, eletrônicos, utensílios domésticos, brinquedos, livros, comida e mais, muito mais. Procuro um pouco e ali estão: óculos de até 3,5 graus por 15 dólares livremente expostos (é, a saúde americana ainda não chegou no nível invejável da brasileira, embora avanços importantes estejam sendo feitos nesse campo). Enquanto espero meu remédio ficar pronto (mais sobre isso abaixo) compro guloseimas. Não tenho a menor dúvida: farmácia banalizada é muito melhor.

O outro lado da pílula

Talvez você esteja pensando algo nessas linhas: “canalha liberal vendido ao capitalismo ianque!” Se for o caso, acalme-se. Na competição pela melhor farmácia ainda sobra um quesito no qual poderemos resgatar a honra brasileira. Notem que até agora eu falei de tudo, menos de remédio.

A farmácia americana goza de muita liberdade exceto quando o assunto é remédio; aí ela é o sonho de qualquer burocrata. Registrem bem: para comprar qualquer remédio de receita, é preciso dar a receita (que é nominal, numerada e tem um papel especial com várias marcas para não ser falsificada) ao farmacêutico, apresentar documento de identidade e dar endereço e telefone; daí o farmacêutico registra tudo no computador, faz algumas ligações e depois coloca a quantidade exata de remédio que a receita prescreve num potinho. Da primeira vez, o atendente me disse que estaria pronto em vinte minutos. Fiquei pasmo; vinte minutos? No Brasil a venda é instantânea (fora para remédios tarja preta - nos EUA é assim para quase todos): o atendente olha o seu papel e te dá a caixa. Uma lei nova que proíbe que o próprio consumidor pegue o remédio atrapalha um pouco as coisas, mas o serviço ainda é rápido. Bom, como dito, usei o tempo de espera para comprar sorvete, Coca-Cola e outros remédios da alma. O que eu nem suspeitava era que aquele fosse um dia de sorte; o normal é que o remédio demore uma hora para “ficar pronto”. Perguntei a um farmacêutico que conheci por aqui e ele me contou que a demora deve-se à checagem da receita e à negociação com as seguradoras. Falha de mercado? Mais para falha de governo: o mercado de seguros americano é dos mais regulamentados do mundo, e as seguradoras são obrigadas a dar muito remédio de graça sem aumentar o preço da mensalidade; naturalmente, lutam com unhas e dentes para não dar um centavo além do exigido por lei. O resultado é que os pedidos vão se acumulando e forma-se uma fila imensa. Esse farmacêutico lamenta que ele não tem mais tempo de ajudar nenhum cliente, conversando e tirando dúvidas sobre sintomas. Todo ele é consumido por tarefas burocráticas.

Se o sistema brasileiro já é desnecessariamente complicado, o americano é uma piada de mau gosto. Contei a um atendente aqui nos EUA como funciona a venda de remédios no Brasil. “É, aqui era assim também. Mas tinha muita receita falsa.” Não tive a presença de espírito de retrucar um “E daí?”. No Brasil também tem muita receita falsa. E daí? Se receita não fosse obrigatória, o número de receitas falsas cairia muito, pode apostar. E elas cumpririam sua função legítima: informar ao paciente e ao atendente da farmácia qual o remédio e a dosagem prescritas pelo médico; não servir de controle legal de quem pode ou não ingerir uma substância. Mas, você me dirá, e os perigos de se tomar um remédio errado e morrer? Será que vale a pena encarecer (em tempo e dinheiro) toda a nossa relação com a saúde porque algumas pessoas são temerárias o bastante para tomar remédios perigosos sem ter a menor idéia se ele é ou não indicado a seu caso? Ironicamente, muita gente que defende a saúde regulamentada admite que descumpre a lei corriqueiramente, por exemplo pedindo indicação de remédio ao farmacêutico (ou mesmo à mãe), o que é ilegal (talvez isso mude parcialmente; notem o medo dos médicos de perderem sua reserva de mercado).

Perto do FDA, órgão do governo americano que decide que substâncias podem ser vendidas e quais devem ser controladas, a ANVISA é benigna e liberal. O FDA já quer, por exemplo, limitar legalmente a quantidade de sal em todos os alimentos. Muitas grandes empresas já se adequaram voluntariamente. Para elas é uma boa: via de regra, qualquer nova regulamentação será mais facilmente colocada em prática por uma grande empresa (para a qual o gasto extra é relativamente pequeno) do que por uma pequena, para quem o novo gasto pode comprometer a existência do negócio. Depois não venham reclamar de monopólios e cartéis...

Estou me estendendo; hora de anunciar o vencedor. Quem ganha na comparação de farmácias; Brasil ou Estados Unidos? And the winner is... o mercado. EUA e Brasil têm prós e contras diferentes; mas nas farmácias de ambos os prós devem-se à liberdade das pessoas de transacionar voluntariamente para melhorar suas vidas e os contras às ações dos governos que decidem melhorar a situação.

sábado, outubro 02, 2010

Astrologia

O argumento mais forte pare se dar crédito à astrologia, na minha opinião, é sua universalidade histórica e cultural. Todas as culturas (ou quase todas), em todas as épocas, viram alguma relação entre a os astros e a vida humana. O que tornaria esse argumento ainda mais forte é mostrar que as diferentes tradições, as diferente astrologias (babilônica, chinesa, ptolomaica, asteca), concordam entre si, ou ao menos se complementam. Fora esse fato, que levou, aqui no Ocidente, ao desenvolvimento de todo um sofisticado sistema de análise, sobra a evidência pessoal de quem já teve consultas reveladoras com astrólogos (seja para descrição do caráter, seja para previsão de tendências futuras na vida da pessoa). Mas esse tipo de evidência funciona só para quem teve a experiência. Para quem ouve o relato, ficam muitas incertezas (o quanto foi revelação real e o quanto sugestão?); quanto mais longe se é da pessoa, menor é a força da experiência pessoal dela.

