quinta-feira, janeiro 24, 2008

Sem Deus, Sem Ética?

“Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Frase freqüentemente repetida, embora, creio eu, nem sempre entendida. Exprime uma verdade, mas de forma mais profunda do que normalmente se julga.

Têm razão os ateus que se revoltam contra ela, e replicam que não precisam de uma revelação divina para saber que assassinar é errado e que ajudar alguém em necessidade é certo. Por acaso o cristão condena o assassinato apenas porque a Bíblia diz “não matarás”? Claro que não.

A lei moral, ou seja, aquelas coisas que devemos fazer ou evitar para que sejamos pessoas melhores, decorre da própria natureza do homem. Percebemos racionalmente que certas ações são construtivas para a vida humana: permitem ao homem viver melhor. Já outras são destrutivas. O mandamento “não matarás” não é fruto de um capricho de Deus; é a expressão de uma condição necessária para a construção de um ambiente no qual os homens vivam bem. Assim, Deus instituiu a lei moral não ao dar os Dez Mandamentos a Moisés, e sim ao criar o primeiro homem.

Um ateu, ainda que não conheça a Deus, pode conhecer a natureza humana. Percebe que certas ações contribuem para a felicidade dos homens e outras não. Portanto, ele também é capaz de diferenciar o certo do errado, e, até certo ponto, agir com base nesse conhecimento. Assim, ao considerar a natureza humana em si mesma, conclui que, mesmo sem Deus, nem tudo deve ser permitido.

O problema surge quando considera a existência humana numa perspectiva mais ampla. Para o ateu, a existência do universo é um grande absurdo, um evento sem causa; o homem, um acidente improvável que logo desaparecerá. A vida humana é um breve momento de consciência, de prazeres e dores, entre dois vazios eternos, sem qualquer finalidade. Não passa de uma piada sem sentido do universo. Objetivamente, não há por que considerá-la mais valiosa ou importante do que a queda de uma pedra em Marte. Nessa perspectiva, qual o valor da felicidade humana? O mesmo que de todas as outras coisas: nenhum.

Assim, um ateu percebe o que é o bem para os homens, mas carece de motivo real para persegui-lo. Friamente falando, sua vida valeria tanto quanto a de uma árvore. Mas isso não significa que os ateus sejam necessariamente imorais; são, em geral, apenas incoerentes. Ao pensar sobre suas ações, suas vidas e sobre as pessoas à sua volta, supõem que valham alguma coisa, que sua existência tenha algum sentido. E é apenas por causa dessa ficção implícita, desse “esquecimento” temporário de que tudo não passa de átomos sem rumo, que um ateu valoriza o bem que percebe para si e para os demais, que cultiva sentimentos nobres, etc.

Que essa incoerência (uma incoerência boa, dado que o ateísmo levado às suas conclusões lógicas seria monstruoso) seja relativamente comum aos ateus não é surpreendente, pois a mente humana tende, espontaneamente, a rejeitar a idéia de que nada no universo tenha finalidade e que toda a raça humana, e tudo o que ela produziu, não passe de um acaso fortuito e irrelevante.

Assim, sem Deus, tudo seria permitido. Não pela falta de um legislador para revelar os mandamentos, mas sim pela falta de uma finalidade que valesse a pena ser perseguida. É apenas porque nas sociedades humanas ainda existem traços de religiosidade que os ateus que nelas vivem ainda pensam em termos morais e tentam, em alguma medida, alcançar valores elevados; não fosse por essa base espiritual, o ateísmo condenaria a população humana ou ao hedonismo bestial ou ao mais negro niilismo. E, conforme ela diminui, é para eles que nos dirigimos.

domingo, janeiro 13, 2008

A Ordem Legal e a Prudência

Onde desenhar a linha divisória entre o que pode e o que não pode ser feito? Como foi argumentado anteriormente, queremos todos viver numa sociedade na qual, se for necessário, uma pessoa possa pisar no gramado de outra para prestar socorro a alguém que corre perigo iminente. Ao mesmo tempo, rejeitamos uma sociedade na qual a tortura de inocentes seja tida como meio válido de se conseguir informações, por mais importantes que sejam. O costume de cada povo deve ser levado em conta na formulação das leis; mas não qualquer costume! Como fazer essas distinções?

Certamente não será a priori. Pisar no gramado e destruir uma casa são duas coisas bem diferentes, mas entre elas há uma variação gradual e sutil; a escolha de qualquer ponto como divisor seria arbitrária. Como, então, fazer a distinção entre o permitido e o proibido, sem cair na absolutização grosseira de um direito como fazem os anarco-capitalistas com a propriedade, que permite tantas injustiças?

O que parece faltar aos anarco-capitalistas é a constatação de que o conhecimento sobre a vida humana nos é dado pela experiência. A distinção entre ações boas e más não pode ser feita a priori, mas apenas dentro de contextos concretos. Qual é a quantidade ideal de comida que se deve pôr no prato? Obviamente, assim em abstrato, é impossível responder. Depende de inúmeras variáveis (idade e tamanho da pessoa, metabolismo, nível de cansaço, de fome, etc) que variam caso a caso. Isso não quer dizer que não haja diferenças objetivas entre o temperante e o glutão, e sim que tais diferenças não são articuláveis abstratamente; trata-se de um conhecimento prático, que adquirimos com experiência de vida e que não pode ser separado dela.

