terça-feira, abril 13, 2010

O que é hipocrisia?

A lista de pecados (lembrem que o termo “pecado” não tem nenhuma conotação religiosa; significa “ato imoral”) mudou muito de uns tempos para cá. Alguns foram praticamente eliminados: da luxúria, por exemplo, sobraram só o estupro e a pedofilia, o resto tendo se transformado em virtude. Quanto à violência, embora considerada má, a maioria de suas manifestações é sintoma de desvios psicológicos ou estruturas sociais, e portanto fora da esfera moral. Só um ou outro serial killer é realmente mau. E há pecados novos, como os ambientais e sociais. Ambos extremamente convenientes, pois via de regra não se identificam a nenhum ato específico, e portanto ou estão sempre nos outros e nunca em nós, ou, mesmo quando admitidos, não implicam grandes mudanças de vida. A correção de conduta que porventura demandem (jogar o lixo na lata certa, fechar a torneira ao se ensaboar) será sempre algo confortavelmente distante do nosso núcleo central de gostos, desejos e amores; e então é possível ser bom sem nenhuma reforma muito profunda do caráter. Outros pecados, contudo, permanecem universalmente condenados há milênios; é o caso da hipocrisia.

Ocorreu, é verdade, uma mudança de definição. Para muitos, hipócrita é quem ousa fazer apelo a uma ordem moral objetiva para condenar o que quer que seja. É uma definição difícil de engolir: levá-la a sério significa, perante um crime hediondo, ver como única reação aceitável o “não julgar”. Ademais, é autocontraditória, pois, ao julgar que é mau julgar, se está julgando. Ainda assim, essa definição capenga preserva algo verdadeiro: a condenação moral é um ato no qual a hipocrisia pode se dar. O dicionário dá conta de defini-la melhor: manifestação de virtude fingida; e uma forma de fingir a virtude é condenar alguém para parecer bom em oposição.

Usando a definição, vemos que muito do que é considerado hipócrita na verdade não é. Assim, condenar um pecado do qual se é culpado não é, de si, hipócrita. Dou um exemplo: Todos nós já mentimos alguma vez, e volta e meia mentimos de novo em casos que consideramos injustificados. Seria hipócrita, então, condenar a mentira? Claro que não. Mais problemático seria quem se recusasse a fazê-lo, justificando assim o próprio vício.

A própria definição do dicionário, entretanto, é imperfeita, e inclui mais do que apenas a verdadeira, odiosa hipocrisia. Nem sempre é hipócrita a tentativa de esconder um vício (o que via de regra implica fingir-se virtuoso); há situações em que é objetivamente bom. Um professor pode ser preguiçoso e querer genuinamente que seus alunos não o sejam. Transparecer seu próprio vício para eles seria um grande obstáculo para esse fim. Sua postura na classe deve ser a de alguém ativo, trabalhador, para encorajar os alunos. Ademais, é agindo como se fôssemos virtuosos que adquirimos, aos poucos, a virtude; um processo cujos primeiros passos podem ser só para manter as aparências (claro, estagnar nesse ponto é botar tudo a perder).

Em geral, o bom exemplo é motivo suficiente para não transparecer para tudo e todos os vícios que se possui; sem falar no dano desnecessário ao próprio nome. A vergonha não chega a ser uma virtude, mas está bem longe da hipocrisia. O sujeito considera ruim um certo vício que possui (se esforça, inclusive, para melhorar), que ele obviamente não sai mostrando por aí; e se se depara com esse pecado sendo cometido, condena-o e dá seus motivos (que são sinceros).

O caso acima finge ter uma virtude que realmente gostaria de ter. Mas e o caso daquele que não quer ser virtuoso? Ou seja, a pessoa que possui um vício, não deseja superá-lo, condena-o publicamente nos outros e ainda por cima finge-se virtuosa, essa certamente é hipócrita? Mesmo essa pode não sê-lo. É só imaginar o caso de um velho autocomplacente que, apesar de tudo, não quer decepcionar os que o admiram. Perdeu a esperança em si, mas ainda nutre alguma pelos que o rodeiam, e detestaria vê-los resvalar pelo mesmo desânimo quanto ao bem do qual ele próprio desistiu (“Sou um caso sem volta; mas meus netos podem ser melhores do que fui.”). Finge ser virtuoso, condena o vício e, embora não queira sair de seu estado (conformou-se), nem por isso é hipócrita.

Estamos chegando perto. Para ser hipócrita, bastaria que a preocupação do sujeito fosse com sua própria aparência enquanto tal, e não enquanto meio para o progresso moral dos netos. Nesse novo caso, o fingir a virtude e condenar o vício não decorrem de nenhuma percepção de que eles constituem um objetivo desejável para si ou para os outros, mas do simples desejo de se engrandecer. Isso é compatível com (e até depende de) uma boa dose de auto-engano: ninguém é aberto consigo mesmo quanto ao amor ao vício e à dissimulação - a percepção clara da própria condição causaria na grande maioria o imediato desejo de mudar. Em alguma medida, o sujeito se considera virtuoso, embora esse juízo próprio decorra da opinião alheia baseada na aparência falsa que ele construiu. Mas o seu verdadeiro desejo não é ser bom: quer, no fundo, apenas aparentá-lo enquanto continua mau; quer a glória devida ao bem sem o bem em si.

Um comentário:

Amanda Soldani disse...

ótimo texto!