quarta-feira, setembro 27, 2006

Duas Vias para a Existência de Deus

Existe Deus? Como saber? É difícil, impossível até, pensar diretamente sobre o que está completamente fora da nossa experiência. Mas também não é possível deixar essa questão fundamental de lado só porque ela parece insolúvel à primeira vista. Façamos, então, o caminho que parte do familiar para chegar ao desconhecido. Voltemos nossa atenção para o mais prosaico dos seres: digamos, um cachorro. Todo mundo entende o que é um cachorro, ou seja, conhece sua essência (essência é aquilo que é inteligível em um determinado ser, que faz com que ele seja o que é). Mas o conhecimento da essência desse ser não nos diz se ele existe de fato ou não. Afinal, também entendemos o que é um unicórnio, mas nem por isso acreditamos que ele exista. Com cachorro o mesmo vale: poderia perfeitamente não existir cachorro algum, e meu entendimento do que é um cachorro continuaria inalterado. Conclui-se, portanto, que essência e existência são coisas separadas; não é nada na essência do cachorro que faz com que existam cachorros.

Nada pode ser a causa de sua própria existência. Se não fosse assim, algo teria que existir antes de si mesmo (para poder ser a causa de si mesmo), o que é um absurdo (nenhum cachorro é seu próprio pai). Ora, se a essência dos seres não se confunde com a existência e se nada pode causar a si mesmo, então todo ser que existe tem como causa algum outro ser. O universo consiste numa enorme malha ou cadeia de seres, os quais dependem uns dos outros para existir. Bom, então ou existe algum ser que não dependa de outro para existir e que seja a causa primeira de todos os outros seres, ou então o que existe é uma cadeia de seres que não existem por si sós. Mas numa cadeia dessas nenhum dos membros teria como existir, pois cada um deles dependeria de outros, que por sua vez dependeriam de outros, etc. É preciso algum ser externo a essa cadeia e existente por si só para poder causar a própria cadeia. Caso contrário, teríamos de assumir que o universo veio do nada, ou que causou a si mesmo, ambos absurdos. Portanto, sabemos que existe um ser cuja existência não depende de outro; um ser tal que sua essência é a existência, e que por sua vez é a causa primeira de todos os outros. É a esse ser que chamamos Deus.

Voltemos às coisas simples da experiência para retomar o itinerário rumo ao metafísico e desconhecido. Nosso universo não é puro caos. Muito pelo contrário, conhecemos diversas leis que regem o comportamento dos corpos e dos seres vivos; o fato de conseguirmos entender e diferenciar um cachorro de uma pedra já significa que existe alguma ordem nas coisas (e também na nossa mente que percebe e compreende), uma limitação ordenada que faz com que algo seja uma rocha e não um cão.

Não há nenhum motivo lógico para existir qualquer lei ou ordem na realidade; não há, a priori, nenhuma necessidade pela qual pedras devam cair ao invés de subir ou girar em espiral e mudar de cor ou ainda agir de forma totalmente imprevisível. Elas só se comportam de um jeito determinado e previsível por causa de alguma lei, princípio ordenador, que não é logicamente necessário. E o que são leis e ordem? São o produto de alguma mente que as impõe na realidade. Se meu quarto está organizado, é porque alguém quis assim; ele nunca se organizaria por razão nenhuma. Da mesma forma, se uma ordem maior existe no universo (e se não existisse nenhum de nós viveria por um segundo sequer) é porque alguém a quis e a fez valer. Chamamos esse “alguém” de Deus.

Se algo existe, então Deus existe. Sem Deus, a existência de qualquer coisa torna-se uma impossibilidade lógica, e fica-se obrigado a afirmar que tudo foi causado pelo nada.

13 comentários:

Werther Vervloet disse...

Muto bom texto, Joel.

Anônimo disse...

Oi Joel,

Como requerido, cá estou.
Achei sua argumentação bastante interessante, mas falha em dois pontos:
"Nada pode ser a causa de sua própria existência" O que é a causa da existência de Deus? e o que é a causa dessa causa? E assim sucessivamente.
A outra falha é a não inclusão da infinitude do tempo. Por que, se o tempo é infinito em direção ao futuro, não posso dizer que ele também o é em direção ao passado? E, assim, fica possível pensar que o universo não teve começo, mas poderíamos apenas encontrar, no passado, uma sucessão de Big Bangs/Big Crunches.

Já existe uma outra parte do seu argumento que é bastante correlata com a teoria do Intelligent Design. É realmente uma teoria bastante forte, esta que está no penúltimo parágrafo do texto. O único argumento que eu consigo imaginar contra ela (e não é bem um argumento contra, mas uma teoria alternativa) é a capacidade da aleatoriedade criar ordem, como é o caso da Teoria da Evolução darwiniana.

