terça-feira, junho 15, 2010

Livre mercado para além do mercado

O homem é podre, um mentiroso e trapaceiro contumaz, que estupraria e mataria sem remorso se lhe fosse dada a possibilidade de fazê-lo sem ser pego. É apenas o medo da cadeia (foi-se o tempo em que o medo da punição divina valia para algo) que nos mantém a um passo da auto-destruição final. É isso mesmo?

Bom, então considere a seguinte situação. Semanas atrás, precisei de um adaptador de tomada (graças ao novo padrão imposto pelo governo para sanar um problema inexistente). Fui até uma lojinha de material elétrico próxima, mas eles não tinham; o vendedor me indicou uma outra loja na rua. Notem, ele não precisava ter feito isso; essa outra loja é sua concorrente em vários serviços. Fui à nova loja, e vi que o melhor era comprar logo uma tomada nova. Só não sabia se era uma de 10 ou 20 amperes. Solução? O vendedor me deixou levar a de 10, testá-la e, se não fosse, trocar pela de 20. Novamente, algo que ele não precisava ter feito.

Ações que, no curto prazo, parecem danosas à loja (vender uma tomada ao invés de duas), no longo prazo compensam (ganhar a confiança do cliente). E são fatos absolutamente banais e corriqueiros no mercado, como qualquer um sabe. Os homens não são crápulas sempre à procura de uma oportunidade de engambelar o incauto. O nosso modo de vida é baseado na cooperação, e essa não é forçada ou dissimulada, mas voluntária e em geral sincera, caso contrário não funcionaria. A idéia do egoísta esclarecido que se comporta exatamente como um homem bom exclusivamente por motivos egoístas é um mito; caráter e ações não são realidades separadas. O mercado é exatamente o processo pelo qual essa ajuda mútua é facilitada e incentivada, pois harmoniza o bem de cada um com o bem dos demais. A confiança e a confiabilidade são remuneradas, e as práticas anti-sociais punidas.

Claro, isso não garante que todos serão bons. A minha compra de tomada estava, por exemplo, ligada à compra de uma lava-louça cuja instalação deu um enorme problema, custando muito tempo e dor de cabeça em conversas frustrantes com o SAC da empresa. E isso se explica. Empresas grandes têm que ter uma política padronizada de trocas e outros serviços gratuitos para impedir que, de pequenas decisões generosas de muitos vendedores e atendentes, emirjam grandes prejuízos. Mas mesmo nelas, na medida em que têm que sobreviver no mercado, o que prevalece é a cooperação. Vejam só: saindo uma vez do caixa do McDonalds com o almoço na bandeja, derrubei o refrigerante no chão. Qual a reação dos atendentes? Deram-me um novo. Eles sabem que brigar por migalhas é prejudicial para eles próprios, mesmo que isso lhes custe uma Coca. E até no caso da lava-louça, no final das contas, a empresa responsável pela instalação forneceu a peça nova.

São exemplos casuais - cada leitor terá vários - que ilustram um fato antropológico e moral. O homem não é um calculista a espera da primeira oportunidade de passar a perna. Quem age assim prejudica a si mesmo; confiança e boa vontade são características muito difíceis de se dissimular ao longo do tempo, e constituem parte importante do capital humano. Quanto menos confiança, mais advogados, juízes, contratos, e menos possibilidades de transação; tudo isso tem um custo, não apenas monetário. Por outro lado, boas relações resolvem problemas de ambos os lados e deixam todos felizes, criando laços de boa vontade. Como Aristóteles já apontara, o fazer negócios juntos, a harmonia de utilidades, estabelece entre as partes um tipo de amizade.

A cooperação livre entre os homens é um fato; é um fenômeno que emerge naturalmente, sem qualquer necessidade de uma autoridade estatal para regular, controlar, medir e definir (o que só congela e endurece o que deveria ser fluido e flexível para melhor se adaptar às infinitas circunstâncias dos homens). E essa cooperação se dá em todos os níveis da sociedade; não é privilégio da “elite”, embora seja isso mesmo que vai acontecer se o governo continuar a dificultar e proibir a existência de versões mais baratas e populares; se o padrão mínimo legal for o Golf, não existirão nem Gols, nem Fuscas, nem Brasílias; mais gente andará a pé.