Experiências pessoais existem para absolutamente todos os tipos de crença: astrologia, leitura de mãos (um homem que conheço foi a um astrólogo, e muito tempo depois a uma leitora de mãos, e recebeu a mesma descrição de seu caráter, em termos nada banais, de ambos), espiritismo, pentecostalismo, candomblé, catolicismo, simpatias mil, etc. No fim das contas, nenhum deles pode ter poder decisivo para um ouvinte. Em primeiro porque nunca se tem certeza que, de fato, algo extraordinário aconteceu. Em segundo porque, mesmo que se aceite o evento extraordinário, não se sabe se a interpretação dada por quem a vivenciou é correta (isso vale tanto para o ouvinte quanto para o sujeito). Será que a força benevolente que o fez se sentir em casa no terreiro de umbanda não era um demônio querendo arrastar sua alma para o inferno?

Claro que a astrologia tenta se dissociar de experiências “espirituais” desse tipo e se apresentar como uma ciência, na qual a experiência em questão não é um sentimento ou contato sobrenatural mas a constatação de que o astrólogo, lendo o mapa astral, sabe coisas sobre o cliente que não teria como saber, ou que fez previsões acertadas. Mesmo assim, a experiência humana comum é falível o bastante para nos deixar céticos. Peguem o exemplo da sangria: essa prática medicinal foi usada por milênios e em várias culturas. E vejam só: não só ela não curava doença nenhuma, como danificava a saúde do paciente, aumentando o risco de morte e dificultando a recuperação. E mesmo assim os melhores médicos, geração após geração, não percebiam. Pô, Aristóteles achava que os corpos caíam com velocidade diretamente proporcional ao peso, e muitos seguiram a linha dele; tem coisa mais obviamente falsa que essa crença? Para quem já sabe é óbvio; mas para a experiência casual humana pode parecer plausível. Isso é o bastante para, no mínimo, criar um bom ceticismo com relação a teorias cujo mecanismo proposto não podemos observar diretamente. Precisamos de uma experiência mais rigorosa do que a corriqueira.

O que a astrologia afirma é uma correlação constante entre a disposição dos astros no momento do nascimento e o caráter da pessoa. Isso é uma baita afirmação. Vejam: todo mundo aceita que os astros tenham influência sobre a vida na Terra. O sol bate, as plantas crescem, os homens sentem calor; uma estrela brilha, o amante sente-se inspirado a escrever um poema. Os fótons enviados pelos astros celestes a Terra podem ter efeito - direto ou indireto - inclusive sobre o bebê que acaba de nascer (e também sobre homens em todas as fases da vida); nada disso é muito polêmico. O polêmico é afirmar que esse efeito é previsível, ou seja, que a correlação entre os dois eventos (caráter da pessoa e disposição dos astros) é constante. É como afirmar que um pequeno objeto jogado de uma certa altura, ao bater no chão, irá sempre para o mesmo lado, o que sabemos não ser o caso; o número de micro-variáveis é tanto que algo genérico e maior como a temperatura do dia não influencia o processo de nenhuma forma previsível.

A posição dos astrólogos de que não se trata necessariamente de uma causalidade astro-pessoa, mas apenas de uma correlação cuja causalidade é desconhecida, é perfeitamente defensável. Mas a própria correlação precisa de mais evidências. Um bom exemplo seria procurar correlação entre os signos e comportamentos observáveis. Certo signo tende a ser mais audacioso? Então que tal medir sua correlação com acidentes de carro, ou com abertura de novas empresas? Outro tende a ser mais preocupado? Que tal medir sua correlação com problemas cardíacos? São só exemplos. O caráter (quero dizer, todas as características de sua personalidade) do indivíduo tem relação com seu comportamento. Sendo assim, dado que os astros têm relação com o caráter, então eles têm relação com o comportamento, que é algo mensurável. Nunca vi estudo que mostrasse relação clara de signo com comportamento algum. Também admito que nunca procurei muito, embora eu imagine que, se a evidência fosse forte, ela seria mais comentada publicamente. Por isso, não acredito em astrologia.

Isso tudo diz respeito à astrologia enquanto disciplina científica; mas não quer dizer que é imoral praticá-la. E de fato, se ela se restringir a esse plano puramente científico, não há porque condená-la moralmente (a não ser do modo trivial: é errado se dedicar ao estudo do falso - mas é óbvio que quem estuda não acha que é falso...). O problema moral só pode existir se a astrologia se coloca como algo além de uma mera ciência; como algo mais diretamente ligado ao plano sobrenatural. A simbologia astrológica se presta a esse tipo de leitura, assim como a ligação do astrólogo a disciplinas esotéricas, e a constante ligação histórica dela a cultos religiosos também. Aí ela se torna outra coisa: uma tentativa de violar a ordem espiritual, buscando a comunicação com espíritos para aprender verdades sobre a vida na Terra; a tentativa do homem de submeter o mundo espiritual ao seu poder, e que lança o homem num abismo de ilusões no qual ele está cada vez mais sob o poder de algo que não é nada bom. E isso sim, é digno da condenação moral dada por muitas religiões, inclusive o Cristianismo.

domingo, setembro 05, 2010

Desmontando Eutífron

Muita gente conhece o chamado “dilema de Eutífron”, que nos força a escolher entre uma de duas opções: ou a lei moral é criação de Deus e pode ser mudada por qualquer capricho seu; ou então Deus não pode mudá-la, e nesse caso ela é superior a Deus.

Nenhuma das duas possibilidades é muito satisfatória. A segunda nos obriga a aceitar um Deus que não é onipotente, que conhece algo superior a si. E a primeira nos obriga a dizer que a moral é o produto arbitrário de uma vontade toda-poderosa. Se amanhã Deus decidir que beber água é imoral e estuprar é meritório, então assim será.