Acho que é isso que tenho a dizer sobre o texto.

Abraços,
Rodrigo Gillon

P.S.:God save yo- err, the queen!

Joel Pinheiro disse...

Gillon,

É uma necessidade lógica que a Primeira Causa seja ela mesma sem causa. Ou seja, nada é a causa dela.
O meu argumento não é necessariamente baseado na impossibilidade de uma série temporal sem início, embora inclua isso também. Uma cadeia infinita (mesmo que no mesmo momento do tempo, como uma pirâmide de pessoas uma se sustentando na outra) precisa de alguma causa externa a ela, senão nenhum dos elos teria como existir.

Mas vamos ao caso da seqüência temporal sem início: suponha que o mundo não tenha tido um momento inicial. Sempre houve big bangs e big crunches sucessivamente, sem nenhum ponto inicial.
Bom, se isso for o caso, quantos big bangs devem ter já ocorrido antes do momento presente? Infinitos.
Mas quanto tempo demoraria para que infinitos big bangs tivessem passado? Tempo infinito.
E um período de tempo infinito nunca passaria. E portanto seria impossível que o momento presente ocorresse; ou qualquer outro momento que escolhêssemos (afinal, seja qual for o momento, seria verdade que infinitos big bangs teriam já acontecido antes dele, pois supomos que não houve momento inicial).
Assim, fica claro que, se não há momento de tempo inicial, então nenhum momento pode jamais ocorrer, pois necessitaria que tempo infinito tivesse já passado antes que ele acontecesse.
Mas todos nós estamos aqui e já presenciamos diversos momentos e fatos diferentes.
Portanto, o universo tem um início, e não é uma seqüência de eventos eventos sucessivos sem algum evento inicial.

Joel Pinheiro disse...

Quanto ao segundo argumento, é preciso se lembrar que uma ordem pode surgir espontâneamente apenas se for uma decorrência secundária de alguma outra ordem.

O processo de seleção natural dos organismos só é possível, por exemplo, se existirem as leis da física. É de certa forma uma decorrência de outras leis, princípios ordenadores.
Se não houvesse princípio ordenador nenhum, tampouco poderia haver qualquer ordem espontânea.

Espero que meus argumentos tenham sido claros e convincentes.

Muito obrigado por sua participação, Gillon!

Anônimo disse...

Olha só! Eu li, viu?! Hehe!

Só uma coisinha: Você se inspirou na Mitiko quando deu o exemplo da arrumação do quarto, não pensou?!

Um beijo!
Lydia

Anônimo disse...

Ah, sim! E o seu texto está de novo muito bem escrito!

Anônimo disse...

comunidade de filosofia,na qual veio o convite de ler o texto.Vou esmiuçar sua linha de raciocínio:

Primeiro você dá uma sentença: "Nada pode ser a causa de sua própria existência".

Depois cria a exceção: "É preciso algum ser externo a essa cadeia e existente por si só(...)sabemos que existe um ser cuja existência não depende de outro".

Esse argumento e essa linha de raciocínio é que faz com que ele seja parcial,incompleto,portanto totalmente falho,pois diz ser a explicação de tudo.Porque:

Essência e existência são palavras de difícil interpretação,e indefinidas.

O que você chamou de essência eu chamo de conceito pessoal.Todos nós temos um conceito do que é isso ou aquilo,e temos nossos próprios modos de chegar a esse conceito,e ele que difere um objeto de outro,quando os comparamos.

O que você chamou de existência eu chamo de conceito abstrato.Seria algo que está além de nosso conceito pessoal.Mas existe um problema: esse conceito também é pessoal,a única coisa que os separa,é que não negamos o que nossos olhos vêem na existência.A essência nós é que criamos,a existência apenas observamos.Afinal de contas tudo o que vemos,vemos do mesmo modo,estando nós em plena saúde mental ou não.Isso é empirismo.

Outra falha sua é apontar como absurdo um argumento,sem contra-argumentar,por parecer lógico a você.Se parece,porque não falou a respeito?Tenho certeza de que é inaceitável pensar que algo surgiu do nada.

Mas isso é essência,não existência,ou seja,é um conceito pessoal,não uma observação.Não temos obsrvação,pois simplesmente não podemos provar,nem ao menos ver a complexidade do universo.Isso faz com que tudo o que se diga a respeito de Deus não passe de pura idéia pessoal,e convenhamos,cada um vê Deus de seu próprio modo,nunca fora disso.Eu mesmo nunca o vi,mesmo procurando.

Cheguei à conclusão de que ele não precisa existir,eu o nego até o fim da vida,enquanto não o vir,pois o que vejo são apenas idéias pessoais de outros.Você mesmo construiu o mesmo argumento de Deus já descrito há seis mil anos,simplesmente porque pensou que nada pode surgir do nada.

