quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Impressões da Europa

A Europa não vai bem. Muitos elogios se tecem ao “modelo europeu”. Mas também temos que falar do podre. Não tenho em mente modelos políticos e econômicos, embora creia que eles expliquem parte do problema apontado. Os incentivos por eles criados exacerbam as deficiências espirituais e morais da sociedade, que são a principal causa da crise atual e o foco do meu texto.

Um teólogo inglês resumiu bem a cultura atual de seu país: supermercados e esportes. O mesmo poderia ser dito sobre outras nações. Tem-se a impressão de que as pessoas não têm uma razão maior de viver. Jovens e velhos, todos vivem em função do prazer (exceto os muito jovens e os muito velhos; esses vivem cada vez menos). As aspirações não ultrapassam baladas e viagens. O interesse não vai além da última fofoca sobre o Beckham. Poucas pessoas querem filhos, e as famílias não duram. Muitas crianças e adolescentes já têm como dado que se casarão mais de uma vez.

Essa vida não leva o homem à felicidade. Os níveis de alcoolismo entre jovens são alarmantes, e os adultos estão afundados até o pescoço em dívidas. Depressão, distúrbios psicológicos e suicídio não são incomuns. Muitos percebem que há algo errado, mas não vão à raiz do problema: o desejo de lutar por algo melhor pára no protesto político ou no efeito estufa.

Claro, isso é um recorte muito parcial. Nenhuma pessoa é tão simples ou superficial assim. As aspirações humanas nunca são totalmente apagadas; amizades continuam a ser feitas, encontros felizes acontecem, planos bons ainda vingam. Quem estiver disposto encontra lá os meios para obter a melhor formação espiritual e cultural do mundo. Sem falar que são incontáveis as virtudes que os europeus poderiam nos ensinar: o trabalho realizado com perfeição, a honestidade, o senso de dever cívico. Mas mesmo isso vai se perdendo aos poucos. Escândalos políticos, a nós tão familiares, estão deixando de ser raridade por lá.

Os europeus perderam o sentido de transcendência; perderam sua identidade cristã. Quiseram construir um paraíso na terra, pensando apenas no homem e na vida presente. Mas se esqueceram de que o homem está profundamente desregulado. Que, sem algum auxílio externo, sua tendência é piorar. Pensaram ser possível manter o patrimônio cultural de séculos desprezando sua base espiritual. Enganaram-se.

No século XVIII, por exemplo, havia muitos ateus e deístas; alguns deles geniais, com profunda capacidade de entender a alma humana, e senso estético muito refinado. Contudo, ao se basear em suas idéias, a sociedade tornou-se incapaz de produzir homens da mesma qualidade. Do primado da razão, da sociedade de homens livres e educados, passou-se ao primado da ciência e da técnica e à sociedade planejada nos moldes da física. O que falar dos ateus de hoje, então? A própria distinção entre verdadeiro e falso, bem e mal, belo e feio, não é aceita. Nessas condições, que tipo de aspiração é possível?

Não é questão de culpar ateus ou qualquer outro grupo. Eles são apenas um sintoma radicalizado (e, ao mesmo tempo, parte da causa) de algo que perpassa toda a sociedade. Ao abandonar os valores de base de nossa civilização em prol de um sonho ilusório, não só deixamos de lado nossa real finalidade como não alcançamos este novo sonho e, para completar, tolhemos nossa própria capacidade de sonhar. A vida vai se tornando cada vez mais medíocre, e a concepção de um mundo melhor cada vez mais mesquinha e pequena.

É essa a impressão que a Europa me passa hoje em dia. Um povo que procura desesperadamente a felicidade onde ela não pode ser encontrada, e ao fazer isso mina as bases de sua própria civilização. Os prédios são magníficos, os museus inestimáveis, as bibliotecas verdadeiros universos; mas as pessoas que lá moram seriam incapazes de produzir, hoje em dia, algo semelhante.

Não sou pessimista. Acho que o pior já passou, e sinais de mudança já podem ser vistos. Mas o caminho é longo e árduo. Agora já está mais claro que há escolhas a serem feitas, lados a se tomar. Isso significará mais conflitos, mais debates e menos consenso, o que é bom. Pois ou os europeus acordam de seus devaneios, ou se extinguem; e há quem esteja pronto para tomar seu lugar. O arcebispo anglicano de Canterbury já considera tribunais para aplicar a lei sharia algo inescapável; um cartoon ou um vídeo são o bastante para provocar mortes; o sentimento de revolta e frustração nas grandes periferias é profundo e incontrolável. A Europa passa por uma fase decisiva de sua história, que poderá ser seu fim ou um novo começo.