Um dos grandes méritos da tese da lei natural é dar uma solução plenamente satisfatória ao dilema. Segundo ela, a moralidade — o certo e o errado — decorre da natureza do ser humano (não vou aqui entrar no mérito de como isso se dá — meu ponto não é defender a lei natural, só mostrar como ela desmonta o dilema). Sendo assim, da natureza humana como ela é, conclui-se que estuprar é destrutivo ao bem humano e beber água contribui com ele. Portanto o primeiro é mau e o segundo bom.

Deus pode mudar isso com um ato de vontade? Não. Enquanto o homem continuar como ele é, a moral continua a mesma. Mas quem criou o homem? Deus. E Deus pode certamente mudar a natureza humana, ou até extinguir a espécie, caso no qual a moral também acabaria.

Mudar a ética sem mudar o homem carrega consigo uma contradição, algo que Deus não pode fazer (não por alguma limitação de seu poder, mas porque a contradição, embora aparentemente, verbalmente, pareça ser algo, na verdade não é nada. “Solteiro casado” parece se referir a alguma coisa, mas na verdade é uma expressão sem significado).

Assim, Deus criou a ética ao criar a espécie humana. A lei natural foi instituída no Jardim do Éden, e não no Monte Sinai, onde ela foi apenas revelada (como ajuda para o intelecto fraco do homem caído).

sexta-feira, agosto 27, 2010

O Fogo Divino, os Santos e os Pecadores

"Partiram de Sucot e acamparam em Etam, na periferia do deserto. O Senhor os precedia, de dia, numa coluna de nuvens, para lhes mostrar o caminho; de noite, numa coluna de fogo para iluminar, a fim de que pudessem andar de dia e de noite.” Êxodo 13, 20-21

"A coluna de nuvens que estava na frente postou-se atrás, metendo-se entre as tropas dos egípcios e as de Israel. Para uns a nuvem era tenebrosa, para outros iluminava a noite, de modo que durante a noite inteira uns não podiam ver os outros.” Êxodo 14, 19-20

Já defendi em outro lugar - e é uma tese em nada estranha à autêntica tradição cristã - que a punição do inferno está intrinsecamente ligada ao estado da alma ao qual ele corresponde: amar uma criatura mais do que ao Criador. Preferir um bem finito e relativo ao Bem absoluto, que é a única fonte possível da felicidade humana, é condenar-se à miséria eterna. A dor sensível é decorrência do mau moral.

Hoje quero explorar um ponto ligado a essa idéia: a dor dos condenados e o deleite dos santos provêm do mesmo objeto. Toda a diferença entre a alma em estado de beatitude e a alma condenada reside na disposição delas perante Deus. Quero ilustrar isso com a imagem do fogo, muito cara à tradição católica, que é composta basicamente da Bíblia, dos ensinamentos magisteriais e dos escritos de santos e místicos.

A primeira imagem que nos vêm à cabeça quando falamos de fogo num contexto cristão é o Inferno. A dor dos condenados sendo consumidos por seus próprios crimes, remorsos e desejos maus é comumente representada pelo fogo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O próprio Cristo, por exemplo, explica a parábola do joio e do trigo: “O joio são os filhos do maligno. [...] Como se junta o joio para ser queimado ao fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os anjos e eles recolherão do Reino todos os escândalos e todos os promotores da iniquidade, e os jogarão na fornalha de fogo, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13, 38.40-42). O remorso e o desespero de se saberem claramente maus consome a alma dos condenados; os desejos desordenados de sua vida agora queimam com intensidade máxima; com a morte, a alma dirige-se, determinada e sem titubeios, àquilo que amava em vida. O fogo é uma imagem particularmente forte: é aquilo que a tudo consome e destrói, implacável e doloroso.

Mas essa imagem aparece também em outro contexto: para falar de Deus. A mesma passagem acima continua: “É então que os justos brilharão como o sol no reino do Pai.” João Batista batizava com água, mas anunciava alguém que viria batizar “no Espírito Santo e no fogo”. O Espírito Santo, quando desce aos apóstolos (pouco depois da ascensão de Jesus ao céu), aparece como “línguas de fogo”; e não podemos nos esquecer da sarça em chamas que fala a Moisés e várias outras imagens do Antigo Testamento.

Cristo diz que veio “pôr fogo à terra”. Pensamos em primeiro lugar na justiça terrível a ser feita contra os maus e impenitentes. Mas esse mesmo fogo efetua a salvação dos justos. Explica S. Paulo: “Se sobre este fundamento [Jesus Cristo] alguém edifica ouro, prata, pedras preciosas ou madeira, feno, palha, a sua obra ficará manifesta, pois em seu dia o fogo o revelará, e provará qual foi a obra de cada um. Se a obra constituída sobre o fundamento resistir, o autor receberá o prêmio, e aquele cuja obra for consumida sofrerá o dano; ele, todavia, se salvará, mas como quem passa pelo fogo.” (1Coríntios 3, 12-15). Aqui a oposição não é entre os justos e os condenados, mas entre os justos que se santificam ainda em vida e aqueles que, embora estejam no caminho bom, embora ergam suas obras no fundamento de Jesus Cristo, ainda deixam muito a desejar. É o fogo o teste que revela a obra de ambos. E aqueles cuja obra não resistir ainda terão que passar “pelo fogo” mais uma vez, isto é, pela purificação além-morte, pelo mesmo fogo dos condenados, mas numa duração finita. Em suma, o estado que se convencionou chamar de Purgatório. O fogo consome, mas também purifica e endurece. A argila temperada no fogo (imagem minha), resiste àquilo que quebraria a argila mais frágil.