Mais um exemplo banal: um dia, indo para o aeroporto, vi num trecho ao lado esquerdo da marginal, acho que junto a uma rampa, barracos num espaço muito estreito. Um deles, apertado entre os demais, era uma barraquinha de comes e bebes. Está aí a força vital do espírito humano, que não deixa de inventar soluções nem sob as condições mais inóspitas. A condição do lugar era, para nossos padrões, deplorável; mas aquela barraquinha tornava-a um pouco melhor. Não seria um crime matá-la com regulamentações as quais, obviamente, o dono nunca seria capaz de obedecer? Pois o momento em que um fiscal do governo passasse por lá seria o momento em que aquele pequeno oásis deixaria de existir. Ainda bem que o governo não vê tudo, e que existe a corrupção! Imagine se as regulamentações e tributos do país fossem seguidos sempre e à risca; camelôs, vendedores piratas e, enfim, todo o mercado informal, que beneficiam tantos consumidores e empregam tantos trabalhadores, sumiriam. Hoje em dia, eles funcionam fora da lei; e - surpresa! - funcionam. Sem decretos políticos, sem vereadores e deputados inúteis, o Promocenter ia muito bem obrigado.

Quando o dinheiro sai da jogada, fica ainda mais claro. Vejam o couch-surfing: pessoas disponibilizam suas casas para viajantes se hospedarem de graça, e sabem que, quando viajarem, também encontrarão pousada. O único sistema de controle são as opiniões dos próprios usuários publicadas no site. Qualquer um pode se cadastrar. E adivinhem: funciona muito bem, como um amigo meu que já hospedou gente do mundo inteiro pode garantir. Haveria algo mais contrário ao espírito dessa rede do que se o governo decidisse “regulamentá-la”, criando requisitos mínimos para as casas (“devem ter pelo menos dois banheiros e um sistema de combate a incêndio certificado”) e para os viajantes (“devem enviar, duas semanas antes da visita, cópia autenticada do passaporte e trazer inventário da bagagem pessoal”)? A quantos seriam reduzidos os membros dessa comunidade vibrante? Pois a mesma destruição burra ocorre em tantos outros serviços; a diferença é que estamos acostumados e não percebemos o quão melhor eles poderiam ser. Por que absolutamente todo estabelecimento comercial deve ter uma lixeira na frente? Por que um shopping precisa de 5% de vagas para idosos? Por que toda vitrine deve ter tarja sinalizadora? Soluções pontuais são transformadas em imposições ossificantes; o que é inteligente em alguns casos pode ser estúpido se transformado em lei universal.

Trata-se de um problema de mentalidade, que afeta todos os políticos, burocratas, legisladores, advogados e engenheiros sociais que acreditam que suas definições mal-escritas num pedaço de papel criam e ordenam as relações humanas; quando na verdade as corrompem e destroem. A imensa maior parte da classe política brasileira não só é inútil como prejudicial à nação. Ao invés de punir os crimes (roubos, fraudes), querem prever e delimitar o que é mutuamente benéfico, limando de imediato todas as manifestações que escapam a seu olhar estreito.

