sexta-feira, janeiro 26, 2007

O Homem e o Zumbi

Dois filmes de terror recentes, Extermínio (2002) e Madrugada dos Mortos (2004), apresentam-nos o mais aterrorizante dos monstros: o zumbi. O zumbi causa tanto medo porque é, no fundo, um homem; um homem desprovido daquilo que o faz humano. Completamente irracional e animalizado, sem qualquer resquício de amor ou empatia, dominado pelo mais negro ódio, pela ira mais raivosa e insaciavelmente sedento por carne humana.

Os olhos vazios e fixos revelam seu vazio interior e sua obstinação. Com ele não há o que negociar ou argumentar; não há persuasão ou adestramento possíveis. Não quer poder, não quer dinheiro, não tem causa nem líder. A única coisa que o move é o apetite avassalador e infinito por seres humanos. Ao fazer mais uma vítima (que então renasce como zumbi) não fica menos infeliz ou insatisfeito do que antes e nem sente prazer algum; sai imediatamente à caça da próxima, e quando toda a humanidade se esgotar vagará sem rumo até morrer de fome. Sua existência é desprovida de qualquer sentido e de qualquer possibilidade de realização; é uma duração de tempo preenchida por dor, ódio e fome que logo cairá no nada.

Assim, é o zumbi um perfeito anti-homem. Mas o próprio homem não é plenamente humano. Muitas de suas ações e inclinações negam sua humanidade: o desejo desmedido pelo supérfluo, o uso de outras pessoas como objetos, a falta de razão e consciência na própria conduta.

Por pior que seja o contato com os zumbis, ele conscientiza os homens da sua própria condição imperfeita e obriga-lhes a tomar uma posição: desesperar-se e cair nas garras dos monstros (tornando-se um deles) ou aceitar o valor da vida humana e lutar em sua defesa. Em ambos os filmes mencionados, um pequeno grupo de humanos enfrenta bravamente os zumbis, e ao mesmo tempo em que defendem suas vidas descobrem em si muitos traços de humanidade que haviam se apagado. A diversão inocente e real, o relacionamento sincero e a esperança em algum tipo de salvação encontram lugar nessas almas, de modo que a mera sobrevivência pela qual têm que lutar já não é o fim último de suas vidas.

O esforço extraordinário de se manter vivo pode trazer à tona objetivos mais nobres e preferíveis à própria sobrevivência. Mas existe uma outra possibilidade, que o filme Extermínio ilustra num grupo de soldados refugiados em uma velha mansão. No caso deles, a luta pela sobrevivência não despertou sua humanidade dormente; consumiu até mesmo aquela humanidade parcial que preservavam na vida cotidiana. Sacrificam tudo o que são para continuar vivos, o que acaba por torná-los piores do que os próprios monstros. Pois se é um grande mal o homem que perde a racionalidade e age de forma bestial, pior ainda é o homem que, preservando a razão, perverte seu uso, e age conscientemente como se fosse um monstro.

No fim das contas, os filmes discordam quanto à possibilidade de salvação: em um os sobreviventes escapam para a segurança, enquanto que no outro, após muito lutar, são todos devorados pela horda monstruosa. Ainda assim, concordam que a vida humana (e mais importante: a humanidade) merece ser preservada, mesmo se fadada à destruição.

Felizmente, estamos a salvo dos zumbis, criaturas do cinema. Mas algo muito parecido nos ronda, como sugerem ambos os filmes. Todo homem, ao abdicar da sua própria razão e da própria consciência moral para se conformar à vontade da maioria, é na prática um zumbi; apaga dentro de si o que o faz uma pessoa humana única, e vira então parte da massa, homogênea e desumana, na qual qualquer aspiração nobre logo se converte em ódio e insatisfação. Seja qual for o pretexto para a ação da massa (enriquecimento, justiça social, paz e amor, ou até a defesa da lei de Deus), a traição da própria humanidade que se realiza em seus membros tem sempre o mesmo efeito: a destruição do homem, que, sumamente infeliz, se auto-aniquila e passa a viver diabolicamente em função do nada. As hordas de zumbis, a fictícia e a real, não deixam de ser pequenas imagens do Inferno.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Disputas Ideológicas: Meios ou Fins?