O fogo também é usado para representar o amor, como no “fogo que arde sem se ver” de Camões. S. Tomás de Aquino usa a mesma imagem para o efeito do fogo: aquecer. Assim como o mesmo fogo age com maior força no que está perto do que no está distante, assim também a caridade ama com maior fervor aqueles que estão unidos a nós do que aqueles mais distantes; e sob esse aspecto o amor pelos amigos, considerado em si mesmo, é mais ardente e melhor do que amor pelos inimigos.” (ST, II-II, q. 27, a. 7). “Deus é amor”, diz S. João. E o que é o fogo do amor-caridade senão o próprio Deus enquanto vive e age na alma humana? Com efeito, o coração de Cristo é sempre representado, na arte sacra, como um coração em chamas.

Nessa mesma linha, o misticismo ocidental usa a imagem do fogo para descrever a ação do Espírito Santo. João de Ruysbroeck (não sei se é o primeiro a usar a imagem a seguir; mas é o primeiro que me lembro diretamente), monge flamengo do século XIII, bota nestes termos: “Se um homem quiser penetrar mais fundo, com seu amor ativo, nesse amor de fruição: então todas as potências de sua alma devem ceder, e devem sofrer e pacientemente suportar a Verdade e o Bem penetrantes que são o próprio Deus. Assim como [...] o ferro é penetrado pelo fogo; de modo que ele faz, pelo fogo, as obras do fogo, pois ele queima e brilha como o fogo. [...] E no entanto cada um permanece com sua própria natureza. Pois o fogo não se transforma em ferro, e o ferro não se transforma em fogo, embora sua união seja não-mediada; pois o ferro está dentro do fogo e o fogo está dentro do ferro...”. Essa imagem é muito rica, e mais tarde rendeu um novo elemento: é pela ação do fogo que o ferro se torna moldável, ou seja, dócil à ação do Espírito na alma que produz a transformação espiritual e moral do indivíduo no próprio Deus (theosis). Como o metal que participa do fogo, a criatura participa do Criador, ainda que ambos preservem suas naturezas. O Céu, lembrou Bento XVI esses dias, é viver no amor de Deus.

E o Inferno é rejeitar esse amor. Voltemos à Bíblia: na parábola do semeador que joga suas sementes pelo caminho, é o mesmo sol que faz as plantas nascerem e crescerem e que faz com que aquelas que crescem em solo pedregoso sequem e morram. Quero, com tudo isso, apenas apontar um fato: depois dessa vida, nos encontramos com Deus. E o estado da nossa alma consiste na nossa reação a esse encontro. Para uns é o fogo do amor unitivo, para outros o da purificação esperançosa e para ainda outros o fogo da destruição. Santos e condenados se encontram na presença de Deus. A distância que os separa é a distância espiritual entre amar o Bem ou detestá-lo. Para os egípcios a coluna de nuvens/fogo cegava e aterrorizava; para os judeus, guiava e protegia. É como escreveu C. S. Lewis: “No final há apenas dois tipos de pessoa: as que dizem para Deus ‘seja feita a Vossa vontade’, e aquelas a quem Deus diz, no fim: ‘seja feita a vossa vontade’”.

quarta-feira, agosto 18, 2010

Anti-capitalismo, Escolha o Seu

Muita gente é contra o livre mercado porque, sem a intervenção do governo, a economia não prospera. Máquinas substituem trabalhadores. O capital, ao invés de ser usado na produção, vai para a especulação. O desemprego aumenta, uma minoria de ricos enriquece enquanto uma massa crescente de desempregados vive da mão para a boca ou morre de fome. Com menos consumo, a produção cai. Todos ficam tímidos e com medo de investir devido ao risco, e então entesouram seu dinheiro em casa, tirando-o de circulação; o mercado como um todo vai à falência.

Já outro argumento, vindo frequentemente das mesmas bocas, sustenta que o livre mercado é mau porque cria nas pessoas, por meio da propaganda, um milhão de falsas necessidades, fazendo da massa (exceção feita, claro, aos “conscientizados”...) zumbis do consumo, atrás de celulares, carros e tênis comprados em 20x “sem juros”. Escravos do consumo, perdem o gosto pela vida simples e pelos bens mais elevados do espírito.

Meninas preocupadas com o peso têm que escolher entre o doce e a fruta, jovens angustiados têm que escolher entre exatas e humanas; agora chegou a vez dos intervencionistas escolherem qual dos dois ataques ao capitalismo deve permanecer; pois os dois ao mesmo tempo não dá! Ou o livre mercado destrói empregos e empobrece as massas impedindo-as de consumir o básico, ou ele as enriquece de tal maneira que as permite viver atrás do supérfluo. Teses contrárias não podem ser ambas verdadeiras.

Mas podem ser ambas falsas. Vejam só: a falácia do desemprego resultante do livre mercado é das mais velhas da ciência econômica. Não, a tecnologia não gera desemprego: pelo contrário, ao tirar trabalhadores de algum ramo que fica mais eficiente com máquinas, ela libera mão-de-obra para outros ramos, que antes recebiam menos trabalhadores ou até mesmo nenhum. Se uma máquina sozinha dá conta de produzir o alimento, podemos parar de trabalhar o dia inteiro na plantação e escrever livros, trabalhar em hospitais, etc. E não precisamos ter medo do entesouramento. Mesmo que uma parcela da população entesourasse seu dinheiro (isto é, escondesse embaixo do colchão ao invés de ganhar juros aplicando no banco - que o usaria para novos investimentos) o efeito dessa retirada do dinheiro da economia seria a queda dos preços; ou seja, quem não tomou a decisão genial de esconder seu dinheiro e não ganhar juros (e eu pensando que no capitalismo as pessoas eram gananciosas...) poderá comprar mais produtos a preços reduzidos. Ao longo do século XIX a tendência era de queda de preços (que é o natural quando a produtividade aumenta) e todas as economias cresceram muito; os perigos da deflação são um mito.

