quinta-feira, agosto 05, 2010

A Morte nas Esferas Pública e Privada

Não sabemos lidar com a morte. Com menos gente morrendo “fora de hora” (o que é bom), pensamos menos nela. Ao mesmo tempo, a mídia e a Internet confundem as esferas pública e privada. Antes, saber que alguém distante morreu era só mais um fato abstrato; agora temos que ver a mãe chorando na TV e os vídeos-tributo que os amigos publicaram no Youtube. Sentimentos privados vêm a público, e todos se sentem obrigados a partilhar do sofrimento de quem era próximo. Pior: confundimos isso com respeito.

“Que homem bom: ele sente profundamente a morte de todos os seres humanos” - isso pode bem ser verdade, mas as poucas pessoas que de fato sentem assim só se encaixam em dois tipos de vida: se acreditam numa transcendência, vida dedicada à oração ou ritos propiciatórios para os que se foram. Se atéias, vida melancólica contemplando a tragédia da humanidade destinada aos vermes. Claro, a imensa maioria não está nem aí para a morte de desconhecidos, caso contrário viveríamos em luto constante, pois tem sempre alguém morrendo.

Ficamos tristes quando morre alguém próximo. Quanto mais conhecemos sua vida, mas tocados ficaremos em saber de seu fim. Mas se desconheço o morto e não tenho relação com seus entes próximos, por que manter a pose e condenar como “desrespeitoso” quem não entre no jogo? Quem nunca riu com o Darwin Awards que atire a primeira pedra.

A morte de Lincoln não me toca. Não me sinto constrangido a me fazer de triste ou pisar em ovos para falar dele. O mesmo vale para quem morre no presente e é distante de mim. Isso não é falta de respeito nem com quem faleceu e nem com seus próximos, dos quais eu não sou próximo. Se conhecesse algum amigo seu, é claro que, nessa esfera privada, comportar-me-ia respeitosamente de acordo com o sofrimento alheio. Mas na esfera pública nada disso está em jogo, ou pelo menos não deveria estar.

Quando morre um intelectual, por pior que tenha sido, lá vêm os editoriais redimi-lo. Elegias não tardam a vir das fontes mais improváveis. Isso é especialmente verdade, na minha experiência, em círculos cristãos, que confundem a caridade devida aos mortos com falar uma coisa boa de quem morreu, mesmo que tenha sido crápula. Que me importa se Saramago morreu? Vou agora salvar sua alma? Tarde demais. Posso ajudá-lo de verdade rezando por ele, o que será virtuoso se feito privadamente. Espero que tenha ido para o céu e mantenho inalteradas minhas opiniões sobre sua obra e vida pública. No círculo dos entes queridos, ali sim é o lugar de lembrar o bem que ele fez; na esfera pública, nada de obituários chorosos de quem sempre o lamentou em vida. Quando morrer Fidel, virão elegias cristãs e conservadoras sobre “boas intenções infelizmente equivocadas” ou sobre a “realização imperfeita de um ideal”? Bota imperfeito nisso!

A morte é o maior drama da existência. Mas nem todas as mortes nos tocam. Uma coisa é a esfera íntima, e o respeito aos sentimentos de quem era próximo; outra coisa é a esfera pública, que não precisa e nem se beneficia de manifestações de tristeza e amor tardio. Alardear publicamente o comportamento apropriado à esfera privada não é virtude, é vaidade.

5 comentários:

Wagner disse...

Joel, não consigo enviar um email. Por isso, perdoe-me por esse 'off-topic: você tem algum texto seu (ou algum que indique) sobre o neo-ateísmo?

Amigo disse...

Joel, acho que te faria muito bem ser fundamentado na Palavra de Deus. Lê-la diariamente, pedindo revelação ao Espírito Santo, com o devido temor a Deus - "O temor de Deus é o princípio (gerador) da sabedoria". Noto sempre uma falta de alicerce por trás do que escreve, embora tenha lido sua auto-descrição. Não me interprete mal, só queria tirar um cisco de seu olho ;-)

Joel Pinheiro disse...

Não escrevi nenhum sobre o tema, não, Wagner; mas é uma boa idéia. Alguns da categoria "religião" se aproximam tematicamente de certas posições neo-atéias.

"Amigo": algo concreto a dizer? Uma crítica só é realmente construtiva, benéfica, quando é específica; quando não só fala, mas mostra o que está errado.

"Amigo" disse...

O que parece estar errado, e isso é uma inferência, é que você passa a idéia de levar mais a sério Aristóteles que a Bíblia. Nada de errado com a filosofia, mas Jesus não mandou seus discípulos à Grécia para se "prepararem". Acho que você precisa colocar em primeiro lugar a Palavra de Deus e em segundo lugar, 10.000 degraus abaixo, suas outras influências. Isso é um conselho, só isso.

Joel Pinheiro disse...

Concordo com a essência do que você diz, embora considere uma diminuição indevida do patrimônio espiritual cristão reduzi-lo apenas à Bíblia. Toda a Tradição do Cristianismo, preservada pela Igreja e exposta e desenvolvida ao longo dos séculos, é fonte de verdade espiritual, e que obviamente é superior à filosofia grega. O que não quer dizer que a tradição nunca tenha errado em questões acidentais, e que não possa nessas questões receber corretivos vindos de fora.

Bom, eu mesmo não me considero um seguidor de Aristóteles nem nada do tipo. Acho que ele acertou em muitos pontos, mas errou em muitos outros também.

Não tenho problema, contudo, em fazer como S. Justino Mártir, que via na filosofia grega sementes do Verbo Divino, e no Cristianismo a culminação do que existia em potência lá (e, acrescentaria eu, nas sabedorias e religiões tradicionais do resto do mundo), sem os erros ocasionais.