quinta-feira, maio 06, 2010

'A Estrada' e a natureza humana

Humanidade: hecatombe moral?

A premissa de A Estrada é simples: algum desastre não-especificado destrói a Terra: o céu fica cinza, há terremotos intermitentes e chuvas de fogo e poeira à noite. Toda a vida vegetal perece e a civilização colapsa irremediavelmente. Tudo o que resta é lutar para não morrer de fome coletando restos e enlatados cada vez mais raros e evitar tornar-se vítima do estupro e canibalismo onipresentes. Mulheres e crianças são especialmente visadas.

Leva-se às últimas conseqüências o pessimismo de um Ensaio Sobre a Cegueira. Só que em A Estrada, ao mesmo tempo em que a situação é mais desesperadora (a humanidade vai acabar), há, talvez por isso mesmo, mais abertura a uma possível transcendência. Pois o bem ainda resiste: um pai e seu filho pré-adolescente mantêm viva a dignidade humana e caminham para o sul em busca de algo melhor, embora não saibam ao certo o quê. Rejeitam terminantemente o canibalismo e o roubo. Carregam, diz o pai - que, ao mesmo tempo em que oferece esperança, contempla desesperado o suicídio - um fogo dentro de si, que se apagaria se capitulassem à conduta geral.

É uma experiência cinematográfica lúgubre como poucas. O cinza predomina, a atmosfera é de solidão e paranóia; numa cena particularmente chocante num porão escuro, vemos seres humanos num estado de degradação e violação indizível, que nos remete a um horror existencial incomunicável. A humanidade sai mal na foto.

A discussão é antiga: O homem é bom ou mau? As relações humanas consistem, fundamentalmente, em cooperação ou guerra? Aristóteles ou Cálicles? Locke ou Hobbes? No plano teológico: o homem absolutamente perverso em quem a graça deve eliminar a natureza má (Sto. Agostinho em momentos mais pessimistas, a doutrina calvinista da “depravação total”, os franciscanos, Pascal); ou o homem corrompido mas cuja natureza permanece essencialmente boa, sendo papel da graça aperfeiçoá-la (Tomás de Aquino, os dominicanos e jesuítas)? Na economia: Karl Marx ou Adam Smith? O marxismo, ao pintar a vida social como baseada na exploração, tende, na prática, ao pessimismo; já o liberalismo clássico enxergava a prevalência da cooperação, e via o mercado como mecanismo harmonizador dos desejos individuais.

Os pessimistas gostam de se ver como realistas, os únicos que não adocicam a verdade cruel escondida sob a fina e frágil camada da sociabilidade. Será? Discordo. Mesmo em meio à guerra, mesmo onde o braço do Leviatã não alcança (aliás, este sim é capaz do mal numa escala sobre-humana), o que prevalece no mundo real é a vida normal, a cooperação e a coexistência pacífica, ainda que o que venda jornais sejam os crimes. Na Somália sem governo, o mercado de telefonia e a Internet popular floresceram; nas favelas brasileiras há lan houses, bares e lojas. Voltando um século, lembremos que os soldados de ambos os lados na Primeira Guerra, para horror dos comandantes, saíram das trincheiras e confraternizaram na noite de Natal. O homem é capaz do mal, mas esta não é sua vocação e nem sua natureza.

A capacidade agregadora do bem

Mas quem é mau, sem escrúpulos, se dá melhor, não é mesmo? Em situações pontuais, no curtíssimo prazo, talvez. No geral e no longo prazo, o bem é mais poderoso. Falta essa percepção ao filme. Os bandos de canibais eram compostos de assassinos e estupradores. O que garantia sua unidade? A traição e o motim deviam ser medos constantes para homens desprovidos de qualquer sentido de honra, de amor ou de uma causa maior.

São justamente os bons (na medida em que são bons) que têm a capacidade moral de formar e sustentar agregações duradouras e produtivas. Exposta em termos diferentes - menos moralistas - esse ponto faz parte do currículo de qualquer curso de administração. A empresa que não cria uma cultura interna positiva, de respeito mútuo e confiança, que não facilita a comunicação entre as partes, mas que permite ou até incentiva intrigas, falta de transparência e autoritarismo, arca com altos custos inexistentes numa empresa mais sadia, o que pode botar tudo a perder, como no caso da WorldCom. Monastérios (católicos, ortodoxos, budistas) perduram séculos enquanto comunas hippies de amor livre e gangues do tráfico definham em anos; esperávamos o contrário?

Se o cataclismo de A Estrada ocorresse de fato, seria de se esperar que os bons, os mais confiáveis e respeitosos, fossem bem-sucedidos em montar grupos e pequenas sociedades; todos teriam a ganhar. A divisão de tarefas (uns procuram alimento, outros preparam esquemas de defesa, etc) eficiente precisa de um mínimo de confiança e comprometimento. Seriam eles que se defenderiam com mais eficácia. Digam o que quiserem sobre os EUA e Israel, mas é um fato que sua conduta bélica é eticamente superior à dos seus adversários: há práticas que eles se negam moralmente a adotar (terrorismo, homens-bomba, seqüestro, escudos humanos). Será mera coincidência que sejam também militarmente superiores? Os bárbaros, os canibais, as tribos de guerreiros nômades, condenam-se à miséria perpétua, pois a aposta nos ganhos imediatos da falta de escrúpulos (pilhar é mais fácil do que produzir) destrói suas chances de crescer. Um bando armado no qual, na hora de dormir, teme-se que os colegas do dia anterior metam-lhe uma faca no peito para garantirem o almoço de amanhã não é uma instituição particularmente estável.

Portanto, parece-me inverossímil que os maus sejam organizados e poderosos e os bons solitários e indefesos. Notem que nossa situação difere da do filme apenas em grau: todos morreremos, e a espécie humana certamente se extinguirá (ao final do processo irreversível de entropia cósmica, se não antes). Só mudam o número de gerações até essa data terrível (uma ou duas no filme, indeterminadas, provavelmente muitas, no nosso caso). Vamos já para a guerra de todos contra todos? Para quê construir, se dá trabalho e tudo virará pó? É aí que entra a esperança transcendental (não necessariamente religiosa), o reconhecimento de valores que vão além da vida humana, à qual os protagonistas estão abertos, e que os difere da massa de malvados. No fim das contas, é isso que os salva. Tomistas e agostinianos alegram-se em pleno acordo.

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