Quanto ao consumo zumbi, tenha dó, né? Em tempos muito mais liberais, portanto muito mais capitalistas, o consumismo não era um problema tão grande assim. Muita gente tem inveja e não gosta de ver, por exemplo, pobre consumindo. Se pobre compra celular que tira foto, é porque foi manipulado pelo marketing, e não porque sua vida será efetivamente facilitada. Ver consumismo genérico nos outros é a coisa mais fácil do mundo. Difícil é apontar os casos específicos. Pois é óbvio que o consumidor sabe que não precisa do tênis para sobreviver, assim como não precisamos de pratos e talheres; ele quer o tênis, pois o deixará mais confortável e vai pirar as minas na balada. A propaganda apenas apresenta a marca aos consumidores; tenta deixá-la gravada na cabeça deles para que se lembrem mais tarde e comprem o produto. A marca, por sua vez, tem o papel valioso de carregar informações. Se um tênis é Nike, já sei que será caro, mas também sei que posso esperar uma certa qualidade. Nenhuma das duas, propaganda ou marca, são infalíveis ou onipotentes; quantas campanhas publicitárias fracassadas já não ocorreram (ex: mudança de sabor da Coca-Cola), e quantas marcas antes poderosíssimas são hoje uma sombra (AOL, alguém?)...

Ouso dizer que, de fato, muitos gastam dinheiro com superfluidades. E a intenção por trás desses gastos é, via de regra, impressionar os demais; um desejo que, embora moralmente questionável, não foi engendrado nem pelo capitalismo nem pela propaganda. Não é de hoje que a vaidade (que, mais do que a preocupação com a beleza física, é o querer ser glorificado aos olhos dos demais) é um pecado capital. Tenho a forte impressão que muita gente com objeções ao capitalismo objeta, na verdade, ao pecado original; mas isso é outro assunto...

Quer ser anti-capitalista, vá lá, é direito seu, ninguém é perfeito. Se os argumentos serão bons ou não, veremos caso a caso. Mas antes de começar, preste a si mesmo a cortesia de verificar que os ataques são, ao menos, internamente consistentes. Melhor tomar o risco de fazer uma escolha de uma opinião que pode ser falsa do que sustentar opiniões que, conjuntamente, não têm como ser verdadeiras.

Postado originalmente no Instituto Mises Brasil.

quinta-feira, agosto 05, 2010

A Morte nas Esferas Pública e Privada

Não sabemos lidar com a morte. Com menos gente morrendo “fora de hora” (o que é bom), pensamos menos nela. Ao mesmo tempo, a mídia e a Internet confundem as esferas pública e privada. Antes, saber que alguém distante morreu era só mais um fato abstrato; agora temos que ver a mãe chorando na TV e os vídeos-tributo que os amigos publicaram no Youtube. Sentimentos privados vêm a público, e todos se sentem obrigados a partilhar do sofrimento de quem era próximo. Pior: confundimos isso com respeito.

“Que homem bom: ele sente profundamente a morte de todos os seres humanos” - isso pode bem ser verdade, mas as poucas pessoas que de fato sentem assim só se encaixam em dois tipos de vida: se acreditam numa transcendência, vida dedicada à oração ou ritos propiciatórios para os que se foram. Se atéias, vida melancólica contemplando a tragédia da humanidade destinada aos vermes. Claro, a imensa maioria não está nem aí para a morte de desconhecidos, caso contrário viveríamos em luto constante, pois tem sempre alguém morrendo.

Ficamos tristes quando morre alguém próximo. Quanto mais conhecemos sua vida, mas tocados ficaremos em saber de seu fim. Mas se desconheço o morto e não tenho relação com seus entes próximos, por que manter a pose e condenar como “desrespeitoso” quem não entre no jogo? Quem nunca riu com o Darwin Awards que atire a primeira pedra.

A morte de Lincoln não me toca. Não me sinto constrangido a me fazer de triste ou pisar em ovos para falar dele. O mesmo vale para quem morre no presente e é distante de mim. Isso não é falta de respeito nem com quem faleceu e nem com seus próximos, dos quais eu não sou próximo. Se conhecesse algum amigo seu, é claro que, nessa esfera privada, comportar-me-ia respeitosamente de acordo com o sofrimento alheio. Mas na esfera pública nada disso está em jogo, ou pelo menos não deveria estar.

Quando morre um intelectual, por pior que tenha sido, lá vêm os editoriais redimi-lo. Elegias não tardam a vir das fontes mais improváveis. Isso é especialmente verdade, na minha experiência, em círculos cristãos, que confundem a caridade devida aos mortos com falar uma coisa boa de quem morreu, mesmo que tenha sido crápula. Que me importa se Saramago morreu? Vou agora salvar sua alma? Tarde demais. Posso ajudá-lo de verdade rezando por ele, o que será virtuoso se feito privadamente. Espero que tenha ido para o céu e mantenho inalteradas minhas opiniões sobre sua obra e vida pública. No círculo dos entes queridos, ali sim é o lugar de lembrar o bem que ele fez; na esfera pública, nada de obituários chorosos de quem sempre o lamentou em vida. Quando morrer Fidel, virão elegias cristãs e conservadoras sobre “boas intenções infelizmente equivocadas” ou sobre a “realização imperfeita de um ideal”? Bota imperfeito nisso!

A morte é o maior drama da existência. Mas nem todas as mortes nos tocam. Uma coisa é a esfera íntima, e o respeito aos sentimentos de quem era próximo; outra coisa é a esfera pública, que não precisa e nem se beneficia de manifestações de tristeza e amor tardio. Alardear publicamente o comportamento apropriado à esfera privada não é virtude, é vaidade.

domingo, agosto 01, 2010

Nem Tudo é Racismo

Uma coisa que obviamente não é racismo: afirmar que existem diferentes raças humanas. Circulou por aí - não sei se ainda circula; ouvia muito no colégio - que “de acordo com a ciência” não existem diferentes raças no homo sapiens, e que afirmar o contrário já é ser racista. Quem primeiro inventou essa não duvido que fosse bem intencionado, mas errou feio mesmo assim. Pois é óbvio que existem diferenças entre os homens, que são passadas aos descendentes, e que permitem que classifiquemo-los em diferentes sub-grupos. Qualquer classificação em níveis inferiores à espécie, ou seja, entre indivíduos que podem se reproduzir entre si, terá um quê de arbitrária. Mas não é por acaso que pais brancos têm filhos brancos, e pais negros, filhos negros. Falar em raças e, dentro de raças, etnias, é plenamente racional e nada racista.