13 comentários:

Julio disse...

Valeu, Joel, mas um texto para eu ler na tertúlia :D

Só tem uma frase ali que não entendi, sintática e contextualmente: "O arcebispo anglicano de Canterbury já considera tribunais para aplicar a lei sharia algo inescapável".

Essa sua coesão se aproxima da boa e velha prosa: simples e elegante, que 'esconde bem o jogo'. Acho que vc aprendeu com o Dr. Johnson...

Anônimo disse...

Caro Joel,

A perca da fé por parte dos Europeus vai, na minha opinião, muito além de apenas a fé do ponto de vista religioso. O Europeu perdeu fé nas pessoas.

Basicamente, o Europeu, no meio de todo o seu desenvolvimento cultural e intelectual, tornou-se um cínico, incapaz de ver o que quer que seja de bom que existe no mundo e nas acções das pessoas, preferindo, ao invés, relativizar as situações, desconstruindo-as com a sua capacidade intelectual de relativização.

Para um Europeu, a classe política está cheia de corruptos, os empresários são medíocres e tentam explorar a classe trabalhadora, o vendedor que lhe vendeu uma TV é um ladrão que só pensa no dinheiro, alguém que até lhe ofereceu uma t-shirt grátis só o fez por interesse próprio, dado que era para publicidade...

Não quero com isto dizer que não haja nada do que descrevi acima na sociedade Europeia. Há e muito. Mas, a visão pessimista e negativista do mundo é o que tolda a visão do Europeu, tornando-o incapaz de ver o bem e o bom quando ele realmente existe.

Quantas vezes ouvi argumentar que o altruísmo não existe na realidade, pois o indivíduo altruísta apenas está a fazer algo que lhe faz sentir bem e pensa, portanto, em si quando age de forma altruísta.

E, se assim é, se todos as pessoas são egoístas, porque deverá o indivíduo Europeu ser mais do que os outros? Porque deverá o Europeu agir de boa fé, quando mais ninguém o faz?

E poderão os Europeus mudar? Digo que sim, porque ao contrário da maioria dos Europeus, eu sou um dos poucos que ainda tem fé nas pessoas e encaro a vida de uma forma positiva (alguns aqui chamar-me-iam ingénuo). De qualquer forma, a mudança será difícil. Porquê?

No livro “Silmarillion”, Tolkien descreve que Ilúvatar, a entidade suprema na história, criou Melkor, o súbdito mais inteligente, talentoso e criativo de entre todos os seus súbditos. Mas Melkor era cioso do seu trabalho e invejoso do trabalho dos outros, começando a dedicar-se a destruir o trabalho dos outros. Tanta destruição ele causou, e tão mal ele fez, que chegando a um ponto do livro, Tokien descreve que toda a inteligência, todo o talento e toda a criatividade de Melkor tinham morrido e que a única coisa que Melkor passou a saber fazer era destruir.

A onda de negativismo e pessimismo assola a Europa, puxando-a para baixo, quando os países do Mundo lutam com dentes e garras para subirem. Nos últimos 500 anos, a Europa, o continente mais pequeno do Mundo, foi o centro estratégico do mundo. Neste momento, o centro estratégico do mundo está a desviar-se para a Ásia. Na Europa encontram-se vários dos países e dos povos mais avançados do Mundo, que correm o risco de simplesmente tornarem-se completamente irrelevantes.

Cumps.

Thomas H. Kang disse...

Bom texto, Joel.
A impressão que tenho da Europa é parecida. E sabemos que muito do que há de positivo na Europa tem justamente a ver com sua herança cristã.

Anônimo disse...

Elogiar é fácil, não? O texto, porém, é sem dúvida bem escrito, e sem dúvida coeso.

Porém há algo de ingênuo em seu desenvolvimento e em sua conclusão alarmista: ou a Europa faz isso, ou morre. Além disso, haverá algo de original nesse diagnóstico: em que época histórica não houve sentimento de revolta e frustração? Em que época a expressão de idéias não causou mortes ou pelo menos desavenças?

É preciso tomar cuidado com os que só concordam. Há uma feminibilidade persuasiva em se concordar sempre. (e talvez uma masculinidade que ousa ser agressiva em se questionar sempre.)

Mas o ponto é: quando esse continente mãe não viveu em estado de guerra? Quando esse continente foi tão unido e tão pacífico? E quando não viveu momentos decisivas?

Joel Pinheiro disse...

Olá Júlio. Obrigado pelos elogios, e principalmente pela crítica, que demanda uma explicação.

