Onde desenhar a linha divisória entre o que pode e o que não pode ser feito? Como foi argumentado anteriormente, queremos todos viver numa sociedade na qual, se for necessário, uma pessoa possa pisar no gramado de outra para prestar socorro a alguém que corre perigo iminente. Ao mesmo tempo, rejeitamos uma sociedade na qual a tortura de inocentes seja tida como meio válido de se conseguir informações, por mais importantes que sejam. O costume de cada povo deve ser levado em conta na formulação das leis; mas não qualquer costume! Como fazer essas distinções?
Certamente não será a priori. Pisar no gramado e destruir uma casa são duas coisas bem diferentes, mas entre elas há uma variação gradual e sutil; a escolha de qualquer ponto como divisor seria arbitrária. Como, então, fazer a distinção entre o permitido e o proibido, sem cair na absolutização grosseira de um direito como fazem os anarco-capitalistas com a propriedade, que permite tantas injustiças?
O que parece faltar aos anarco-capitalistas é a constatação de que o conhecimento sobre a vida humana nos é dado pela experiência. A distinção entre ações boas e más não pode ser feita a priori, mas apenas dentro de contextos concretos. Qual é a quantidade ideal de comida que se deve pôr no prato? Obviamente, assim em abstrato, é impossível responder. Depende de inúmeras variáveis (idade e tamanho da pessoa, metabolismo, nível de cansaço, de fome, etc) que variam caso a caso. Isso não quer dizer que não haja diferenças objetivas entre o temperante e o glutão, e sim que tais diferenças não são articuláveis abstratamente; trata-se de um conhecimento prático, que adquirimos com experiência de vida e que não pode ser separado dela.
A virtude pela qual julgamos corretamente as diversas situações e escolhemos o melhor curso de ação chama-se prudência. Sabemos o que é o bem, onde queremos chegar: mas o mundo nos apresenta tantas circunstâncias diferentes que é impossível traçar uma regra de ação que valha para todos os casos. O homem prudente é aquele que descobre o melhor jeito de se aproximar desses fins dadas as possibilidades que a realidade concreta lhe oferece. Isso não quer dizer que tudo possa ser lícito dependendo das circunstâncias: há meios intrinsecamente maus, em si mesmos contrários ao bem do ser humano, que não devem nunca ser utilizados, mesmo para alcançar um fim bom. Mas fora desses casos extremos, há toda uma gama de possibilidades que podem ser bem ou mal utilizadas dependendo da situação em que nos encontramos.
O sistema legal e jurídico deve se pautar pela prudência. É por meio dela que um juiz pode determinar se uma certa violação de um direito de propriedade foi justificada para se garantir a preservação de um bem ainda maior, salvar uma vítima de algum perigo sério, ou se foi desproporcional e injustificada. Os anarco-capitalistas tendem a rejeitar esse tipo de julgamento que não pode ser feito a priori, mas mesmo eles, para organizar a sociedade com base exclusivamente na propriedade privada, teriam que aceitá-lo.
Na sociedade anarco-capitalista, relações voluntárias são lícitas, e involuntárias, coercitivas, são ilícitas. Mas a distinção entre o voluntário e o involuntário não é tão simples como pode parecer à primeira vista: há uma variação gradual entre o negócio mutuamente benéfico para o qual ambas as partes concordam livremente e o assalto à mão armada no qual uma das partes é obrigada a entregar a carteira. Um forte rapaz de rua pede dinheiro em tom de voz ameaçador a um motorista: do ponto de vista do motorista, uma ameaça foi feita, e ele entrega o dinheiro a contra-gosto; do ponto de vista do pedinte, o motorista era totalmente livre para ajudar ou não. Determinar se houve ou não coerção depende de um julgamento das circunstâncias e dos agentes envolvidos, do qual nem mesmo o simples código legal libertário pode prescindir.
O juízo acerca das circunstâncias particulares terá de existir mesmo no mundo libertário. Aceitá-lo não significa introduzir arbitrariedade no ordenamento legal, e sim adequar esse ordenamento à complexidade do mundo real.
