quarta-feira, junho 02, 2010

Nem tudo funciona

Seria Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works) um manifesto pessoal do próprio Woody Allen, talvez uma autojustificativa? Seja como for, não funciona, ao menos para mim. A casca atrativa e talentosa de qualquer obra que saia das mãos do diretor cobre incoerências e desonestidades que botam o todo a perder.

Boris (cujo ator, tanto fisicamente quanto na fala, lembra muito o diretor) é um velho gênio da física, fracassado, divorciado, sem Nobel, que vive sozinho e se sustenta ensinando xadrez para crianças só para humilhá-las; tentou o suicídio mas até nisso fracassou. Eis que, por um enorme acaso (o motor dos filmes de Woody Allen), cruza seu caminho a linda e jovem Melodie. Fugida de sua casa no Mississipi, perdida e desnorteada na Big Apple, convence-o a deixá-la passar uns dias com ele até arranjar emprego. Uma amizade improvável se estabelece, e Melodie, embora ingênua, revela-se uma ávida pupila, que absorve entusiasticamente a cosmologia niilista do velho mestre sem deixar abalar sua alegria e bondade naturais.

Os dias viram meses, a amizade vira amor e eles se casam. A vida transcorre perfeita até que a mãe de Melodie, Marietta, recém-abandonada pelo marido, encontra-a em Nova Iorque. Inicialmente, essa cristã fundamentalista (no estilo evangélico americano de ser: bem-intencionada e moralista, expansiva e desastrada) é só atrito com Boris e seus amigos boêmios. Mas muito em breve ela segue o caminho da filha: cede às tentações do liberal life-style nova-iorquino e, poucas taças de vinho depois, consagra-se como fotógrafa pornô-conceitual e divide a cama com dois homens. Agora é a vez do pai de Melodie, que chega em busca da ex-esposa. Felizmente, sua dor em perdê-la – não para um, mas dois ex-hippies – dura pouco: afogando as mágoas num bar, deixa aflorar o homossexualismo reprimido e descobre o amor verdadeiro num quarentão bem-apessoado.

Se até agora parece um show de horrores, Woody Allen faz com que não seja. Há certas qualidades (podemos chamar de “mínimo estético”) com as quais sempre podemos contar em seus filmes. Em algum nível ele funciona: história bem contada, boas tomadas de Nova Iorque, gente bonita, diálogos espirituosos, tipos bem construídos, algumas percepções iluminadas. O que revela o talento artístico de Marietta são as fotos caseiras que ela tirara da filha nos concursos de Miss. Um intelectual pretensioso considera-as geniais, “primitivistas” (nesse momento ainda não se sabe se a opinião é sincera ou só uma manobra para levá-la para a cama – aliás, bem-sucedida). E mesmo depois de sua transformação, a mãe preserva o mesmo projeto pessoal: separar a filha do perdedor geriátrico com quem se casou e juntá-la a um jovem promissor que conhecera nos primeiros dias na cidade. Certas atitudes demasiado humanas perpassam todo o espectro teológico-político, e o filme aponta-as com graça e perspicácia.

O plano materno dá certo: a menina se apaixona novamente e deixa Boris a ver navios. Ele tenta se matar mas falha novamente: pula da janela e cai sobre uma desconhecida com quem terá um novo caso. A cena final é uma festa de ano-novo entre os personagens, todos de bem com a vida: homossexualismo, poliandria, troca de parceiros; o que funcionar para cada um. Boris nos dá seus pensamentos finais: não existe ninguém “lá em cima”. O importante é cada um encontrar sua felicidade, sem dar muita bola para regrinhas moralistas. Mas algo não está certo. Estaria Woody sendo irônico, pregando-nos uma peça com esse final de sitcom e com esse acaso que a todos salva? Saí do cinema sem saber. Mas para que o filme não seja um mero exercício em pointlessness, tem que haver algo de genuíno na mensagem, mesmo que aceitemos que ele ridicularize também a intelligentsia nova-iorquina em suas pretensões artísticas e filosóficas. Boris, o cientista, vê além delas e enxerga o absurdo da existência; mas se compraz verdadeiramente de que todos tenham encontrado sua felicidade.

Por baixo de Whatever Works esconde-se o anything works. A tradução brasileira fugiu à letra do título mas captou seu espírito: Tudo Pode Dar Certo, com ênfase no “tudo”. O resultado é incoerente: niilismo cósmico temperado com um pueril “cada um é feliz à sua maneira”, que não consiste no hedonismo carnal (o que seria moralmente detestável, concordo, porém consistente), mas num estado sentimental: estar apaixonado e se sentir acolhido. Nesse ponto Woody Allen ficou atrás do Orkut, que hospeda já há anos a comunidade “niilismo miguxo”, cuja mistura de Nietzsche e Hello Kitty! no fundo cor-de-rosa representa muito bem o espírito do filme. A incoerência das idéias reflete-se na incoerência da rabugice gostosa e bem-humorada do personagem central que, imagino, seria amargo e desagradável se existisse na realidade (mais aos moldes do verdadeiro Woody Allen). No mundo do filme, ninguém tem ciúmes nem mágoas, ninguém desgosta de ninguém, ninguém trabalha mas são todos independentes, não há escolhas erradas, culpa e nem remorso; é tudo na base do amórrr (sem consequências, claro) e do bom humor. Parece realista?

Já que se encarna o espírito de “no regrets”, “faz o que tu queres, pois é tudo da lei”, por que não levá-lo a sério, e mostrar versões alegres do incesto, da bestialidade e da pedofilia? Não funcionaria? Então existem critérios objetivos que determinam o que pode funcionar? Faltou coragem de enfrentar a questão, e essa timidez desonesta é o ponto fraco no cerne da obra. Na minha opinião, a coisa seria muito mais interessante, em vários níveis, se Melodie fosse a filha adotiva de Boris.

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