“...E então, na década de 1870, com a revolução subjetivista, descobriram que o valor dos bens é determinado pela utilidade marginal, ou seja, pela satisfação de desejos humanos, e não pela quantidade de trabalho, como se pensava antes.” Errado, opinião popular! A tese subjetivista era, desde muito tempo, amplamente defendida; foi a tese do valor-trabalho que constituiu uma triste guinada para o lado errado na economia (prova de que a ciência nem sempre progride). Apresento uma evidência.
Vejam esse autor que, antes mesmo de Adam Smith nascer, tinha uma teoria já bastante refinada do valor. Cito as passagens mais notáveis de seu “Tratado sobre as compras e vendas”.
“Deve-se dizer que o valor das coisas pode ser tomado sob dois aspectos. Sob um primeiro aspecto, segundo a bondade real da natureza e, assim, o rato e a formiga valem mais do que o pão, pois que aqueles possuem alma, vida e sensação, enquanto o pão não possui. Sob um segundo aspecto, atribui-se valor às coisas segundo a utilidade que elas têm para nós e, nesse sentido, quanto mais algo é útil para nosso uso, tanto mais é valioso e, sob este aspecto, o pão vale mais que o rato ou o sapo. E como os atos de vender e comprar ordenam-se às necessidades da vida humana, e são também eles certas necessidades, por isso, neles o valor dos bens é considerado e calculado do segundo modo e não do primeiro.
Além disso, deve-se saber que tal valor de uso – ou valor das coisas venais – é calculado de uma tríplice maneira.
a) Em primeiro lugar, na medida em que a coisa, por suas qualidades intrínsecas e suas propriedades, é mais apta e capaz de satisfazer nossas necessidades. Deste modo, um bom pão de trigo é mais útil às nossas necessidades do que o pão de cevada, e um cavalo forte é mais útil para a tração ou para a guerra do que um asno ou um cavalo trôpego.
b) Em segundo lugar, pelo fato de que as coisas, pela sua raridade e dificuldade de serem encontradas, tornam-se mais necessárias para nós, na medida em que, devido à carestia delas, tornam-se mais necessárias e temos menos possibilidade de obtê-las e usá-las. Assim, por exemplo, o mesmo cereal, no tempo de carestia, de fome ou de penúria, vale mais do que no tempo da abundância geral. Do mesmo modo, os quatro elementos – a água, a terra, o ar e o fogo -, por causa de sua abundância, possuem para nós um preço mais vil do que o ouro e o bálsamo, embora eles sejam, em si mesmos, mais necessários e úteis para nossa vida.
c) Em terceiro lugar, avalia-se segundo o menor ou maior beneplácito de nossa vontade em possuir tais coisas. Ora, “usar”, no sentido aqui entendido, significa tomar ou possuir uma coisa segundo o arbítrio da vontade; assim, uma parte significativa do valor das coisas utilizáveis é calculada devido ao beneplácito da vontade, que se compraz mais ou menos no uso desta ou daquela coisa e de tê-la à disposição. Sob este prisma, um cavalo, um ornamento ou um brinquedo agrada mais a um indivíduo que a outro e, em vista disso, um aprecia muito e considera como preciosa para si uma coisa que outro toma como vil, e vice-versa.
Um tal cálculo de valor das coisas utilizáveis dificilmente, ou nunca, pode ser feito por nós, a não ser de forma conjetural ou provável. De fato, o valor não se determina de modo exato, com um critério ou medida absoluta, que não admite mais nem menos, mas antes com uma devida amplidão, dentro da qual as cabeças dos outros homens e os juízos humanos diferem na avaliação. (...)”
Aqui o autor indaga se se deve impedir que os preços subam em épocas de escassez, e conclui que não:
“A escassez geral de alguma coisa provoca de diversos modos a carestia geral. Primeiro, porque quem possui tais bens desfaz-se deles mais dificilmente e sua colocação no mercado torna-se mais cara para os compradores ou para o possuidor. Em segundo lugar, porque se, naquele momento, o preço não for aumentado, isto viria em prejuízo do bem comum, pois os possuidores não quereriam de tão boa vontade vender tais bens aos que não os possuem e aos necessitados e, com isso, não se proveria a escassez geral da melhor forma. (...)”
Para tal autor, o “paradoxo da água e dos diamantes”, que confundiu tantos economistas no século XIX, não apresentava grandes mistérios. Ele mesmo o havia resolvido, com água e ouro.
É bem verdade que falta à análise dele o pensamento marginal, da última unidade. Essa peça final da teoria correta do valor só viria mesmo com os marginalistas.
Mais surpreendente é que o autor das linhas acima era Pedro de João Olivi, um frade franciscano do século XIII. Sim, da “obscurantista” Idade Média. O fato é que a grande maioria dos escolásticos medievais (inclusive figuras de peso como S. Tomás de Aquino e S. Bernardino de Siena) defendiam a teoria subjetiva do valor. E mais: para a grande maioria deles, o preço justo era o preço de mercado.
A História do Pensamento Econômico contemporânea tem muito a ganhar se ousar olhar para o passado, além dos fisiocratas e mercantilistas.
Mas, agora, que finalizei minha monografia, espero passar um tempo sem pensar em economia medieval; e economia em geral!
fonte:
de Boni, Luís Alberto. Filosofia Medieval - Textos. Porto Alegre. EDIPUCRS. 2005.
Vejam esse autor que, antes mesmo de Adam Smith nascer, tinha uma teoria já bastante refinada do valor. Cito as passagens mais notáveis de seu “Tratado sobre as compras e vendas”.
