sexta-feira, janeiro 04, 2008

Fé e Dúvida

Fé implica acreditar em algo que não se pode provar. Duvidar é levantar objeções, encontrar motivos para não se aceitar uma tese. São dois atos, portanto, contrários. Por esse motivo, parece que nada é mais oposto à fé do que a dúvida, e que, assim, quem tem fé tem que banir de sua mente toda inquietação e dúvida.

A mente humana deseja a verdade. É universal: ninguém gosta de estar errado, ou de ser enganado; todos procuram ter crenças corretas, ainda que nem sempre consigam. Nessa busca pela verdade, a dúvida tem o papel essencial de testar a força e a fundamentação de todas as crenças que se apresentam à nossa mente.

No trajeto pelo qual passam as teses desde a primeira vez que nos deparamos com elas até sua transformação em crenças bem fixadas, a dúvida é um obstáculo que dificulta o percurso de todas, de modo que apenas as mais bem fundamentadas consigam completá-lo. É a dúvida que nos impede de acreditar em teses absurdas e nas mentiras do primeiro charlatão que aparecer em nosso caminho. Astrologia, leitura de borra de café, planos mirabolantes para enriquecer; é por causa da dúvida, do nosso senso crítico, que eles não se apoderam de nossas mentes. Aqueles que não exercitam sua faculdade de duvidar, de levantar objeções e dificuldades, tornam-se crédulos.

A virtude é um meio termo entre a deficiência e o excesso. Se a ausência de dúvida nos torna crédulos, o excesso nos torna céticos. Não há, afinal, tese da qual não possamos duvidar. É sempre possível encontrar objeções ainda não respondidas; e, quando o forem, objeções à resposta. Que nossos pais são de fato nossos pais, que nossos amigos falem a verdade, que os fatos narrados nos jornais sejam verídicos; na aceitação de todos esses há um elemento de fé, já que não são diretamente verificáveis.

Coloque obstáculos muito altos na pista, e nem os melhores atletas conseguirão ultrapassá-los. Nossa mente não chegará de forma alguma à verdade, sua finalidade. É sempre possível que o marido esteja sendo traído pela esposa; mas essa mera possibilidade teórica não deve levá-lo a duvidar de sua mulher. O enciumado doentio que faz isso age mal. E a fé, como a confiança, depende de um posicionamento pessoal. Reconhecemos aquilo como essencial para nossa vida, vemos que faz sentido, e há evidências em seu favor: portanto, frente às diversas dúvidas, damos-lhe o benefício da dúvida.

Além disso, a dúvida não revela sempre falhas na tese sendo avaliada; pode revelar, antes, o conhecimento insuficiente de quem a levanta. Quando um aluno, em classe, levanta uma dúvida, não o faz, em geral, para refutar o que o professor expõe, mas para entender melhor.

A dúvida que serve de desculpa para não crer, essa é contrária à fé. Mas se mantida dentro dos padrões da razoabilidade, vem, antes, em seu auxílio: impede que aceitemos qualquer crença, ainda que irracional. E ainda mais: obriga-nos a estudar aquilo que aceitamos ser essencial para nossa alma. Para o homem de fé, a dúvida não é um pretexto para deixar de crer, e sim um estímulo a se aprofundar ainda mais em suas crenças.

Ainda que desconheça as respostas para diversos questionamentos, tem plena convicção de que isso se deve à sua própria ignorância. As respostas que ainda não conhece existem e podem ser encontradas se procuradas com diligência. Como disse Sto. Anselmo: “Não procuro entender para crer, mas crer para entender. Pois creio também nisto: que se não crer, não entenderei”.

11 comentários:

Anônimo disse...

O complemento de Anselmo dá razoabilidade à tese — "[p]ois creio também nisto: que se não crer, não entenderei".

Quanto ao texto, a tendência de colocá-lo em dúvida é zero.

Só resta, pois, dizer: parabéns! (do fundo do coração, creia.)

Anônimo disse...

Penso que seja necessário ter fé antes de ter dúvida, dado que, quando temos dúvida, estabelecemos uma comparação entre algo novo que nos foi apresentado e algo antigo que considerávamos ser a verdade absoluta.

DBI disse...

Descartes, por exemplo, começa todas as suas dúvidas partindo de uma fé em algo que, a ele, é absoluto ("penso, logo existo"). Isso, parece-me, é obrigatório; mesmo que depois possamos alterar as premissas.

Bem, na verdade, apenas comento seu texto porque ele foi muito bem escrito, ainda que (você verá), parece, discordemos em quase tudo. Mas, se ele é bem escrito, o é porque levanta questões pertinentes.

Nem toda mente humana necessariamente quer ter acesso à verdade, ou a deseja; muitos, crendo que ela não existe, preferem especular sobre o que têm acesso e, sim, duvidar do resto. Mas, considerando aquilo a que se tem acesso, tenta-se aprofundar naquilo (tudo é vastíssimo, nunca tendo um fim, acredito).

Não sei se é exatamente a dúvida que nos faz não acreditar em qualquer charlatão. A dúvida, talvez, fosse mais propícia a nos fazer acreditar: afinal, "vai que ele está certo". O que nos faz evitar a tolice é, acredito, a razão, que nos permite discernir (há, também, a experiência etc.).