Certamente não será a priori. Pisar no gramado e destruir uma casa são duas coisas bem diferentes, mas entre elas há uma variação gradual e sutil; a escolha de qualquer ponto como divisor seria arbitrária. Como, então, fazer a distinção entre o permitido e o proibido, sem cair na absolutização grosseira de um direito como fazem os anarco-capitalistas com a propriedade, que permite tantas injustiças?
O que parece faltar aos anarco-capitalistas é a constatação de que o conhecimento sobre a vida humana nos é dado pela experiência. A distinção entre ações boas e más não pode ser feita a priori, mas apenas dentro de contextos concretos. Qual é a quantidade ideal de comida que se deve pôr no prato? Obviamente, assim em abstrato, é impossível responder. Depende de inúmeras variáveis (idade e tamanho da pessoa, metabolismo, nível de cansaço, de fome, etc) que variam caso a caso. Isso não quer dizer que não haja diferenças objetivas entre o temperante e o glutão, e sim que tais diferenças não são articuláveis abstratamente; trata-se de um conhecimento prático, que adquirimos com experiência de vida e que não pode ser separado dela.
A virtude pela qual julgamos corretamente as diversas situações e escolhemos o melhor curso de ação chama-se prudência. Sabemos o que é o bem, onde queremos chegar: mas o mundo nos apresenta tantas circunstâncias diferentes que é impossível traçar uma regra de ação que valha para todos os casos. O homem prudente é aquele que descobre o melhor jeito de se aproximar desses fins dadas as possibilidades que a realidade concreta lhe oferece. Isso não quer dizer que tudo possa ser lícito dependendo das circunstâncias: há meios intrinsecamente maus, em si mesmos contrários ao bem do ser humano, que não devem nunca ser utilizados, mesmo para alcançar um fim bom. Mas fora desses casos extremos, há toda uma gama de possibilidades que podem ser bem ou mal utilizadas dependendo da situação em que nos encontramos.
O sistema legal e jurídico deve se pautar pela prudência. É por meio dela que um juiz pode determinar se uma certa violação de um direito de propriedade foi justificada para se garantir a preservação de um bem ainda maior, salvar uma vítima de algum perigo sério, ou se foi desproporcional e injustificada. Os anarco-capitalistas tendem a rejeitar esse tipo de julgamento que não pode ser feito a priori, mas mesmo eles, para organizar a sociedade com base exclusivamente na propriedade privada, teriam que aceitá-lo.
Na sociedade anarco-capitalista, relações voluntárias são lícitas, e involuntárias, coercitivas, são ilícitas. Mas a distinção entre o voluntário e o involuntário não é tão simples como pode parecer à primeira vista: há uma variação gradual entre o negócio mutuamente benéfico para o qual ambas as partes concordam livremente e o assalto à mão armada no qual uma das partes é obrigada a entregar a carteira. Um forte rapaz de rua pede dinheiro em tom de voz ameaçador a um motorista: do ponto de vista do motorista, uma ameaça foi feita, e ele entrega o dinheiro a contra-gosto; do ponto de vista do pedinte, o motorista era totalmente livre para ajudar ou não. Determinar se houve ou não coerção depende de um julgamento das circunstâncias e dos agentes envolvidos, do qual nem mesmo o simples código legal libertário pode prescindir.
O juízo acerca das circunstâncias particulares terá de existir mesmo no mundo libertário. Aceitá-lo não significa introduzir arbitrariedade no ordenamento legal, e sim adequar esse ordenamento à complexidade do mundo real.
3 comentários:
falei algo que é sobre isso mas não é sobre isso no meu blog. Apenas um pouco da visão de um grande teólogo luterano sobre a ética apriorística.
Caro Joel,
Penso que o artigo cobre apenas metade da questão (ou possivelmente não percebi o objectivo final do artigo).