“Deve-se dizer que o valor das coisas pode ser tomado sob dois aspectos. Sob um primeiro aspecto, segundo a bondade real da natureza e, assim, o rato e a formiga valem mais do que o pão, pois que aqueles possuem alma, vida e sensação, enquanto o pão não possui. Sob um segundo aspecto, atribui-se valor às coisas segundo a utilidade que elas têm para nós e, nesse sentido, quanto mais algo é útil para nosso uso, tanto mais é valioso e, sob este aspecto, o pão vale mais que o rato ou o sapo. E como os atos de vender e comprar ordenam-se às necessidades da vida humana, e são também eles certas necessidades, por isso, neles o valor dos bens é considerado e calculado do segundo modo e não do primeiro.
Além disso, deve-se saber que tal valor de uso – ou valor das coisas venais – é calculado de uma tríplice maneira.
a) Em primeiro lugar, na medida em que a coisa, por suas qualidades intrínsecas e suas propriedades, é mais apta e capaz de satisfazer nossas necessidades. Deste modo, um bom pão de trigo é mais útil às nossas necessidades do que o pão de cevada, e um cavalo forte é mais útil para a tração ou para a guerra do que um asno ou um cavalo trôpego.
b) Em segundo lugar, pelo fato de que as coisas, pela sua raridade e dificuldade de serem encontradas, tornam-se mais necessárias para nós, na medida em que, devido à carestia delas, tornam-se mais necessárias e temos menos possibilidade de obtê-las e usá-las. Assim, por exemplo, o mesmo cereal, no tempo de carestia, de fome ou de penúria, vale mais do que no tempo da abundância geral. Do mesmo modo, os quatro elementos – a água, a terra, o ar e o fogo -, por causa de sua abundância, possuem para nós um preço mais vil do que o ouro e o bálsamo, embora eles sejam, em si mesmos, mais necessários e úteis para nossa vida.
c) Em terceiro lugar, avalia-se segundo o menor ou maior beneplácito de nossa vontade em possuir tais coisas. Ora, “usar”, no sentido aqui entendido, significa tomar ou possuir uma coisa segundo o arbítrio da vontade; assim, uma parte significativa do valor das coisas utilizáveis é calculada devido ao beneplácito da vontade, que se compraz mais ou menos no uso desta ou daquela coisa e de tê-la à disposição. Sob este prisma, um cavalo, um ornamento ou um brinquedo agrada mais a um indivíduo que a outro e, em vista disso, um aprecia muito e considera como preciosa para si uma coisa que outro toma como vil, e vice-versa.
Um tal cálculo de valor das coisas utilizáveis dificilmente, ou nunca, pode ser feito por nós, a não ser de forma conjetural ou provável. De fato, o valor não se determina de modo exato, com um critério ou medida absoluta, que não admite mais nem menos, mas antes com uma devida amplidão, dentro da qual as cabeças dos outros homens e os juízos humanos diferem na avaliação. (...)”
Aqui o autor indaga se se deve impedir que os preços subam em épocas de escassez, e conclui que não:
“A escassez geral de alguma coisa provoca de diversos modos a carestia geral. Primeiro, porque quem possui tais bens desfaz-se deles mais dificilmente e sua colocação no mercado torna-se mais cara para os compradores ou para o possuidor. Em segundo lugar, porque se, naquele momento, o preço não for aumentado, isto viria em prejuízo do bem comum, pois os possuidores não quereriam de tão boa vontade vender tais bens aos que não os possuem e aos necessitados e, com isso, não se proveria a escassez geral da melhor forma. (...)”
Para tal autor, o “paradoxo da água e dos diamantes”, que confundiu tantos economistas no século XIX, não apresentava grandes mistérios. Ele mesmo o havia resolvido, com água e ouro.
É bem verdade que falta à análise dele o pensamento marginal, da última unidade. Essa peça final da teoria correta do valor só viria mesmo com os marginalistas.
Mais surpreendente é que o autor das linhas acima era Pedro de João Olivi, um frade franciscano do século XIII. Sim, da “obscurantista” Idade Média. O fato é que a grande maioria dos escolásticos medievais (inclusive figuras de peso como S. Tomás de Aquino e S. Bernardino de Siena) defendiam a teoria subjetiva do valor. E mais: para a grande maioria deles, o preço justo era o preço de mercado.
A História do Pensamento Econômico contemporânea tem muito a ganhar se ousar olhar para o passado, além dos fisiocratas e mercantilistas.
Mas, agora, que finalizei minha monografia, espero passar um tempo sem pensar em economia medieval; e economia em geral!
fonte:
de Boni, Luís Alberto. Filosofia Medieval - Textos. Porto Alegre. EDIPUCRS. 2005.
3 comentários:
Esse achado tá parecendo aquele livro do Schumpeter, o "História da Análise Econômica". Quem o leu de verdade (eu passei os olhos uma vez numa estante) diz que o Schumpeter sempre acha alguém que falou de determinada coisa antes do que nós pensamos...
pois é, Schumpeter foi um dos (senão o) primeiro a apontar a importância dos escolásticos para o pensamento econômico, embora ele tivesse em mente os escolásticos tardios da Escola de Salamanca, e não os medievais.
Sobre os medievais, uma das maiores autoridades era o Raymond de Roover, que fez um belo trabalho sobre o pensamento de S. Bernardino de Siena, que exaltava a função do empreendedor, e que tinha uma refinada análise do valor.
Depois, o próprio Roover descobriu que a análise do valor de Bernardino vinha de Olivi.
E eu, por acaso, na livraria da EDUSP na FFLCH, encontrei esse livro do Luís Alberto de Boni cheio de textos traduzidos de filosofia medieval. Entre eles o tratado do Olivi, que me convenceu a comprar o exemplar na hora!
Sempre é bom aumentar nossa cultura em história do pensamento econômico, hehe.
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