quinta-feira, fevereiro 28, 2008

O Homem é Necessariamente Egoísta?

Será possível agir com altruísmo? Ou toda ação humana é necessariamente egoísta? Numa faculdade de economia como a minha, muitos saem convencidos não apenas de que o homem é egoísta, mas de que não há como ser de outra maneira. Dado o caráter moralmente destrutivo dessa opinião, é minha intenção aqui questioná-la.

Antes de iniciar a discussão, é necessário ter claro qual o ponto em debate. Muitos afirmam que o homem é, em geral, egoísta; que, na grande maioria das vezes, age pensando principalmente em si mesmo, e só em raros casos especiais visa o bem dos outros. Não discutirei essa tese. O ponto em questão é outro, que vai muito mais longe: toda ação humana é egoísta e é impossível sequer pensar em uma que não o seja. O altruísmo não é apenas uma raridade, mas uma impossibilidade absoluta. Essa posição conta com dois argumentos principais.

O primeiro é assim: toda ação visa uma finalidade, ou seja, um valor, um interesse do agente. Esse interesse pode ser comprar um carro ou ajudar um parente, não importa; em ambos os casos, trata-se de um interesse. O egoísta é aquele que age para satisfazer seus interesses. Portanto, toda ação humana, sem exceção, é egoísta.

Não há do que se discordar na lógica do argumento. De fato, toda ação visa um interesse. Mesmo o homem sob a coerção de uma arma age tendo em vista seus interesses (seja escolhendo se render ao agressor ou mantendo-se firme e aceitando a morte). Nesse sentido, toda ação é egoísta. O problema é que esse sentido é radicalmente diferente do usual.

Em geral, o termo “egoísta” caracteriza aquela pessoa cujos interesses estejam todos centrados nela mesma, com pouca ou nenhuma consideração aos outros. O que o argumento chama de “egoísmo”, contudo, é a mera existência de interesses. Quando chamamos alguém de egoísta, não queremos dizer que age de acordo com seus interesses ou valores (isso ocorre sempre, necessariamente), mas sim que seus interesses voltam-se apenas para si mesmo, à exclusão das outras pessoas. Já o altruísta é aquele cujos interesses incluem, de forma especial, o bem dos outros. O “egoísmo” que o argumento prova existir não tem nenhuma relação com o desvio ético ao qual costumamos dar esse nome.

O segundo argumento não muda o sentido dos termos; ele aceita o sentido usual de “egoísmo”, e faz uma afirmação psicológica: sim, há pessoas que agem tendo em vista o bem dos outros; por exemplo, alguém que visite um idoso num asilo. Ao fazer isso, ela se sente bem, tem uma espécie de prazer. A ação dela, portanto, tem como finalidade o prazer que ela sente, e é, assim, egoísta; ela ajuda os outros apenas porque isso lhe dá prazer. E não tem como ser diferente: mesmo quando fazemos algo que nos causa dor física (por exemplo, pular na frente de um carro para salvar uma menina), sentimos algum tipo de recompensa psicológica por realizar com sucesso aquilo visávamos.

É verdade que, se atingimos uma meta, sentimos algum tipo de prazer (se “prazer” for definido da forma mais abrangente possível, incluindo até a mera convicção de que se agiu bem). Mas é um erro afirmar que o prazer seja a causa da ação; erro que, como mostrarei, torna essa mesma ação ininteligível.

Muitas ações poderiam dar prazer. Algumas pessoas sentem-se bem ao ajudar um estranho; outras, ao ludibriar um estranho. O prazer não explica nenhuma das duas, pois ele poderia advir de ambas. É preciso algum outro elemento, que não o prazer, para explicar porque uma pessoa faz uma e não a outra. Assim, a não ser nos casos em que o prazer se siga independentemente das crenças de quem age (como é o caso de comer, beber, aquecer-se, fazer sexo, etc), não é possível apontar o prazer como finalidade da ação.

Quem ajuda os pobres não o faz porque isso lhe dá prazer. A verdade é o exato oposto: é apenas porque ele valoriza o bem das pessoas ao seu redor que ele sente prazer ao ajudá-las. Se deixasse de valorizar o bem dos outros, essa ação deixaria de ser prazerosa. O prazer não constitui a finalidade da ação; ele depende e deriva dela.

Isso não quer dizer que toda ação externamente caridosa seja verdadeiramente altruísta. Bem sabemos que alguém que doa dinheiro à caridade pode estar mais preocupado em melhorar sua imagem do que em ajudar os necessitados. Também nesse caso, o prazer de se realizar a ação com sucesso não é sua finalidade (a finalidade é a auto-imagem do doador), e sim uma conseqüência de se tê-la alcançado. O prazer depende dos valores do agente, e não vice-versa, e são esses valores que determinam se o agente é egoísta ou altruísta.

