segunda-feira, maio 10, 2010

Válvula ou arame

Freud ou Aristóteles: dois modelos de funcionamento humano - válvula hidráulica ou arame entortável. São duas perspectivas em alguma medida conciliáveis, mas na prática bastante contrárias, de se encarar os efeitos da ação no agente. Teste para ver em qual você se encaixa: quando o sujeito é mal-tratado continuamente, e vai acumulando toda aquela raiva aos poucos, o que ele deve fazer? E quando o desejo sexual fica incontrolável, e ele só pensa nisso, como libertá-lo da obsessão?

Quem responde algo na linha de extravasar e aliviar a tensão pensa como Freud (não sei se o verdadeiro Freud ou o Freud dos gibis que chegou até mim via cultura popular; mas é só um nome), e segue o modelo da válvula hidráulica: não pode ficar nem muito cheia nem muito vazia. A válvula da raiva está até a borda? Melhor liberar essa tensão para a máquina não explodir ou o câncer não aparecer.

Não vou negar que tenha sua validade. Aliás, para algumas funções ele parece perfeito. O tubo digestivo, da entrada à saída, é isso mesmo: tubo. Bebeu bastante? É hora de fazer xixi. Mas a válvula não conta a história toda. Coma até se saciar; e depois de novo, e o faça sempre, coma até se satisfazer plenamente. A mudança será gradual, mas depois de um ano, na barriga onde cabia um Big Mac, caberão três; e na calça onde cabia um de você agora cabe 1/3. Pouco a pouco, o lanche pequeno dos americanos tornou-se o nosso gigante.

É aqui que entra Aristóteles e o modelo do arame (a pobreza da imagem é por minha conta). Todo ato consciente tem um efeito no caráter (as disposições constantes que nos levam a agir dessa ou daquela maneira) do agente: quem nunca reparou que, quanto mais se dorme e se demora para sair da cama, mais difícil fica levantar? E quanto mais se come, mais guloso se vira. Isso num nível sub e quase extra-racional. Para trazer o ponto a uma esfera com maior influência do intelecto, cada vez que se vai além de um limite previamente proposto cria-se um incentivo psicológico para violá-lo sem restrições futuramente: “Já fiz isso da vez passada; qual o problema?”. Cada novo ato também muda nossa percepção de nós mesmos. Se entrei de vez na lagoa fria, vejo-me como alguém capaz de fazê-lo; se não entrei, a própria lembrança do fracasso passado serve de obstáculo para tentar futuramente. Antes de cometer o crime, tudo é possível, eu ainda não estou determinado; depois, já me vejo como um assassino, ou um ladrão, e não tem mais volta.

Um arame fica do jeito que você dobrá-lo. O caráter humano também: vá pressionando ele numa direção que ele acaba se entortando. A válvula tem sua aplicabilidade? Tem. Extravasar a raiva tem efeito calmante no momento seguinte; e quando satisfazemos o desejo sexual nos sentimos livres dele. Mas esses não são os efeitos principais, de longo prazo. A pessoa que explode de raiva, e que aceita explodir de raiva, é justamente aquela que cria a tendência a ficar cada vez mais raivosa mais facilmente. E quem sempre satisfaz o impulso sexual fica cada vez mais dependente e viciado nesse prazer, e portanto menos livre, e mais escravo, dele.

A válvula hidráulica tem sua validade, num horizonte de uma ou duas horas. Mas esse modelo “The Sims” do comportamento humano não dá conta do longo prazo. No horizonte existencialmente mais relevante de uma vida, o que prevalece é o arame entortável aristotélico. No longo prazo, o que liberta é o auto-controle. O carro precisa de bons freios para chegar longe.

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