terça-feira, novembro 23, 2010

Frei Betto e S. Teresa

Neste mundo decaído, as idéias nunca são encontradas em forma pura, mas sempre misturadas ao seu contrário. Não há mal sem alguma mistura de bem, ou bem sem alguma mistura de mal. O que poderia ilustrar melhor esse princípio do que a recente edição do Livro da Vida de S. Teresa D’Ávila pela Penguin/Companhia, com prefácio de Frei Betto? Eu estranharia menos ver um prefácio de Richard Dawkins. A junção de duas figuras na minha mente tão díspares praticamente me obrigou a comprar o livro.

Frei Betto tem, descubro agora, uma longa história com S. Teresa; já disse querer se casar com ela; depois propôs a celebração de um novo homem que seria o rebento das núpcias dela com Che Guevara. Enfim, o presente prefácio, intitulado “A Sedução de Teresa”, tem história.

Curiosamente, ele também é uma mistura de bem e mal, o que mostra que a realidade é mais complexa que meu preconceito. Nunca poderia imaginar um teólogo da libertação, petista fanático, dizendo algo como “Em suma, Teresa me ensinou que Deus não se exilou no Céu; ao contrário, habita o coração humano.” Não existe nenhuma descoberta que nos afaste mais da tentação do socialismo do que essa; pois se o homem tem uma finalidade transcendente ao seu alcance seja quais forem suas condições externas, então a luta pelo socialismo fica, no mínimo, relativizada.

Há outras boas citações no curto prefácio, mas nada muito fora do comum. É quando ele se mete a falar de história e a interpretá-la que sua visão de mundo definitivamente imanente (ou seja, disposta a direcionar mesmo o transcendente para fins terrenos) se faz sentir. Para ele, S. Teresa foi uma “feminista avant-la-lettre” que abriu espaço para mulheres numa igreja até então medieval e machista. Por pouco não foi condenada pela Inquisição, enquanto outras visionárias menos sortudas como Madalena da Cruz foram. O que ele não conta é que essa tal Madalena, que era considerada santa e milagreira por muitos em sua época (gente de pouca monta, como a imperatriz Isabel, esposa de Carlos V), ao sofrer uma doença que parecia que lhe tiraria a vida, confessou voluntariamente que seus êxtases e milagres eram fruto de um pacto que fizera com o demônio. Resultado: a Inquisição à condenou à... você ia dizer fogueira? É o que Frei Betto leva a entender, tendo citado a fogueira poucas linhas antes; mas o fato é que a Irmã Madalena foi condenada, três anos depois dessa confissão, à reclusão em um convento, onde morreu em paz anos mais tarde.

No todo, a situação da mulher na Idade Média tinha suas injustiças: só podiam se tornar proprietárias se o marido morresse, por exemplo; e o machismo cultural sem dúvida existia. Lamentavelmente, como as universidades eram só para clérigos, mulheres não cursavam (havia exceções, contudo). Além disso, as guildas (ancestrais de nossos sindicatos, o que dá uma idéia de sua atividade) também costumavam proibir a entrada de mulheres. Ao mesmo tempo, tinham uma liberdade talvez até maior do que teriam na Idade Moderna. Havia mulheres empreendedoras, havia mulheres com autoridade sobre homens (mesmo em instituições eclesiásticas), autoras mulheres (por exemplo Christine de Pizan, que é provavelmente a primeira feminista do Ocidente - escreveu o clássico “A Cidade das Mulheres” como forma de protesto contra as tiradas machistas de Jean de Meun, um dos autores mais populares da época), místicas mulheres. S. Catarina de Siena dava broncas abertas no papa. A freira Hildegard de Bingen foi das mais importantes compositoras musicais do século XII; além disso escreveu visões místicas e tratados de medicina. A vida era mais simples e, digamos, mais “brutal” na Idade Média; para o bem e para o mal. A violência era maior, mas também o eram a doçura espontânea e a liberdade. A mulher era menos delicada e isolada da vida corrente; vide a esposa de Bath nas Canterbury Tales. Existiam normas mas os casos anômalos também não eram raros; os grandes Estados nacionais, que futuramente imporiam uniformidade em tudo (desde línguas até moedas passando pelos costumes) ainda estavam se consolidando. As próprias caçadas às bruxas, que vitimaram muitas mulheres, são fruto da Idade Moderna. O consenso medieval entre as pessoas educadas era de que bruxaria simplesmente não existia; crer em bruxaria era superstição.