A virtude pela qual julgamos corretamente as diversas situações e escolhemos o melhor curso de ação chama-se prudência. Sabemos o que é o bem, onde queremos chegar: mas o mundo nos apresenta tantas circunstâncias diferentes que é impossível traçar uma regra de ação que valha para todos os casos. O homem prudente é aquele que descobre o melhor jeito de se aproximar desses fins dadas as possibilidades que a realidade concreta lhe oferece. Isso não quer dizer que tudo possa ser lícito dependendo das circunstâncias: há meios intrinsecamente maus, em si mesmos contrários ao bem do ser humano, que não devem nunca ser utilizados, mesmo para alcançar um fim bom. Mas fora desses casos extremos, há toda uma gama de possibilidades que podem ser bem ou mal utilizadas dependendo da situação em que nos encontramos.

O sistema legal e jurídico deve se pautar pela prudência. É por meio dela que um juiz pode determinar se uma certa violação de um direito de propriedade foi justificada para se garantir a preservação de um bem ainda maior, salvar uma vítima de algum perigo sério, ou se foi desproporcional e injustificada. Os anarco-capitalistas tendem a rejeitar esse tipo de julgamento que não pode ser feito a priori, mas mesmo eles, para organizar a sociedade com base exclusivamente na propriedade privada, teriam que aceitá-lo.

Na sociedade anarco-capitalista, relações voluntárias são lícitas, e involuntárias, coercitivas, são ilícitas. Mas a distinção entre o voluntário e o involuntário não é tão simples como pode parecer à primeira vista: há uma variação gradual entre o negócio mutuamente benéfico para o qual ambas as partes concordam livremente e o assalto à mão armada no qual uma das partes é obrigada a entregar a carteira. Um forte rapaz de rua pede dinheiro em tom de voz ameaçador a um motorista: do ponto de vista do motorista, uma ameaça foi feita, e ele entrega o dinheiro a contra-gosto; do ponto de vista do pedinte, o motorista era totalmente livre para ajudar ou não. Determinar se houve ou não coerção depende de um julgamento das circunstâncias e dos agentes envolvidos, do qual nem mesmo o simples código legal libertário pode prescindir.

O juízo acerca das circunstâncias particulares terá de existir mesmo no mundo libertário. Aceitá-lo não significa introduzir arbitrariedade no ordenamento legal, e sim adequar esse ordenamento à complexidade do mundo real.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Fé e Dúvida

Fé implica acreditar em algo que não se pode provar. Duvidar é levantar objeções, encontrar motivos para não se aceitar uma tese. São dois atos, portanto, contrários. Por esse motivo, parece que nada é mais oposto à fé do que a dúvida, e que, assim, quem tem fé tem que banir de sua mente toda inquietação e dúvida.

A mente humana deseja a verdade. É universal: ninguém gosta de estar errado, ou de ser enganado; todos procuram ter crenças corretas, ainda que nem sempre consigam. Nessa busca pela verdade, a dúvida tem o papel essencial de testar a força e a fundamentação de todas as crenças que se apresentam à nossa mente.

No trajeto pelo qual passam as teses desde a primeira vez que nos deparamos com elas até sua transformação em crenças bem fixadas, a dúvida é um obstáculo que dificulta o percurso de todas, de modo que apenas as mais bem fundamentadas consigam completá-lo. É a dúvida que nos impede de acreditar em teses absurdas e nas mentiras do primeiro charlatão que aparecer em nosso caminho. Astrologia, leitura de borra de café, planos mirabolantes para enriquecer; é por causa da dúvida, do nosso senso crítico, que eles não se apoderam de nossas mentes. Aqueles que não exercitam sua faculdade de duvidar, de levantar objeções e dificuldades, tornam-se crédulos.

A virtude é um meio termo entre a deficiência e o excesso. Se a ausência de dúvida nos torna crédulos, o excesso nos torna céticos. Não há, afinal, tese da qual não possamos duvidar. É sempre possível encontrar objeções ainda não respondidas; e, quando o forem, objeções à resposta. Que nossos pais são de fato nossos pais, que nossos amigos falem a verdade, que os fatos narrados nos jornais sejam verídicos; na aceitação de todos esses há um elemento de fé, já que não são diretamente verificáveis.

Coloque obstáculos muito altos na pista, e nem os melhores atletas conseguirão ultrapassá-los. Nossa mente não chegará de forma alguma à verdade, sua finalidade. É sempre possível que o marido esteja sendo traído pela esposa; mas essa mera possibilidade teórica não deve levá-lo a duvidar de sua mulher. O enciumado doentio que faz isso age mal. E a fé, como a confiança, depende de um posicionamento pessoal. Reconhecemos aquilo como essencial para nossa vida, vemos que faz sentido, e há evidências em seu favor: portanto, frente às diversas dúvidas, damos-lhe o benefício da dúvida.

Além disso, a dúvida não revela sempre falhas na tese sendo avaliada; pode revelar, antes, o conhecimento insuficiente de quem a levanta. Quando um aluno, em classe, levanta uma dúvida, não o faz, em geral, para refutar o que o professor expõe, mas para entender melhor.

A dúvida que serve de desculpa para não crer, essa é contrária à fé. Mas se mantida dentro dos padrões da razoabilidade, vem, antes, em seu auxílio: impede que aceitemos qualquer crença, ainda que irracional. E ainda mais: obriga-nos a estudar aquilo que aceitamos ser essencial para nossa alma. Para o homem de fé, a dúvida não é um pretexto para deixar de crer, e sim um estímulo a se aprofundar ainda mais em suas crenças.

Ainda que desconheça as respostas para diversos questionamentos, tem plena convicção de que isso se deve à sua própria ignorância. As respostas que ainda não conhece existem e podem ser encontradas se procuradas com diligência. Como disse Sto. Anselmo: “Não procuro entender para crer, mas crer para entender. Pois creio também nisto: que se não crer, não entenderei”.