Muitas discussões políticas e econômicas dão-se no plano abstrato dos ideais; cada participante elege um valor como o mais importante, e com base na sua adesão completa a ele nega qualquer colocação do adversário. É assim que muitos debates descambam para a oposição infrutífera entre “liberdade” e “igualdade”, entre “direitos naturais” e “justiça social”. Uma vez atingido esse ponto, nenhum progresso pode ser feito na discussão econômica. A economia é capaz de mostrar se determinados meios são eficazes ou não para atingir determinados fins (por exemplo: será que o aumento do salário mínimo melhora a condição de vida dos trabalhadores?); o que ela não pode fazer é nos indicar quais fins devemos escolher e priorizar. A escolha dos fins depende de considerações éticas e filosóficas.

Assim, parece que a briga entre as diversas ideologias decorre da incompatibilidade dos fins, e que portanto a economia nada teria a contribuir para solucioná-la. Mas isso é falso. Apesar das aparências, as diversas propostas políticas e econômicas concordam nos fins a ser atingidos. O impasse supostamente insolúvel entre “igualdade” e “liberdade” é ilusório, e esconde o fato de que todos os partidos almejam os mesmos fins; discordam apenas dos meios para alcançá-los.

Nunca ninguém viu ou jamais verá um socialista fazer a seguinte afirmação: “Se colocadas em prática, as medidas que eu proponho deixarão toda a população na mais abjeta miséria; faltará comida e saneamento básico em larga escala, e a mortalidade infantil baterá recordes. Mas apesar de tudo isso, viveremos tranqüilos, pois nessa sociedade todos serão iguais, não haverá mais exploração e nem classes sociais”.

Da mesma forma, nunca se ouvirá de um defensor do capitalismo: “Se as minhas propostas forem seguidas, uma pequena minoria será riquíssima, enquanto que a grande maioria da população viverá na indigência completa. Poucos poderão pagar por alimentação e moradia, e a maior parte da população será analfabeta. Em compensação, seremos todos livres para escolher a marca de nosso refrigerante, e caberá ao indivíduo escolher entre comprar um cobertor para o inverno ou o leite das crianças”.

Socialistas e capitalistas, bem como os membros de todas as outras filiações ideológicas, concordam plenamente quanto aos fins: o enriquecimento da sociedade, a melhora na qualidade de vida da população, etc. A discussão gira em torno dos meios adequados para atingir esse objetivo (liberdade econômica, intervenção estatal, etc); e uma vez que se trata apenas de uma discussão sobre meios, pertence estritamente ao campo da ciência econômica.

Isso não quer dizer que considerações éticas, filosóficas e teológicas sejam pouco importantes. Muito pelo contrário, são vitais para todo e qualquer ser humano. Mas quando se discute como organizar a sociedade para atingir objetivos aceitos por todos (diminuição do sofrimento humano, melhora na qualidade de vida), não é preciso fazer grandes vôos metafísicos e nem se elevar à esfera dos fundamentos da ética; a ciência econômica é suficiente para mostrar, dentre as diversas propostas de meios, quais atingem e quais não atingem os fins desejados.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

As Conseqüências da Irresponsabilidade Fiscal

Muito se argumenta que a intervenção estatal na economia, via o aumento de gastos fiscais, ao acelerar a demanda acaba por acelerar outros componentes desta e, assim, promover uma maior expansão econômica. Sabe-se, contudo, que tais medidas não têm na realidade efeitos de geração de riqueza e, ademais, têm como conseqüência a distorção do sistema de preços e, portanto, um afastamento da economia de sua eficiência. Ocorre, entretanto, que há mais problemas na irresponsabilidade fiscal.

Existem exclusivamente três modos de se financiar gastos fiscais. O primeiro, e mais natural, é por meio dos impostos. Esse método é passível de todas as críticas mencionadas no parágrafo acima. Ainda assim, quando o governo não é capaz de se financiar com as receitas de impostos, ou seja, há déficit fiscal, restam duas outras alternativas, passiveis não apenas das críticas do primeiro parágrafo como de outras mais: a emissão de moeda e a contração de dívida.

Tomando como objeto de análise a emissão de moeda, tem-se que sua principal conseqüência, além das supramencionadas, é uma aceleração inflacionária. Uma forma simples de se entender esse ponto é compreendendo que a quantidade de moeda na economia deve ser tal que posse fazer com que a produção dessa economia circule, ou seja deve equivaler em valor à produção dessa economia. É isso que expressa, grosso modo, a chamada teoria quantitativa da moeda. Se há moeda em excesso, como a quantidade de moeda deve valer aquilo que está em circulação na economia, ocorre um ajuste via aumento de preços, inflação.