Mas o que mais me encucou neste texto foi: você desde sempre teve fé ou, a partir de uma premissa, pôde acreditar em Deus (sou novato no blog, mas me parece tendenciosa essa argumentação toda -- o que está longe de ser ruim)? Voltando a Descartes, só para exemplificar, ele não partiu da premissa de que Deus existe mas chegou a ela...

E, se eu parecer confuso, perdoe; é que este uísque e esta madrugada...

Joel Pinheiro disse...

Obrigado pelos comentários, Diego.
Vou tentar responder em partes.

Quanto a todos os homens quererem conhecer a verdade, acho que estamos de acordo. Você diz que muitos se limitam a certos campos, ignorando voluntariamente o resto. Isso acontece mesmo; mas naqueles campos nos quais se interessam, os homens procuram saber a verdade, e não a mentira.

Quanto a acreditar que a verdade não existe, acho que ninguém pensa verdadeiramente assim. Muita gente diz "a verdade não existe", mas ninguém realmente acredita nisso.
Mesmo o relativista mais convicto ficará chateado se descobrir que alguém mentiu para ele; e feliz se conseguir entender algo que antes não entendia. Ou seja, ele também procura a verdade.

A dúvida é uma atividade da nossa inteligência, ou seja, da razão. Então você tem razão ao dizer que é a razão que nos leva a não aceitar teses absurdas. Mas por que processo? Muitas vezes, é pela dúvida; questionando se é possível que a tese apresentada seja falsa, e procurando motivos para questionar sua veracidade.

Acho que temos que definir mais claramente o que é fé (no sentido psicológico, e não teológico, do termo). Não é toda e qualquer crença que se deve à fé. Há certas teses que aceitamos por serem conclusões necessárias de outras também verdadeiras.
E há aquelas que são intuitivas, pois a negação delas seria contraditória, ou porque a própria operação da mente as pressupõe logicamente.
Assim, eu não diria que Descartes tinha fé no "penso, existo"; isso é algo impossível de se duvidar. Não é, portanto, uma questão de fé, mas de conhecimento auto-evidente.

Quanto à existência de Deus, ela pode ser acreditada pela fé. Mas não só por fé. É também possível provar racionalmente que Deus existe. E se algo é provado, não é fé.

Aqui no blog mesmo eu fiz um post sobre a existência de Deus. Hoje em dia mudaria algumas coisas na minha exposição daquele argumento (que não é originalmente meu, mas tem origens em S. Tomás de Aquino); mas, ainda assim, acho que trilha com sucesso um caminho para se provar a existência de Deus.

http://tavista.blogspot.com/2006/09/duas-vias-para-existncia-de-deus.html

Thomas H. Kang disse...

Encontrei essa frase, supostamente de Agostinho em algum lugar:

Queres compreender? Crê! - Se não tiveres compreendido - crê. O intelecto é o servo da fé. Assim, não queiras compreender para seres capazes de crer. Pelo contrário, crê para que possas compreender, pois "se não crerdes, não compreendereis" (Isaías 7.9).

Santo Agostinho (354-430)


Excelente post, abraço!

Joel Pinheiro disse...

Opa, obrigado pela citação, Thomas.

Eu sabia que a frase de Sto. Anselmo tinha inspiração em Agostinho; mas não tinha idéia de que ela era praticamente toda tirada de lá.

Você tem alguma idéia de onde ela se encontra?

DBI disse...

Depois que eu comentei, fiquei pensando se não tinha parecido um pouco rude. He. a intenção nao era essa. Bem longe disso, aliás.

Na verdade, numa época tinha tentado acreditar em Deus, mas partindo da razão não dá. E eu admiro quem tem sua fé consolidada por uma instituição.

Abraço!

Joel Pinheiro disse...

Não se preocupe: você não pareceu nada rude.

Quanto à crença em Deus:

Existem duas possibilidades.

Ou o universo é criado por Deus, as coisas obedecem a uma ordem maior e a vida humana tem sentido. Esta vida é uma etapa de algo maior, que entenderemos apenas na eternidade. Ainda assim, as ações e relações humanas têm uma importância que transcende essa existência finita.

ou

Tudo o que existe veio do nada, sem motivo algum, e a existência do homem é um acidente ainda mais improvável e sem qualquer sigfnificado. A vida é um período curto de prazeres e dores que logo recai no nada de onde veio por acaso, e para o qual tudo se dirige. Nada faz sentido algum e a existência é um absurdo completo.

Ironicamente, é essa segunda visão que recebe, hoje em dia, o nome de "racional".

Por que existe alguma coisa ao invés de não existir nada? Estamos todos aqui, mas não precisava ser assim. "How come?"

Thomas H. Kang disse...

Eu a retirei de um pequeno livrinho de citações supostamente de Agostinho editado por Lindolfo Weingärtner.

Augustinus, Aurelius (Santo Agostinho). Flores do Jardim de Agostinho: a voz de um pai da Igreja. Curitiba: Encontro, 2005.

Aparentemente, são frases retiradas de um livro editado na Alemanha em 1911 por um estudioso das obras de Agostinho chamado Eugenius Zeller, que pesquisou sermões e obras sistemáticas de Agostinho. Acho que é confiável.

Joel Pinheiro disse...

Sim, sim. Não tenho dúvidas de que seja realmente de Sto. Agostinho.

Minha dúvida é apenas no sentido de saber em qual obra!

Thomas H. Kang disse...

Pena, cara... não sei! Se descobrir, me avisa, hehe!

abs!