Outra coisa que não é racista é apontar que, dado existirem diferenças externas entre as raças, podem existir diferenças internas, fisiológicas e neurológicas - há, inclusive, remédios com efeitos diferentes em brancos e negros. E portanto também não é racista supor diferenças de habilidades entre as raças, ou seja, afirmar que uma raça é, em média, mais apta para a matemática, outra é mais criativa, outra é mais inteligente (ou é melhor em um tipo de inteligência), outra melhor em certos esportes etc.

Notar diferenças de comportamento entre populações de diferentes raças não é racismo. Logo, reagir de acordo também não o é. Assim, se 90% dos crimes fossem cometidos por loiros, e estes representassem 2% da população total, faria sentido que um comerciante, se quisesse, proibisse a entrada de loiros em seu estabelecimento. Na mesma nota da discriminação, achar pessoas de uma raça em geral mais bonitas, ou até se dar melhor com gente dessa ou daquela raça ou etnia, também não implica racismo. Os gostos e os jeitos são diferentes; nada de mau aí.

Tudo o que está listado acima pode ser efeito do racismo, mas não necessariamente o é. E o que é racismo? A melhor definição, na minha opinião, é ódio racial. Considerar ou tratar membros de outras raças como seres inferiores, sub-humanos; deixar que a opinião que se tem sobre a raça prevaleça sobre o conhecimento do indivíduo: “Se ele é da raça X, então tem que se comportar da forma Y”, o que efetivamente nega que o indivíduo em questão tenha livre arbítrio.

O fato de negros serem mais pobres que brancos não prova, de si mesmo, a existência de racismo. Um milhão de variáveis além de “os brancos odeiam os negros” podem explicar essa diferença: desigualdade educacional, culturas mais ou menos propícias à geração de riqueza etc. Mas a moda é ver racismo em tudo. Se não encontramos racismo aberto, então ele é mascarado e hipócrita, “e por isso mesmo muito mais perigoso”. Na verdade o mesmo vale para todos os preconceitos: machismo, discriminação religiosa, homofobia etc. É confortável colocar-se na posição de vítima sofredora ou de acusador indignado. Nossa sociedade estimula essas práticas, conferindo-lhes a aura falsa de superioridade moral. Então cada um tenta mostrar que sofre mais que os outros, encaixando-se em alguma definição de vítima para conseguir a sua migalha de condescendência. São vítimas apenas de si mesmos.

quinta-feira, julho 15, 2010

Eleições Presidenciais ou "Dá pra tomar uma Kaiser antes?"

Já disse por aqui que gosto das eleições. Há um sentimento de esperança no ar. Claro que é ilusório; nada vai mudar. Nossa única escolha é a velocidade da corrida ao precipício. O sistema democrático impede qualquer mudança real, pois quem não agrada à maioria não ganha. Todos os candidatos são pela saúde, pela educação, pelo esporte, pelo emprego, pela cultura, pelos pescadores artesanais etc (leia-se: querem gastar mais nessas coisas). Onde estão os bons e velhos defensores da miséria, da fome, do desemprego e da poluição? Teriam meu voto.

O movimento pela diminuição dos impostos não importa absolutamente nada. Corte de impostos é uma bandeira popular, mas sem sua contra-partida necessária, o corte de gastos, que é muito impopular, é inofensivo: o dinheiro continuará a sair do nosso bolso. E corte de gastos não significa “aumentar a eficiência” (o que todos os candidatos obviamente prometem); significa, isso sim, demitir funcionários públicos em larga escala, acabar com a remuneração de cargos como vereador e deputado estadual e aceitar que não é papel do governo financiar a tudo e todos. Não há sequer um candidato com coragem para propor a eliminação de irrelevâncias como o ministério da cultura e do esporte. “O quê?? Tirar do esporte? E a Copa? E as Olímpiadas? E as nossas chances de ouro?” - Pois é, né? Será que quem diz isso já parou para pensar que, quem sabe, talvez, possivelmente, hipoteticamente, não seja obrigação do resto do povo pagar pelo ginásio e pelo treino dos atletas? Se nem aí vamos cortar, não percamos o sono com redução de impostos.

Na corrida presidencial atual, vejo-me particularmente sem opção. O meu voto natural seria para a direita reacionária ultra-liberal que é o PSDB. Mas toda vez que o Serra abre a boca para vomitar seu discurso desenvolvimentista aumenta meu desgosto. Do outro lado, no PT, aquela cujo nome não se deve mencionar afirma que “controle da inflação também é distribuição de renda”. Os lados mudaram, a moeda permanece. Um paradoxo desses só espanta a quem acredita que os candidatos estão aí para defender idéias, e não para saciar sua sede de poder cada vez mais descarada.

Enquanto isso, eis que surge Marina, uma candidata diferente, que quer um Brasil melhor e não está no mero jogo político dos demais. Sim, isso tudo envolto pela mesma vacuidade obrigatória do discurso padrão (que, na minha opinião, já deveria desqualificar o candidato). Os afeitos ao tédio podem ler as diretrizes do governo dela. Para quem tem mais o que fazer, uma citação aleatória:

f. Consolidação dos direitos coletivos e valorização da diversidade sociocultural e ambiental – Promover o desenvolvimento de políticas intersetoriais centradas nos territórios de forma a priorizar e apoiar de forma articulada os programas voltados às famílias e às escolas situadas em áreas de alta vulnerabilidade, combatendo as desigualdades regionais de forma a atender às demandas específicas de cada região.”