Assim, ambos os argumentos mostram-se deficientes. O primeiro, apesar de correto, usa o termo “egoísta” num sentido totalmente diferente do sentido usual, de caráter ético, que atribuímos a ele. O segundo inverte, erroneamente, a relação entre o prazer e a finalidade da ação. Isso não prova que o homem seja altruísta; é bem verdade que, muitas vezes, ele não é. O que se prova é que, ainda que raro, o altruísmo é possível.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Impressões da Europa

A Europa não vai bem. Muitos elogios se tecem ao “modelo europeu”. Mas também temos que falar do podre. Não tenho em mente modelos políticos e econômicos, embora creia que eles expliquem parte do problema apontado. Os incentivos por eles criados exacerbam as deficiências espirituais e morais da sociedade, que são a principal causa da crise atual e o foco do meu texto.

Um teólogo inglês resumiu bem a cultura atual de seu país: supermercados e esportes. O mesmo poderia ser dito sobre outras nações. Tem-se a impressão de que as pessoas não têm uma razão maior de viver. Jovens e velhos, todos vivem em função do prazer (exceto os muito jovens e os muito velhos; esses vivem cada vez menos). As aspirações não ultrapassam baladas e viagens. O interesse não vai além da última fofoca sobre o Beckham. Poucas pessoas querem filhos, e as famílias não duram. Muitas crianças e adolescentes já têm como dado que se casarão mais de uma vez.

Essa vida não leva o homem à felicidade. Os níveis de alcoolismo entre jovens são alarmantes, e os adultos estão afundados até o pescoço em dívidas. Depressão, distúrbios psicológicos e suicídio não são incomuns. Muitos percebem que há algo errado, mas não vão à raiz do problema: o desejo de lutar por algo melhor pára no protesto político ou no efeito estufa.

Claro, isso é um recorte muito parcial. Nenhuma pessoa é tão simples ou superficial assim. As aspirações humanas nunca são totalmente apagadas; amizades continuam a ser feitas, encontros felizes acontecem, planos bons ainda vingam. Quem estiver disposto encontra lá os meios para obter a melhor formação espiritual e cultural do mundo. Sem falar que são incontáveis as virtudes que os europeus poderiam nos ensinar: o trabalho realizado com perfeição, a honestidade, o senso de dever cívico. Mas mesmo isso vai se perdendo aos poucos. Escândalos políticos, a nós tão familiares, estão deixando de ser raridade por lá.

Os europeus perderam o sentido de transcendência; perderam sua identidade cristã. Quiseram construir um paraíso na terra, pensando apenas no homem e na vida presente. Mas se esqueceram de que o homem está profundamente desregulado. Que, sem algum auxílio externo, sua tendência é piorar. Pensaram ser possível manter o patrimônio cultural de séculos desprezando sua base espiritual. Enganaram-se.

No século XVIII, por exemplo, havia muitos ateus e deístas; alguns deles geniais, com profunda capacidade de entender a alma humana, e senso estético muito refinado. Contudo, ao se basear em suas idéias, a sociedade tornou-se incapaz de produzir homens da mesma qualidade. Do primado da razão, da sociedade de homens livres e educados, passou-se ao primado da ciência e da técnica e à sociedade planejada nos moldes da física. O que falar dos ateus de hoje, então? A própria distinção entre verdadeiro e falso, bem e mal, belo e feio, não é aceita. Nessas condições, que tipo de aspiração é possível?

Não é questão de culpar ateus ou qualquer outro grupo. Eles são apenas um sintoma radicalizado (e, ao mesmo tempo, parte da causa) de algo que perpassa toda a sociedade. Ao abandonar os valores de base de nossa civilização em prol de um sonho ilusório, não só deixamos de lado nossa real finalidade como não alcançamos este novo sonho e, para completar, tolhemos nossa própria capacidade de sonhar. A vida vai se tornando cada vez mais medíocre, e a concepção de um mundo melhor cada vez mais mesquinha e pequena.

É essa a impressão que a Europa me passa hoje em dia. Um povo que procura desesperadamente a felicidade onde ela não pode ser encontrada, e ao fazer isso mina as bases de sua própria civilização. Os prédios são magníficos, os museus inestimáveis, as bibliotecas verdadeiros universos; mas as pessoas que lá moram seriam incapazes de produzir, hoje em dia, algo semelhante.