É uma sentença,sempre levará a essa idéia,mas um indício parcial não prova nada,e você diz ter provas.Talvez sejam suficientes para você,e para quem acredita nelas.

Mas veja a armadilha(pelo menos se permita por um minuto,eu já soube como é difícil sair debaixo da asa protetora da certeza de Deus): É a idéia mais compensadora que existe,ela explica tudo,e faz o mundo todo ter sentido,tudo pode se basear nisso.E realmente por essa força,nosso mundo foi construído debaixo da idéia de Deus,existindo ou não as pessoas acreditam.E hoje,por causa disso,de muita coisa ter sido criada em cima desse conceito,desse alicerce,muitos acham que Deus criou tudo o que está debaixo de seu conceito,de sua idéia.

Mas o que eu vejo,isso sim eu vejo,são pessoas criando Deus.O tempo todo.Nunca vi alguém que nunca ouviu falar dessa ou daquela doutrina de repente se ver iluminado.Com exceção,claro,de coisas que os próprios religiosos contam.Ou seja,não há saída,as testemunhas são suspeitas.E para mim que estou fora desse meio essa é uma idéia falsa,parcial.

No final,de acordo com minhas palavras,Deus é alicerce,um ponto de apoio.E só vê quem o aceita.Quem não aceita só vê depois de ser atingido pela influência de quem vê.Mas dessa mesma maneira a Alemanha se tornou nazista,entende?

Além de tudo isso,e o grande motivo pelo qual eu saí de uma família de religiosos para me tornar agnóstico,é o luxo que isso proporciona.Deus é muito bom para quem sofre,e faz sofrer quem não sofre,pois estes sempre parecem culpados se forem comparados ao que sofrem,afinal quase nunca os ajudam,e de acordo com Deus é obrigatório que se ajude.

Deus é sonho de final de sofrimento,e pena para quem não sofre ou faz alguém sofrer.Não sabem as pessoas que o sofrimento está de mãos dadas com a felicidade,e que onde um está,o outro também está.Onde não há sofrimento,há vazio,e isso sim é ruim,experiência própria.

A beleza me afasta,ela é conveniente.Me soa como quem lê o texto e o acha belo,como se fosse suficiente para torná-lo verdadeiro.Apelo à simpatia não faz verdade,desde que ela não seja pessoal,e isso eu vejo em quase todos os textos relativos a religiosidade.

Joel Pinheiro disse...

O que chamo de absurdo é a afirmação "algo pode ser a causa de si mesmo".

Se algo é a causa de si mesmo, então a existência desse algo precede a própria existência desse algo. Isso viola o princípio da não-contradição, e portanto é absurdo.
Claro, quem não aceita o princípio da não-contradição não precisa concordar comigo. Há coisas que é impossível provar.

Note que Deus não é exceção ao princípio de que nada pode ser a causa de si mesmo. Deus não tem causa.
Nele, a essência é a existência. Ele é o Puro Ato de Ser.

Como sabemos que tal ser existe? Bom, se não existisse, nenhum outro ser (aqueles cuja essência não é a existência, como pedras e cachorros) poderia existir.
Se esses seres existem, então aquele ser que é Puro Ato de Ser também existe.

Você me diz que falar em essência é "opinião pessoal"; concordo que cada pessoa possa olhar um cão e ressaltar nele diferentes propriedades inteligíveis, diferentes aspectos de sua estrutura. Mas para que isso seja possível, é necessário que ele tenha de fato (e independente de nossas opiniões), uma estrutura inteligível, a qual nunca podemos esgotar, ou seja, entender completamente. E todas essas diferentes percepções não podem ser contraditórias entre si (se um diz que o cachorro é marrom, e outro que ele não é marrom, então um dos dois está errado).

Você usa a imagem de Deus como um alicerce no qual nossa civilização construiu muitas coisas. Mas essa imagem já leva à minha conclusão: se nossa civilização de fato construiu coisas, o alicerce não pode ter sido ilusório.
Se eu fizer minha casa com alicerces ilusórios, ela não subirá. Se minha casa está de pé (se a civilização construiu coisas com base em um dado alicerce), então o alicerce existe.

Por fim, você levanta a possibilidade de Deus ser apenas uma crença baseada em necessidades emocionais do homem. Mas será que é verdade? Você mesmo aponta que a crença em Deus faz muitas pessoas sofrerem.
Além disso, muitos são os ateus que afirmam que se sentem libertados e que só podem de fato aproveitar a vida sem Deus.
A existência de Deus, portanto, tem efeitos psicológicos nos dois sentidos: pode tanto causar conforto quanto preocupação e sofrimento, e de fato causa ambos por diferentes motivos em todos os que nele crêem.
Não se pode rejeitar Deus como uma mera resposta a necessidades psicológicas humanas; o ateísmo e o agnosticismo poderiam ser alvos da mesma exata objeção: são respostas a desejos humanos de prazer sem conseqüências, irresponsabilidade, etc.