Agora imagine páginas e páginas disso. Por outro lado, pontos positivos: Marina vê com bons olhos a liberdade de escolas religiosas ensinarem o criacionismo (mesmo não sendo ela própria criacionista; nem eu, por sinal, mas longe de mim querer impor currículo) e é contra o aborto (embora o PV queira legalizá-lo). É uma pessoa boa, o que na política não é pouco. A parte mais bela da sua campanha é a fé na democracia. Não quer repetir o velho cabo-de-guerra entre situação e oposição, que trava todos os projetos importantes; não tem medo de admitir os pontos positivos das administrações passadas; não quer nem direita nem esquerda, mas à frente. Lindo.

Gosto da Marina da mesma forma que gosto das eleições, reconhecendo que meu sentimento se baseia numa ilusão. Pressupõe que a política seja capaz de resolver os problemas da humanidade. Com boa vontade, pessoas honestas num diálogo democrático chegarão às melhores leis e políticas para possibilitar uma boa vida aos cidadãos. Mas a experiência diz o contrário: quanto mais os políticos se metem em nossas vidas, pior elas ficam (ceteris paribus, sempre ceteris paribus).

A política não é a resposta. A fé que Marina tem na democracia é admirável se comparada ao cinismo maquiavélico de seus concorrentes, mas pode ser tão ou mais nociva que ele. Pois o corrupto competente sabe preservar a sociedade para não comprometer a estabilidade de seu poder. Já o idealista desastrado não hesita em destruir tudo que esteja no caminho dos seus “ideais”. Antes Luís XVI do que Robespierre! Verdade seja dita, Marina é aberta e disposta a ouvir - muito diferente, portanto, dos revolucionários franceses - mas mesmo assim seu ecologismo business-friendly e suas alusões a uma nova constituinte têm um potencial de desastre gigantesco.

Em quem votar, então? Não faço idéia. Como não estarei no Brasil, é uma escolha que não farei, mas conheço-me o bastante para saber que, mesmo odiando-o, votaria no Serra, e quem sabe na Marina no primeiro turno. As eleições passam e sigo guardando no peito a bela esperança de que um dia, num futuro indeterminado, a democracia, as eleições e toda a política sumam das nossas vidas.

segunda-feira, julho 12, 2010

Quem Causa a Causa Primeira?

A pergunta sempre aparece nas conversas do dia-a-dia. Alguém dá o argumento da causa primeira para provar que Deus existe e o outro retruca: “E quem causou Deus?”. Minha conclusão: o argumento foi ou mal entendido, ou mal apresentado.

Tudo o que existe precisa de uma causa. Portanto, para não se regredir ao infinito, é preciso uma causa primeira. Essa causa primeira é Deus. Convencidos? Eu não estou. Se tem uma coisa que esse argumento não prova é a existência de Deus. O ateu sagaz já percebeu: “Bom, se tudo precisa de uma causa, então Deus também precisa. E se nem tudo precisa de uma causa, por que o universo precisaria?” Vamos esclarecer melhor o ponto, pois nele escorregam muitos apologetas. Bem sei que nenhum ateu sairá da discussão convencido e rumo à igreja; mas o fortalecimento da base racional da fé tem sua importância nesse processo.

Ao argumento. A princípio, não se afirma que tudo precisa de uma causa; isso não é uma premissa. Analisando os seres do universo, como homens, cavalos e prótons, veremos que eles precisam de uma causa. O que os caracteriza? É o fato de que sua essência é diferente de sua existência. Termos estranhos, que precisam ser explicados e justificados para que saiam do campo dos contos de fada e entrem na filosofia. Dizer que a essência de um cavalo difere de sua existência significa dizer que mesmo que se conheça perfeitamente o que o cavalo é (digamos, a descrição perfeita de seu DNA com todas as possíveis variações), nem por isso saber-se-á se existe ou não algum cavalo no mundo. Pode ser que todos tenham morrido; pode ser que nunca tenha havido cavalo nenhum. Como descobrir se os cavalos existem? Não é pela mera análise de suas características. Temos que sair pelo mundo à procura deles. Sua existência (o fato deles existirem) não é dedutível de sua essência (o que eles são, a descrição de suas qualidades). Assim como penso em cavalo, posso pensar em unicórnio. Um existe e o outro não. Mas não há nada nas idéias de um e de outro que me diga isso.

Todos os seres do universo são que nem o cavalo e o unicórnio. Suas existências não estão dadas por suas essências. Chamamos a esses seres de contingentes: podem existir ou não existir. Logo, o universo, que é o conjunto, a complexa malha causal que une todos os seres, também é contingente. Ele poderia ser diferente do que é, e mais, poderia simplesmente nunca ter existido.

Todo ser contingente precisa de outros seres que o gerem e preservem. O cavalinho precisa da égua e do garanhão para nascer, e do feno para comer. O universo também. Se ele poderia tanto existir como não existir, é preciso um fator externo a ele que faça com que ele exista. Ou esse ser que causa o universo também é tal que sua existência seja distinta de sua essência, o que não resolve nosso problema (pois ele também precisa de uma causa), e podemos simplesmente classificá-lo como parte do universo; ou esse ser é de tipo diferente: ele é tal que sua existência está contida em sua essência. Se o conhecêssemos perfeitamente, concluiríamos sem sombra de dúvida, dedutivamente, que ele existe. Não é um mero ser contingente, e sim um ser necessário; um ser tal que seria impossível que ele não exista, pois isso contrariaria sua própria essência.

Não conhecemos diretamente o ser necessário para concluir sua existência a partir de sua essência. Mas dado que existem seres contingentes, o necessário tem que estar na origem do processo, se não ele nunca teria um motivo para começar (pois o motivo precisaria de um motivo e assim por diante). Este é o núcleo do argumento, e é o que deve ser discutido; notem que Deus nem deu as caras.