Não sou pessimista. Acho que o pior já passou, e sinais de mudança já podem ser vistos. Mas o caminho é longo e árduo. Agora já está mais claro que há escolhas a serem feitas, lados a se tomar. Isso significará mais conflitos, mais debates e menos consenso, o que é bom. Pois ou os europeus acordam de seus devaneios, ou se extinguem; e há quem esteja pronto para tomar seu lugar. O arcebispo anglicano de Canterbury já considera tribunais para aplicar a lei sharia algo inescapável; um cartoon ou um vídeo são o bastante para provocar mortes; o sentimento de revolta e frustração nas grandes periferias é profundo e incontrolável. A Europa passa por uma fase decisiva de sua história, que poderá ser seu fim ou um novo começo.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

A Importância do Empreendedor

Para não deixar o Tavista às moscas, farei uma pequena trapaça. Este texto foi escrito para o jornal dos estudantes do Ibmec-SP, e será publicado na semana que vem. Prometo que, em breve, o blog receberá textos exclusivos.

A teoria econômica atual foca-se no ponto de equilíbrio; o ponto do qual, uma vez atingido, o mercado não se desvia. Há também modelos que levam em conta o tempo, e representam a transição de um estado de desequilíbrio para o de equilíbrio. Mas essa representação é puramente aritmética: consiste na mudança numérica de variáveis até que se chegue a uma igualdade. Os modelos não lidam, e nem pretendem lidar, com o processo real que leva de um estado a outro.

No mercado não existem curvas de indiferença e não há expressões matemáticas a serem igualadas. A economia sempre caminha para um ponto de equilíbrio, é verdade. Se nenhuma mudança ocorresse nas condições do mercado, a humanidade chegaria eventualmente a um ponto no qual, dadas as condições atuais, nenhuma alteração na produção de bens e serviços seria possível. No mundo real, porém, nada é mais certo que a mudança. Assim, a economia está sempre se dirigindo a um ponto de equilíbrio sem nunca o alcançar, pois ele muda de lugar a cada instante. Fixar-se nos modelos convencionais é perder isso de vista, e esquecer do agente responsável por ajustar constantemente a estrutura de produção às novas condições: o empreendedor.

Apenas dois agentes contribuem para o crescimento econômico: o poupador e o empreendedor. A importância da poupança, da acumulação de capital, é amplamente reconhecida pela teoria econômica; já a importância do empreendedor, que descobre e testa novos jeitos de se utilizar o capital acumulado, tem sido negligenciada.

Pensa-se na formação e administração de empresas como um processo burocrático. Os produtos a serem vendidos já estão dados pelo mercado, assim como o método de produção e os preços envolvidos; é só fazer as contas direito para receber o lucro normal do negócio; paciência, trabalho e bom senso são tudo de que se precisa.

A realidade é outra: as técnicas de contabilidade e cálculo monetário são indispensáveis, mas não bastam. A mera repetição do que os outros fazem é a receita do fracasso. Nada está dado ao empreendedor: preços e produtos mudam, assim como os desejos dos consumidores; incontáveis são as técnicas de produção e novas são elaboradas todos os dias. Sua tarefa não é fácil: prever os desejos futuros mais importantes dos consumidores e mobilizar os recursos necessários para satisfazê-los da forma mais eficiente possível. Se conseguir, terá lucro. Se falhar, prejuízo.

O lucro do empreendedor no livre mercado sinaliza que o atual projeto satisfaz bem aos desejos da população. Com insumos de valor X, ele foi capaz de produzir bens com valor total superior a X. Conforme mais competidores comecem a imitá-lo e a comprar esses mesmos insumos, o valor deles aumentará, e o preço dos produtos finais diminuirá, até que o lucro naquela atividade caia para zero. Assim, não existe lucro “normal”. Todo lucro auferido bota em funcionamento um processo de correção dos preços que tende a eliminá-lo. O empreendedor, diferentemente dos trabalhadores assalariados e dos donos de capital, não tem sua remuneração assegurada.

Temos como dado que, se tivermos fome, poderemos ir ao supermercado ou a algum restaurante; que há jornais na banca e livros na livraria; que há filmes, peças e shows em cartaz. Nada disso cai do céu. Se todas essas e incontáveis outras facilidades da vida estão à nossa disposição, é apenas porque algum empreendedor verificou a existência de desejos humanos e mobilizou recursos para satisfazê-los. Todo novo produto ou serviço é mais uma tentativa de satisfazer melhor, de forma mais eficiente, aos nossos muitos e variáveis desejos.

No mundo do equilíbrio, sem mudanças e sem novas oportunidades de lucro, não há espaço para empreendedores. Mas no mundo real sempre é possível melhorar, e mudanças ocorrem a todo momento. Ademais, não há equações e curvas para ajustar-nos às novas condições. Dependemos do trabalho incessante do empreendedor em descobrir e testar novas maneiras de atender às nossas necessidades. É colocando o seu próprio bem-estar em risco que ele contribui para o nosso e, se tem sucesso, obtém de nós o lucro, a recompensa de seus esforços.