Mas ainda mais importante: nenhuma alegação psicológica sobre quem defende uma posição pode ser usada como argumento contra aquela posição. Primeiro deve-se provar que a posição é falsa, ou ao menos que não há motivos objetivos para sustentá-la. Só depois disso pode-se fazer uso de um mecanismo psicológico para explicar por que os aderentes de tal posição acreditam naquilo que acreditam.

Anônimo disse...

Querido Joel:
Não posso negar que seu texto, como sempre, está muito bem escrito, repleto de argumentos lógicos e de um raciocínio que, ao que me parece, foi influenciado pelas idéias de Descartes.
Seria impossível, porém, ignorar comentários de grande relevância feitos por alguns de seus colegas.
Apesar da sua contra argumentação, sigo pensando que você cai em contradição ao dizer que “nada pode ser a causa de sua própria existência” e em seguida falar que “É uma necessidade lógica que a Primeira Causa seja ela mesma sem Causa. Ou seja, nada é a causa dela”.
Sei que você lerá meu comentário e dedicar-se-á exaustivamente a explicar a sua lógica de tal forma que eu acabe por desistir de escrever. Então, desde já, adianto que de qualquer forma acredito que a existência de Deus não é passível de comprovação. Seu texto não me fez acreditar mais ou menos em Deus. A minha crença está na minha fé e ela, por sua vez, não é movida pela racionalização de teorias.

Joel Pinheiro disse...

Ser causa de si mesmo é diferente de não ter causa.

Se não há Causa Primeira, então nada pode existir. Seja pelo problema temporal (para que o momento atual chegasse, seria necessário que tempo infinito tivesse passado, o que é impossível) ou pelo problema mais profundo de que a cadeia infinita como um todo não teria como existir, já que não tem causa e não é de forma alguma necessária (ou seja, sua existência é distinta de sua essência).

Salua, a fé não se opõe à razão. A fé vai mais longe do que a razão, mas de forma alguma a contradiz; pelo contrário, ambas devem andar juntas. Tudo o que a razão pode descobrir por si só é verdadeiro.
Claro, é possível conhecer a existência de Deus pela fé. É assim que ocorre com a maioria das pessoas.
Mas pela razão natural também é possível prová-la; é preciso apenas entender corretamente os argumentos

Anônimo disse...

Caro Joel,
Não sei se se recorda mas a um bom tempo atrás eu te insistia por um texto que discutisse esse assunto e você havia me prometido que ele existiria. Me lembro muito bem que pedi sua opinião (escrita) sobre a existência de Deus e você me disse que escreve-lá-ia em breve... O tempo passou e ao indagar sobre a demora você afirmou que o texto seria escrito, sim, antes que o presidente Lula fosse reeleito... Bom, você cumpriu sua promessa mas podemos concordar que "breve" não é a palavra certa...
Um rápido comentário: Eu já conhecia essa teoria, mas um pouco diferente. Não da idéia de que cada um dos seres dependeria de outros, que por sua vez dependeriam de outros, etc. mas da idéia da causa e feito: para todo o efeito, antes houve uma causa. para cada ação, cada acontecimento, cada movimento de molécula, ouve algo antes que exigisse isso, ou que pelo menos "permitisse" esse efeito. Bom, voltando o tempo, a evolução, a primeira divisão de células, a primeira grande explosão que fez surgir o universo, o primeiro "sim" (como diria Clarice Linspector) teve que ser dito, para que o primeiro efeito tenha acontecido, encadeando milhares outros. Esse primeiro "sim" é Deus. Ou pelo menos nos faz indagar sobre algo (alguém?) que QUIS que tudo isso acontecesse... De qualquer maneira, é só mais um jeito de confirmar sua teoria.
Sim, eu leio seu blog...
faloowsss

Joel Pinheiro disse...

MF, obrigado por seus comentários.
De fato, a observação do movimento que ocorre no mundo também pode nos levar ao conhecimento da existência de Deus.

Todos esses argumentos, que são semelhantes (partem de algo comum para provar que Deus existe) têm sua primeira aparição em Sto. Tomás de Aquino, filósofo medieval, que elaborou as 5 famosas provas da existência de Deus (ou 5 vias).

De certa forma, também, esse tipo de prova já está na Bíblia, quando S. Paulo diz:
"Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar."
-Romanos 1,20

Anônimo disse...

Amei !gaby.