O último passo, que é o que gera objeções imerecidas, é dizer: “este ser é Deus”. Estamos só dando um nome ao ser necessário. Poderia ser “Javé”, “Alá”, “Rama”, “Google”. O problema verdadeiro reside no passo anterior, que é dizer que sem o ser necessário não poderia haver seres contingentes, afirmação com a qual concordo. Negá-la seria dizer que do nada absoluto pode aparecer um universo, o que basicamente obriga-nos a aceitar que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, e que nosso raciocínio, com base nas idéias de causa e efeito, e os princípios básicos da lógica que guia nossos pensamentos, não têm relação nenhuma com a realidade. E nesse caso, não só a prova do ser necessário seria falha, como mesmo toda a ciência e todos os nossos pensamentos seriam incapazes de nos comunicar qualquer coisa de verdadeiro.

Chamar o ser de "Deus" só aponta para o fato de que esse necessário concorda em gênero, número e grau com o que os teístas dizem a respeito do Deus no qual acreditam: ele é a causa de tudo, nada existe independentemente dele e é impossível que ele deixe de existir. O filósofo e o crente estão falando da mesma coisa; esse reconhecimento é, em geral, ponto pacífico; a questão é saber se o argumento que o filósofo está fazendo procede.

terça-feira, julho 06, 2010

Meditações Futebolísticas

Um dia negro foi a sexta passada nesta maldita Jabulândia. Queria ver bandeiras a meio-pau, roupas pretas e luto público; revolta popular e banho de sangue cairiam bem. Os jogadores que voltam para casa são desertores vergonhosos, culpados de alta traição; já para o pelotão! Minha geração nunca tinha passado por duas derrotas seguidas na Copa; é desumano. Naqueles últimos minutos... ah, os últimos minutos! No peito, o desejo de estourar uma bomba e estragar o dia de alguém. Calma. Respire fundo e conte até dez. Quase que a alma vai embora junto do hexa.

O que tem o futebol que mexe assim com os ânimos? Há o gosto universal pela competição e pela adesão a um grupo, claro. Mas por que o futebol e não outro esporte? Algumas características o distinguem. É um jogo de times (representam algo maior do que um indivíduo, como um tenista, que só muito secundariamente representa seu país), dinâmico, barato de jogar, estratégico mas com espaço para o talento individual. Acho que o aspecto essencial, contudo, é que pontuar é difícil. Um gol no futebol vale muito mais que uma cesta no basquete ou um ponto no vôlei. Nesses, a não ser que seja no momento da decisão, pouco importa uma pontuada, e por isso o jogo é menos empolgante. No futebol, há muito menos pontos, mas a possibilidade do gol sempre existe, o que cria uma tensão permanente. Um gol muda tudo, e por isso a explosão de alegria (ou ódio, ou frustração) quando acontece. Uma consequência disso é a possibilidade real da zebra: pequenos deslizes aqui ou ali dão a vitória ao time mais fraco; um gol na hora errada desmoraliza uma equipe forte e bota tudo a perder. A garra e a raça importam tanto quanto o talento, a estratégia e a técnica. O único que pode concorrer com o futebol em matéria de espetáculo público é o futebol americano - a tática amarradíssima e o mérito individual extraordinário na corrida rumo ao triunfo que é o touchdown; um jogo de gigantes. Mas o alto custo é um grande obstáculo a sua universalização.

Só consigo torcer de verdade na Copa. Cada seleção representa uma história, uma cultura, um povo, uma raça. Cada povo coloca ali os seus melhores para um duelo altivo, orgulhoso, uma verdadeira guerra patriótica onde nada menos que a honra de nações inteiras está em jogo. Claro que essa bela ilusão só perdura enquanto olhamos de longe. Chegando perto, que diferença! Quem são os franceses da França? E os alemães da Alemanha? E, mais grave, que tipo de gente compõe essa aristocracia esportiva? Olhem a cara de um Rooney e digam se ele aparenta qualquer traço de civilidade. De hedonismo troglodita talvez? A gota d’água é a glorificação das imagens dos craques nas campanhas publicitárias, na FIFA e na ONU. Beckham, Zidane, Ronaldo, astros Nike e Pepsi, modelos da juventude, nossos heróis; pose, atitude, aparência, mediocridade; a essência do marketing. A maioria deles nem sequer leva o país a sério, dando mais valor aos contratos com os times comerciais. Se Kaká se quebra na Copa, adeus Real Madrid.

O que me traz ao tema insondável da relação do torcedor com seu time, que não se associa a nenhuma população ou a o quer que seja. O que leva um paulistano a ser são-paulino, corintiano ou palmeirense? Os jogadores de cada time não obedecem a nenhum critério de origem; não há divisão por bairro, por etnia, por profissão, por nada. No passado, o Palmeiras era um time da imigração italiana; fazia todo sentido, então, que o descendente de italianos fosse palmeirense. Hoje ninguém representa nada. Quem ontem era de um time hoje é de outro. São só camisetas coloridas e publicidade. Simples assim. Quando assisto a um jogo de times, descubro para quem torço só durante a partida, o que pode inclusive mudar ao longo do jogo, tão subjetivo e aleatório é o torcer. É como escolher uma marca, Coca ou Pepsi, sem que haja refrigerante a ser provado. Prefiro Coca porque acho o gosto melhor; quem torce prefere seu time porque... o prefere; porque os pais torcem, porque os amigos torcem, porque ganhou um campeonato; nenhum motivo diretamente ligado ao torcedor. Devo admitir: sou santista - mas santista não-praticante! Se ouço dizer que o Santos vai bem, meu coração é tomado de uma leve alegria, que beira a indiferença. Há quem chore, grite, urre de alegria, brigue, mate e morra de frustração. Ou o homem é um bicho irremediavelmente esquizofrênico, ou há aí uma carência por algo maior, mais real, pelo qual sonhar, matar e morrer.