quinta-feira, outubro 15, 2009

Carlos, o consequencialista

Carlos era um jovem estudante de economia numa faculdade privada paulistana, e estava insatisfeito. Ele queria fazer algo para ajudar os necessitados, mas os professores só falavam em maximizar o lucro, em perseguir o auto-interesse. E isso não era o exato oposto da ética? Os princípios morais de Carlos eram outros: “o bem da coletividade deve vir antes do bem individual”; “fazer o bem é trazer o máximo benefício para o maior número de pessoas”; “uma ação é má quando é egoísta, e boa quando é altruísta”. E alguém discordava? De forma nenhuma: os colegas, os amigos, os parentes, todos estavam de pleno acordo, mas mesmo assim nada mudava. Era como se, para todo mundo menos ele, essas máximas devessem ser só faladas, e não vividas.

Seu tio, por exemplo, era rico e comprara um carro importado; por acaso era justo uns terem carro importado enquanto outros pegavam ônibus lotado? “Ah, Carlinhos, o mundo é assim, seria ótimo se todos fossem iguais, mas não são. Fazer o quê? Cada um corre atrás do seu”. Alguns colegas ajudavam uma entidade estudantil que dava aulas de reforço para crianças carentes. As intenções até que eram boas, mas qual o resultado prático? Quase nenhum. E fazer o bem era, por acaso, ter intenções boas, ficar de consciência tranquila? Isso também era egoísmo. Até seu melhor amigo da faculdade, o Dado, o decepcionou. No começo do curso, um verdadeiro revolucionário; só falava da revolução e o mundo igualitário que ela traria; até viajou para Cuba nas férias. Já no quinto semestre, amoleceu. “Olha, não dá para viver como se estivéssemos numa utopia; se quisermos ter algum impacto social, precisamos entrar no jogo do sistema capitalista.” Nessa época, Dado já estagiava.

Não. Não dava para continuar sendo hipócrita. Ainda que ninguém no mundo fosse moral, Carlos seria. A decisão não podia esperar. Todo egoísmo, toda preferência por si mesmo e pelos próprios desejos devia ser eliminada. O bem da maioria deveria sempre vir antes do bem individual. Por que o mero acidente, o acaso, de uns nascerem ricos e outros pobres significava que os primeiros teriam direito a uma vida boa e os segundos não?

O primeiro passo foi vender o carro e doar o dinheiro para uma ONG que ajudava vítimas da violência no Paquistão. Ele até considerou doar para alguma causa mais próxima, mas ver o resultado de sua caridade daria um certo prazer, e seria portanto um tipo de egoísmo; fora que seria injusto preferir alguém só porque esse alguém estava mais próximo. A responsabilidade moral não se pauta por algo tão arbitrário quanto a distância. Afinal, ele queria fazer o bem ou apenas reconfortar sua consciência individualista?

O passo seguinte foi largar a faculdade (privilégio de poucos) e passar os dias nas ruas, distribuindo alimentos e roupas para os mais miseráveis que pudesse encontrar. Com o dinheiro da faculdade (que os pais, que moravam no Rio, continuavam depositando na conta dele, sem suspeitar de nada) ele comprava para si apenas o mínimo necessário: a comida mais barata que permitisse a sobrevivência de seu corpo e algumas outras necessidades vitais; o resto era doado. O espaço do apartamento charmoso que ele alugava não ficou improdutivo. Expulsou o Marcos e o Alex, dois colegas que moravam com ele (tinham meios para se sustentar; não ia ser ele a auxiliar o egoísmo alheio) e trouxe doze mendigos para viver lá. O bem de doze é superior ao de dois. Da Leni, a empregada que costumava cozinhar e limpar a casa, nem preciso falar - demitida. Daí para frente nada poderia impedir sua progressão rumo ao altruísmo total.

Sua única muda de roupa estava preta de tão imunda, não tomava banho, o corpo era uma vara suja e fedorenta; comia do lixo, ia ao banheiro na rua e dormia no chão. Mas ainda estava insatisfeito; queria fazer algo a mais. Um dia, o Robério, um dos mendigos do apartamento, teve um piripaque, babou sangue e foi para o hospital; precisava de um pulmão novo. Aí veio a revelação: o corpo esbelto e saudável de Carlos tinha órgãos que poderiam salvar a vida de muitos doentes. Qual o critério ético objetivo para priorizar a própria vida sobre as vidas de outras pessoas? Nenhum. Manter-se vivo enquanto outros padeciam era um ato egoísta; era o ato egoísta supremo. A decisão era clara.

Foi uma espera de dois meses até que Robério morresse. É que Carlos não queria correr o risco de ajudar alguém próximo. Era para evitar esse egoísmo da preferência pessoal que ele procurava afastar de si os amigos ou quem quer que lhe agradasse (o que já não era difícil, dado seu aspecto). Morto o mendigo, foi até o saguão de um hospital bem equipado e se degolou na frente das enfermeiras. Os médicos tentaram salvar o rapaz mas não teve jeito, e os órgãos foram, então, doados. Receberam-nos cinco jovens em condições críticas. Desses, dois tiveram problemas sérios de rejeição e não resistiram. Dos outros três, dois tiveram vidas normais e pouco notáveis. Já o terceiro, um menino de 13 anos, que recebera um dos rins, foi um caso a parte.

O menino se chamava Pedro de Oliveira Albinone. Ele teve uma vida longa e feliz (bem, era o que ele dizia para si mesmo), trabalhando como funcionário público em Brasília; a promoção pela qual ele tanto lutou não veio, mas a aposentadoria era boa. Seu único filho foi Frederico Lima Albinone, que entrou para a história como o “Bin Laden brasileiro”. Durante um mochilão pela Ásia, o jovem Fred converteu-se ao Islã e entrou num grupo revolucionário radical paquistanês. Passados alguns anos, assumiu a chefia de uma célula terrorista, apossou-se de uma bomba nuclear no mercado negro e a explodiu no centro de Nova Delhi, eliminando, naquele momento, 300.000 pessoas, sem contar as estimadas 1 milhão de mortes causadas pela radiação.

5 comentários:

Christian Rocha disse...

Macabro, mas muito bom.

Anônimo disse...

Seria mais divertido ele explodir a faculdade privada. Pelo menos a humanidade ficaria livre da dona zelite.

Anônimo disse...

Pouco criativo. Se era para ser engraçado considero o texto pior ainda. Pensei que era algo pensamento mais interessante sobre o individualismo, mas é só um manifesto exagerado sobre o individualismo, com o mesmo sentimento que o Carlinhos da história teve. Mas tudo bem, os argumentos demoram a se formar...

Wesley Sniper disse...

Excelente artigo. Na minha faculdade tem uns doidos que pensam exatamente como Carlinhos, trabalhando no louvavel projeto Tombo....

O Ancião disse...

Gostei... Até metade da história parecia a vida de São Francisco de Assis, mas sem a motivação religiosa. Curioso como estes grandes atos de altruísmo ficam caricatos sem os motivos transcendentes. Ainda assim a moral é boa: "Ter a mesma preocupação consigo que com os outros leva a auto-destruição".

Achei bem interessante a questão da "práxis" das conseqüências dos bons atos. Mesmo os filósofos antigos já se perguntavam isso. Lembro de Sêneca (parafraseando) "Se o fórum é vedado, fique em casa. Mesmo a distância a virtude tem poder e algums substâncias curam apenas pelo cheiro" (Da Tranquilidade da Alma).