Nesse momento, pode-se argumentar, logo, que a contração de dívida pode ser um meio de financiamento do déficit fiscal. Ocorre, contudo, que os governos, como todos os outros agentes econômicos, não podem consistentemente se contrair dívidas. Haverá um momento em que os credores recusar-se-ão de ceder crédito e então a emissão de moeda será usada. Decorre, portanto, que um aumento na dívida pública aumenta o risco de emissões monetárias no futuro. Uma vez que os agentes consideram expectativas futuras em suas decisões no presente, um aumento da dívida pode gerar inflação no presente.

Fica claro, portanto, que a irresponsabilidade fiscal é um mal a ser combatido.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Como não dizer nada e, ainda assim, errar

Qual é a importância de um discurso de posse? Não muita. Serve, mais do que qualquer outra coisa, como um símbolo das principais preocupações do mandato que se seguirá, sempre de forma absolutamente vaga. Por isso, não costuma variar muito de gestão para gestão (de fato, os discursos de Figueiredo, Sarney e Collor foram todos escritos pela mesma pessoa). É, no entanto, um bom espelho das crenças e sentimentos que animam nossa política.

Não seria algo digno de nota. O que me fez mudar de idéia foi o espetáculo de ignorância, desonestidade intelectual e vacuidade que foi o novo discurso de Lula. Sem tempo, espaço ou interesse de elaborar uma crítica ao discurso como um todo, limito-me a selecionar alguns trechos e revelar os erros e besteiras neles contidos. Para que não me acusem de partidarismo, afirmo sem medo que, apesar de ser Lula o presidente, as palavras do discurso poderiam perfeitamente ter sido escritas para qualquer outro candidato das eleições passadas.

Em que momento de nossa história tivemos uma conjugação tão favorável e auspiciosa: de inflação baixa; crescimento das exportações; expansão do mercado interno, com aumento do consumo popular e do crédito; e ampliação do emprego e da renda dos trabalhadores?
Desde quando inflação baixa é mérito de governo? O governo (por meio do Banco Central) é o causador único da inflação; ao invés de se vangloriar da inflação baixa, deveria se desculpar pela existência de inflação. Aumento de exportações remete à velha crença mercantilista de que exportar é bom e importar ruim; um país que exporta sem nada importar está, na prática, dando de graça aquilo que produz sem receber nada em troca. Seria isso algo bom?
Aumento do consumo, longe de ser bom, significa que a população tem poupado menos, e que portanto a economia sofrerá. Ao mesmo tempo, aumenta o crédito. Mas para emprestar algo, é necessário que alguém tenha poupado esse algo. Se a poupança cai e o crédito aumenta, então estamos criando um rombo financeiro, que terá que ser pago por alguém, e podem ter certeza de que esse alguém não serão os governantes!

Criamos mais de 100 mil empregos por mês com carteira assinada, sem falar das ocupações informais e daquelas geradas pela agricultura familiar, totalizando mais de 7 milhões de novos postos de trabalho.
Um governo nunca pode criar emprego algum. Ao contratar um trabalhador, o dinheiro que ele usa para pagar o salário deste trabalhador é dinheiro que foi tirado da população, que se tivesse podido gastá-lo também pagaria salário de trabalhadores em outros setores.
Mas tudo bem que a nossa elite política não entenda esse raciocínio tão sutil e complexo: não se tira riqueza do nada. Agora, como pode algum político, por mais ignorante que seja, atribuir a si a criação de empregos no mercado informal, ou seja, aquele que escapa ao controle do governo?! Posso apenas concluir que a falha nesse caso não é de conhecimento, mas sim de honestidade.

Nossa meta é criar condições para que sua expansão, até 2010, chegue a 50% do PIB, especialmente para o investimento, a infra-estrutura, a agricultura, a habitação e o consumo.
O que chama a atenção aqui, além da meta delirante e do erro de afirmar que consumo aumenta o produto, é a generalidade e vacuidade da frase. De tudo o que é produzido no país (PIB), uma parte é consumida e outra é poupada (investimento). Não há mais nada. Portanto, consumo e investimento é o PIB todo. Lula quer priorizar o crescimento do PIB focando, ESPECIALMENTE, todos os componentes do PIB; genial! Falando em priorizar, seria um exercício divertido contar quantas “prioridades” o discurso menciona; não há nele tema que não seja prioritário.

Para finalizar, deixo para os leitores uma pérola da prepotência vaidosa de nossos políticos, mas cujas conseqüências para a população são nefastas. Creio que não precisa de comentários ou refutações, tão estapafúrdia e estúpida que é: ainda não foi inventada nenhuma ferramenta mais importante do que a política para a solução dos problemas dos povos.

Se assim for, senhor presidente, prefiro os problemas à solução!