De qualquer forma, o título é expressivo o suficiente quando diz “Ordem Legal”, sendo exactamente este ponto problemático para mim. Quando penso na natureza das acções humanas e do que pode, ou não, um indivíduo fazer, considero duas situações: uma situação em que há ordem, ou seja, o estado criado consegue garantir o cumprimento das leis existentes, e uma situação em que não há ordem, ou seja, o estado não consegue garantir o cumprimento das suas leis. Num à parte, penso ainda existir mais uma situação necessária de análise: a situação em que não existe uma sociedade, mas ainda não pensei muito acerca disso… ;)
Penso que o teu último parágrafo traz uma boa definição do como uma sociedade, onde existe ordem, deve funcionar, ou seja, o quadro legal deve existir para ser cumprido, mas deve também estar aberto às excepções das circunstâncias. E isto porque poucas, ou mesmo nenhumas, acções por parte do indivíduo podem-se considerar sempre boas, ou más, quaisquer que sejam as circunstâncias.
De facto, e pelas minhas próprias palavras, o indivíduo deve-se gerir por uma série de valores, que vão desde o desejo de liberdade individual, o sentido de sociedade, o dever cívico, o sentido de estado, …, que quando conjugados levam a um julgamento final acerca da rectitude da acção. As prioridades associadas a estes valores parecem, no entanto, diferir de indivíduo para indivíduo, quer por ignorância, por preferência, por influência, ou mesmo por ideias incorrectas ou mal concebidas.
Relativamente à situação onde não existe ordem na sociedade, toda a escala de prioridade dos valores é distorcida. Novamente aqui, o nível de distorção depende de indivíduo para indivíduo, sendo que para certos indivíduos, como julgo ser o caso do Joel, as prioridades associadas aos valores aplicados a uma sociedade onde existe ordem são imutáveis e aplicam-se sempre qualquer que seja a situação.
E aqui é o ponto de discordância e julgo que tais equívocos já causaram graves dissabores aos amantes da liberdade e da democracia ao longo da história da humanidade. A mais recente foi a morte da candidata à presidência do Paquistão Benazir Bhutto, que, na minha opinião, morreu porque queria ser eleita democraticamente num país onde não existe democracia. Outro grande exemplo é a Guerra Civil Espanhola, onde mesmo após o início da guerra, o governo Republicano continuou a governar democraticamente um país que já não era democrático há muito tempo.
Explorando mais a questão da Guerra Civil Espanhola, a rebelião de Franco, quebrando com a ordem existente, ou desordem existente, e impondo à força a sua ordem, acabou por resultar nesta facção beligerante onde a ordem realmente existia e as regras eram cumpridas, isto não querendo encobrir as atrocidades cometidas. No entanto, onde não existia ordem era no lado republicano, dentro do qual as diferentes facções competiam entre si, cometendo atrocidades contra os próprios aliados. O mais gritante foi como os comunistas estalinistas foram se livrando, por ordem de Stalin, dos anarquistas e trotskyistas, tudo por debaixo da ordem, ou desordem, republicana e “democrática”.
E o que dizer da rebelião de Franco, tão condenada por tantos? Muitos actos horrendos foram cometidos, mas é também verdade que a ordem acabou por ser restaurada, num país em que diariamente eram mortas centenas de pessoas e dezenas de edifícios eram destruídos. A realidade também pouco expressada é que, décadas mais tarde, a ordem estabelecida, através da brutalidade e do derramamento de sangue, acabou por dar origem a uma nova sociedade, realmente democrática, onde a lei é cumprida, e usufruindo da prosperidade das nações mais avançadas do planeta. Mais do que isso, um país em que foram restaurados totais direitos civis e políticos às facções perdedoras (note-se que quem governa agora a Espanha é o Partido Socialista).
Com isto, o que era injustificável numa situação, tornou-se completamente justificável noutra. Numa situação em que não havia respeito por quaisquer dos valores mais consagrados da humanidade, a violação desses mesmos valores levou ao renascer de uma sociedade respeitadora desses valores.
Com o meu posto, pretendo cobrir a parte do artigo que penso não ter sido explorada completamente, conseguindo-se assim uma análise que cobre possivelmente todo o espectro das acções humanas na perspectiva do juízo dos valores associados.
Como nota final, devo acrescentar que este post não deve ser tomado como um apoio, justificação ou desculpa para as ditaduras que existem ou existiram. O post deve ser interpretado apenas como uma análise sobre a extensão das acções humanas, os valores de juízo associados e os respectivos objectivos finais.
Me ajude... A sociedade pode determinar o que o individuo deve fazer?
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