S. Teresa teria, além do feminismo, inaugurado um novo jeito de se relacionar com Deus: finda a frieza da escolástica, com suas categorias “pagãs” (agora Frei Betto considera isso algo ruim?), se iniciaria uma relação íntima com Deus. Ele por acaso ignora a integral continuidade de S. Teresa e os místicos medievais? Ricardo de S. Vítor, Boaventura, Walter Hilton, João de Ruysbroeck, Richard Rolle, Henrique Suso, enfim, uma bela lista que inclui também mulheres como Juliana de Norwich (que chamava a Deus de mãe), S. Brígida da Suécia, S. Catarina de Siena, Catarina de Gênova; tudo isso só de medievais, para não entrarmos na era dos Padres da Igreja. S. Teresa desenvolveu e sistematizou a realidade mística que já era vivida e conhecida. A Idade Média não “fechou” a religião na teologia especulativa; ela criou a teologia, é verdade: ousou usar a razão para investigar e conhecer mais a fundo os conteúdos da fé; mas isso de forma alguma limitava ou impedia a mística. Pelo contrário: na Idade Média, ao contrário do que aconteceria na modernidade, a mística ainda era vista como algo próximo do ser humano. Tanto que temos inclusive leigos com experiências místicas (Margery Kempe, autora da primeira autobiografia em inglês, é um bom exemplo). Com a modernidade, cada vez mais a mística foi vista como uma exceção distante da experiência comum, acessível a uns poucos escolhidos por Deus e perigosa para todo o resto; preconceito que apenas no século XX começou a ser verdadeiramente superado (com obras como, por exemplo, “Perfeição Cristã e Contemplação” do Pe. Garrigou-Lagrange).

Teologia e mística são coisas bem diferentes, de fato, mas uma não exclui a outra (S. Boaventura é um exemplo de quem escreveu sobre ambas). Mesmo um escolástico cuja obra é principalmente especulativa, como S. Tomás de Aquino, era alguém com bastante vivência mística, de tal maneira que chegou a afirmar que, perto do que essa via lhe tinha revelado, sua obra teológica e filosófica, um dos maiores patrimônios intelectuais do Ocidente, era “como palha”. E mais, místicas posteriores a ele como S. Catarina de Siena, usavam a teologia S. Tomás em suas obras místicas, evidência do rico intercâmbio entre essas duas áreas tão distintas. A própria S. Teresa partia de uma base teológica muito influenciada por S. Tomás. O exagero da escolástica, que desaguou num academicismo árido, foi sem dúvida um equívoco da Idade Média tardia, mas não era de forma alguma o que se propunha como ideal pela Igreja. Muito pelo contrário: eram comuns as advertências quanto aos perigos da curiosidade acadêmica esvaziada de sentido espiritual; em termos mais modernos, a cultura e a erudição por si só não salvam e muito menos santificam.

A obra de S. Teresa é intensamente pessoal, como bem aponta Frei Betto. Nela há uma preocupação em retratar a experiência pessoal e as particularidades de seu caso. A ausência dessa pessoalidade torna muito do que autores mais antigos escreviam um pouco frustrante para quem, nos dias de hoje, procura neles uma alma com quem se identificar (claro que também não é algo totalmente ausente da mentalidade antiga e medieval; é só pensar num Agostinho, num Abelardo ou ainda em autores seculares como Geraldo de Gales, que imbuem suas narrativas históricas e observações sociais com diversas observações pessoais). Mas isso não a torna moderna e antropocêntrica, em oposição a uma Idade Média teocêntrica.

A preocupação máxima, o valor maior de S. Teresa, é Deus; a grande marca para ela de que o indivíduo se aproxima da perfeição é parar de pensar em si mesmo - parar de querer que os outros falem bem dele - o que é óbvio - mas também deixar de querer que os outros não falem bem dele; enfim, esquecer-se de si mesmo e focar-se em Deus que é de onde vem todo o bem. A mística de S. Teresa, nesse sentido, finca o pé no terreno propriamente cristão, voltado para o Criador mas sem perder a identidade da criatura. O grande perigo da mística (na visão cristã) é que ela pode se dirigir, se não embasada numa formação teológica e doutrinal (novamente, o intercâmbio entre especulação e vivência), à dissolução da pessoa no Todo, o que acaba na constatação de que a existência (e portanto a multiplicidade e a individualidade) é má ou ilusória, que o Criador pessoal é mau e que portanto a verdadeira salvação é unir-se ao Deus escondido e impessoal anterior à divisão ser e não-ser; o homem é como uma gota que se mistura ao oceano e portanto deixa de ser gota. Místicos importantes como Mestre Eckhart foram condenados por causa disso (se a condenação foi justa ou se ele apenas usou a linguagem de forma mais livre para se referir ao inefável não é algo sobre o qual eu esteja minimamente capacitado para opinar). Para o Cristianismo, a pessoa (seja divina ou humana) tem um estatuto de realidade primária diferente das outras grandes tradições espirituais, nas quais ela é mais uma casca de uma realidade una e impessoal que a tudo engole. S. Teresa é, assim como a tradição em que ela se encaixa, teocêntrica; mas isso não quer dizer que ela negue ou anule o homem de sua perspectiva.

Frei Betto, enfim, parece subordinar a sabedoria de S. Teresa a lutas históricas (pelo feminismo, pelo “antropocentrismo”, contra uma igreja hierárquica e uma teologia abstrata) que ela supostamente ilustra. Depois dela, Deus deixaria de ser “um conceito” e viraria “uma experiência”. Só que tanto para os teólogos medievais quanto para a mística moderna ele não era (e não é) nem um nem outro.

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