O número de impostos, de encargos, de regulamentações e de regras aos quais estamos sujeitos (e mesmo assim, pode ter certeza que se um fiscal quiser, ele encontrará alguma infração - são 85 tributos e dezenas de milhares de leis) não nos afetam apenas na “esfera econômica da vida”, como se a vida humana fosse divisível em partes estanques, e como se o trabalho e o consumo fossem realidades menores, de pouca importância. A guerra de independência americana foi travada por muito menos. E ainda se acredita na mentira de que a liberdade interessa aos ricos. Isso é falso. O liberalismo econômico não é o sistema das grandes empresas, dos grandes bancos, dos tecnocratas. Claro, algumas grandes empresas seriam beneficiadas com um mercado mais livre; mas elas não seriam as maiores ganhadoras, mesmo porque muitas recebem ajuda do governo, seja direta (concessões, subsídios) ou indireta (as regulamentações infinitas e encargos pesados que impedem a existência dos pequenos). O principal beneficiário do liberalismo é todo homem honesto em suas relações cotidianas, que estão cada vez mais burocratizadas por um sistema desumano que demanda sempre mais recursos para se sustentar.

Ser livre significa, enquanto consumidor, poder escolher aquilo de que mais gosta na gama de preços e qualidades compatível com sua própria renda; enquanto produtor, poder trabalhar no que quiser, e prover que serviço quiser, da melhor forma que souber, sem que ninguém lhe impeça; e, enquanto ser humano, viver de acordo com o que se considerar o melhor sem ser impedido por ninguém e sem impedir ninguém de fazer o mesmo. Sem precisar de aprovação por qualquer órgão que seja, apresentar documento algum e nem emitir nota fiscal, pois o fisco não tem direito nenhum de saber o que você faz da vida e muito menos de puni-lo se for bem-sucedido. A liberdade permite que, ocasionalmente, alguém aja mal? Sim. E para alguns desses casos (os que violem direitos alheios) existem as leis e os tribunais. Mas, e isso é muito mais importante, é só ela que permite que os homens ajam e vivam bem, e que criem soluções novas e adaptem antigas para seus problemas e melhorem todas as esferas (não apenas a econômica, o comércio e a venda de ações) de sua existência.

4 comentários:

Anônimo disse...

Independente da moralidade, note que o vendedor de doce da feira tem um incentivo grande a te dar uma amostra grátis (ou mesmo indicar a banca vizinha) porque ele não tem a mesma reputação de uma grande loja. Acho que foi Alchian ou Demsetz que disse(ram) isso.

Talvez o exemplo apenas mostre que é racional ele te oferecer opções porque sabe que você se lembrará disto da próxima vez.

Apenas uma ponderação.

claudio

Luís Guilherme disse...

Tarja sinalizadora é útil. Outro dia bati a cabeça em uma parede de vidro aqui no trabalho...

Brincadeiras à parte, o texto está excelente.

Joel Pinheiro disse...

Útil, mas feio!!! Eu mesmo prefiro umas batidas na cabeça a uma loja ou escritório sem estilo. ;)

Cláudio: sim, é racional (uma constatação que não precisa de autoridades para ser afirmadas). O erro é pensar que esse "racional" não se relaciona com a moralidade. Vá numa feira. Há feirantes e feirantes. Uns são simpáticos, oferecem coisas (lembro de uma feira que eu ia com a minha mãe criança, e ele sempre me dava pedaços de fruta de graça). Outros são mais mal encarados.

Racionalidade e moralidade andam de mãos dadas; um estimula o outro. No mercado, o bem para si é fazer o bem aos demais. O irresponsável, o pouco confiável, o preguiçoso, o egoísta; esses são punidos.

O mito do "homem racional egoísta", o homo economicus, é só isso, um mito; ou, um pouco melhor, um modelo explicativo útil para alguns casos mas irreal. Para o egoísta racional, violar a confiança alheia, enganar, é bom se o benefício esperado superar os custos. Bom, há muita gente que tenta se comportar assim; há países inteiros que se comportam assim. Não costumam ser ricos. O defeito moral acaba influenciando o juízo positivo.

Quem tem escrito sobre isso é a Deirdre McCloskey. Gostei muito do livro dela "Bourgeois Virtues", primeiro de uma série em andamento. A separação estrita entre ética e ciência econômica foi um vício acadêmico que está, aos poucos, sendo superado.

Anônimo disse...

Era só seguir as instruções do vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=tGtJ5U_eeIU

D.