Minha frase se referia a um comentário que o arcebispo de Canterbury (Rowan Williams) fez recentemente: que a presença muçulmana na Inglaterra tornava inevitável o estabelecimento de tribunais que não sigam a lei inglesa, mas a sharia, para resolver contendas envolvendo muçulmanos. Segundo ele, é perigoso tentar forçar a todas as pessoas o mesmo código legal. Essa afirmação gerou muita polêmica na Inglaterra.

Joel Pinheiro disse...

Ulaikamor, acho que você tem um ponto.

Parece-me que os europeus oscilam entre esse individualismo e "ausência de fé no homem" e um idealismo ingênuo no homem.

O filme "Edukators" ilustra bem isso: há os jovens revoltados que tentam lutar, em vão, por um mundo melhor (em vão porque os meios que eles utilizam não poderiam nunca trazer o efeito desejado) e o empresário que quer apenas garantir o seu próprio comforto, e que na juventude fora também um revolucionário idealista.

Essa crença de que não existe altruísmo e de que toda ação é egoísta (pois satisfaz os desejos de quem age em agir daquela maneira) é mesmo uma praga! Não só na Europa, mas também nas faculdades brasileiras e mais tantos outros lugares, ela parece se assentar facilmente nas mentes das pessoas. Ninguém acredita de verdade nisso, até suas últimas conseqüências; mas é uma boa tática para se justificar todo tipo de pequeno egoísmo.

Joel Pinheiro disse...

Obrigado pelas críticas, Adriano.

É verdade: a Europa sempre viveu em guerras, de um tipo ou de outro. O que considero alarmante não é o fato de existir uma guerra, mas sim a natureza da atual.

As idéias defendidas e vividas na prática por grande parte da população européia de hoje em dia têm como conseqüência a extinção dessa mesma população, e de tudo o que ela produziu. E no plano individual, levam os indivíduos a ter vidas muito aquém do que poderiam almejar.

Muitas idéias perigosas e práticas desastrosas já se apoderaram da Europa no passado. Mas parece que o nível do buraco atual é inédito. Não é?

Anônimo disse...

Joel,

Obrigado pela resposta simpática.

Mas creio que não, a Europa não vai pior do que já foi. Pensando diacronicamente, o continente já correu o risco de ser islamizado; o continente já teve dois papas; o continente já teve guerras fraticidas; o continente já teve papas que patrocinaram grandes orgias e até o episódio de um deles que mandou desenterrar o antecessor para amaldiçoá-lo. Diantes desses fatos do passado, a Europa hoje é quase o reino dos céus.

Joel Pinheiro disse...

Adriano, você cita casos de ações que geravam escândalo mesmo na época em que ocorriam.

Um papa que patrocinasse uma orgia não poderia se gabar disso publicamente, pois toda a população sabia que aquilo era errado, inclusive ele mesmo.

Hoje em dia, é vista com maus olhos a pessoa que se opõe à orgia!

E isso numa sociedade na qual grande parte das pessoas nega que sequer existem bem e mal.

A crise dos valores e das idéias (que sempre engendra uma crise nos costumes) é muito mais grave do que os escândalos de alguns indivíduos poderosos numa sociedade que ainda se guie por valores positivos.

Anônimo disse...

Será que toda "a população" se indignava contra as orgias? O Carnaval, por exemplo, «desde sempre» foi um momento de suspensão das regras... e o Antigo Testamento mesmo relata casos de um pai que, com o consentimento de Deus, copulou com as duas filhas. Mas era para "salvar a raça humana", depois de Sodoma; como se dessa cópula dependesse o destino do resto da humanidade.

Quanto a quase todo mundo achar que ser a favor de orgia é o "certo" hoje, só posso pensar que deve haver algum erro aí. Isso provavelmente não é unanimidade nem no Crusp.

Joel Pinheiro disse...

Você se refere a Ló e suas filhas, os sobreviventes de Sodoma?

O caso foi diferente: eles haviam ido morar nas montanhas, e estavam sozinhos.
Foram as filhas que, vendo que não encontrariam marido, tiveram a idéia de engravidar do pai.

Para conseguir isso, embebedaram-lhe duas vezes, para que ele não percebesse o que acontecia.

Até onde eu saiba, Deus não deu qualquer consentimento a essa ação das filhas de Ló.

Joel Pinheiro disse...

Um adendo:

Assisti hoje ao filme "Idade da Inocência" (uma tradução melhor seria "Idade das Trevas").
É interessante ver um diagnóstico quase idêntico vindo de alguém com visões tão diferentes das minhas.

Anônimo disse...

Lembro do Julio ter contado outra versão. Mas whatevah. Depois que ele não publicou meu comentário sobre Joana D'Arc virou franguinho. d: