sexta-feira, outubro 23, 2009

Educação privada para os mais pobres dentre os pobres

Volta e meia, ao pensar ou defender os méritos da educação privada, me punha a imaginar as possibilidades educacionais num mundo sem regulamentações, onde qualquer um pudesse dar aulas ou mesmo abrir uma escola. Assim, alguém que soubesse um pouco mais do que aqueles à sua volta (digamos, um senhor que leia e escreva razoavelmente bem e que mora numa favela de iletrados) poderia usar a sala de casa como sala de aula; os preços seriam baixíssimos, de forma que mesmo gente muito pobre poderia pagar. Esses devaneios cessaram depois que li The Beautiful Tree, de James Tooley, pois agora sei que se trata de uma realidade.

A história do livro começou por coincidência. Tooley, que trabalha com educação desde os anos 80 (tendo inclusive se voluntariado como professor de matemática no regime de Mugabe no Zimbábue, quando ainda acreditava no sonho do socialismo), foi mandado pela universidade de Newcastle para Hyderabad (Índia), onde ele deveria estudar os colégios privados da elite. Num dia de folga, decidiu conhecer a maior favela da cidade, pois sua preocupação sempre foi com os mais pobres. Lá, no meio da favela, descobriu algo fascinante: literalmente centenas de escolas privadas para os pobres. Muitas tinham, com efeito, começado com um professor dando aulas em sua própria casa; com o tempo, e o aumento da demanda, expandiram-se, contrataram mais professores e anexaram construções vizinhas. Verdadeiros empreendedores da educação, pessoas com real vocação ao ensino, dedicam suas vidas para ensinar crianças a um custo baixíssimo, unindo serviço social a lucratividade. Não é para menos que se tornaram figuras respeitadas da comunidade. Os pais não têm dúvidas: as escolas privadas são mais próximas de casa, os professores mais dedicados (não faltam nunca, bem diferente das escolas públicas), o número de alunos por sala é menor e as crianças aprendem mais. Impressionado com o que viu, Tooley viajou o mundo (Zimbábue, Gana, Quênia, Nigéria, China) para verificar se Hyderabad era exceção ou regra. Para sua surpresa, e para nossa, a descoberta repetiu-se sempre: escolas privadas existem em grande número nas favelas e vilas rurais mais miseráveis, e prestam um serviço importantíssimo à população por preços que a maioria pode pagar (e, de quebra, dão aula de graça para quem não tem condições: órfãos e exilados, por exemplo).

Em cada novo país, os estudiosos de educação, os encarregados da educação pública, os representantes da ONU, Banco Mundial ou das grandes ONGs, enfim, os “experts de desenvolvimento”, recebiam-no com desdém e condescendência. Juravam de pés juntos que, naquele país, não havia escolas privadas para os pobres. “A população é muito pobre. Em nosso país, escolas privadas são para os ricos.” Errados sempre. O ensino privado já é uma realidade estabelecida, embora tenha que lidar com todo um sistema desenhado para eliminá-la. Em quase todos os casos, a escola precisa subornar fiscais para ser tolerada, já que é simplesmente impossível uma escola de pequeno porte, e que atende à população carente, se adequar às incontáveis regulamentações impostas pelo governo (tamanho do playground, número de banheiros, certificações dos professores, etc).

Mesmo quando admitem a existência de escolas privadas em grande número, os experts insistem em que elas não são parte da solução para o problema da educação, pois “visam o lucro”. Ora, nos mostra o livro, é exatamente porque visam o lucro que as escolas privadas são mais confiáveis do que as públicas. Tooley mostra muito bem como o desejo de lucrar e o de servir à comunidade não são contraditórios; pelo contrário, reforçam-se mutuamente. Na escola privada, os professores dão aula bem e raramente faltam, mesmo ganhando salários muito inferiores aos da escola pública, cujos funcionários têm todo tipo de regalias e “direitos adquiridos”. A diferença está em que, na escola privada, a remuneração do empreendimento depende da qualidade do serviço prestado, que é avaliada pelos próprios pais; quem falta ou ensina mal pode ser demitido. Na escola pública, o dinheiro vem dos impostos (e de doações bilionárias de países ricos) e ninguém corre risco de demissão. Para quê se esforçar? Um pai, cidadão pobre do Quênia, explica assim a diferença: “Enquanto a maioria dos professores na escola do governo fica descansando, na escola privada nossos professores estão ocupados dando o melhor de si, porque eles sabem que somos nós que pagamos. (...) A gente consegue [dinheiro] com nosso suor, não podemos jogá-lo fora, porque dinheiro não nasce em árvores, você tem que trabalhar pesado para receber, e o professor precisa trabalhar ainda mais pesado com as nossas crianças para ganhar o sustento dele.” (p. 122) - e assim um homem simples, sem nenhuma educação formal, revela um entendimento mais refinado de ciência econômica do que experts da ONU e do Banco Mundial.

Não tendo como negar a realidade do ensino privado e o poder de atração que ele exerce, esses mesmos experts argumentam que ele seria de baixíssima qualidade; uma ferramenta de explorar a pobreza e a ignorância da população (claro, tal argumento parte do pressuposto de que os pais pobres são burros e/ou não ligam a mínima para a educação dos filhos - um mito preconceituoso mas estranhamente popular). Tooley pôs-se, então, a testar essa tese. Preciso dizer o resultado? As escolas privadas vão melhor do que as públicas; testes padronizados confirmam o que os pais solícitos já sabiam conversando com seus filhos, comparando-os e observando as salas de aula. E reparem bem: as escolas privadas têm resultados melhores com custo por aluno muito menor. Orçamentos vultuosos dos governos, doações bilionárias de países ricos e ONGs multinacionais têm resultado pior do que escolinhas que funcionam em casebres da favela, com professores da própria comunidade e que se financiam exclusivamente de 2 dólares por mês de cada aluno.

Conforme avança a leitura, outra revelação: o ensino privado não é novidade. Havia - e isso é bem documentado - na Índia, antes da colonização britânica, educação privada bem extensa. O governo britânico, sob o pretexto de dar aos indianos uma educação nos padrões ingleses, acabou com o sistema nativo e implantou a rede pública. É por isso que, em 1931, Gandhi podia afirmar: “Digo sem medo de que contestem meus dados que a Índia hoje é mais iletrada do que era cinqüenta ou cem anos atrás” (p. 212). A educação pública, por ser gratuita ao consumidor (ou, em outros casos, ter um preço bem inferior ao seu custo), atrai grande parte da população, ávida por pagar menos, destruindo assim as alternativas privadas, que eram sustentáveis. E, no fim das contas, o resultado educacional é negativo, devido ao problema de incentivos de todo serviço gerido pelo governo. O mesmo se aplica ao próprio Ocidente; quem se interessa em olhar os dados descobre que a educação inglesa já era universal antes da provisão estatal. Alternativas privadas de educação, melhores e muito mais eficientes, foram também tiradas do mercado por meio de regulamentações infinitas, cujo único resultado foi eliminar o ensino privado de baixo custo e conformar as poucas opções restantes ao modelo estatal.

Tooley não deixa de observar que há ainda muito a se fazer, por exemplo, nos métodos de ensino (embora, como ele bem mostra, é no mercado que os novos métodos nascem e se desenvolvem) e nos currículos (ainda muito presos às provas oficiais do governo e distantes das necessidades reais da população). Não quer dar respostas prontas, elaborar um “Grande Plano de Educação”, pois é exatamente esse o erro que os governos têm cometido; ele apenas propõe idéias, esboços, de como governo e mercado podem cooperar para dar educação de qualidade a todos. Concorde-se ou não com essas propostas, elas manifestam, sem dúvida, uma mente honesta em busca de soluções práticas para problemas reais.

Que o governo deva prover educação gratuita e compulsória para todos é um dogma das ciências econômica e política contemporâneas. Mas e se a própria educação se beneficiar de um papel maior da iniciativa privada? The Beautiful Tree nos alerta que talvez seja hora de rever alguns dogmas... James Tooley não é um defensor ardoroso do liberalismo econômico; tampouco é particularmente afeito ao intervencionismo estatal (a experiência pessoal direta com o socialismo do Zimbábue ensinou-lhe boas lições). Sua única agenda é a melhora da educação. Para ele, mais importante do que uma escola ser particular ou pública, é melhorar a educação da forma mais eficaz e eficiente possível. Seu livro nos dá os resultados de anos de pesquisa por vários países, mas vai além disso. Ele abre uma janela para mundos completamente desconhecidos da maioria de nós (as favelas de Lagos, vilarejos rurais em Ganzu, China) e alguns dos personagens cativantes (professores, alunos, pais) que os habitam. A imagem tradicional dos pobres como pobres coitados, miseráveis passivos e ignorantes, totalmente dependentes da caridade externa, dá lugar à realidade de um povo dinâmico, de empreendedores, com muitas carências sim, mas dispostos a lutar, trabalhar e estudar para melhorar de vida; e é exatamente isso que fazem quando têm a liberdade necessária. É uma verdadeira aula de sociologia e geografia contemporâneas e uma bela amostra da nobreza do espírito humano mesmo sob as condições mais precárias.


Resenha originalmente publicada no Instituto Millenium.

segunda-feira, outubro 19, 2009

Uma breve olhada para trás

Cem textos meus atrás, nascia este blog. Fazem mais de três anos – pouco, quando comparo o número real à minha percepção do tempo – e muita coisa mudou desde então.

Começou como um projeto de amigos da faculdade: queríamos publicar um jornalzinho com opiniões nossas. O que leva alguns a querer publicar e discutir suas idéias? Sem afetações: no meu caso, posso dizer que o desejo de melhorar o mundo é uma parte da resposta, mas seria falso dizer que é só isso. O desejo de ser reconhecido também tem um papel, mas quero acreditar que não é o determinante. Há um certo tipo de pessoa, e me considero uma delas, para quem, simplesmente, as idéias importam; ou seja, para quem a verdade ou falsidade de teses abstratas é percebido como algo muito relevante mesmo para a vida prática. Éramos desse tipo. Mas logo percebemos as muitas dificuldades de se ter um jornal e desanimamos, até que, um tempo depois, alguém teve a idéia do blog.

Começamos bem, publicávamos intercaladamente, discutindo principalmente economia, mas também qualquer tema que nos interessasse. Tínhamos como meta principal ler e discutir os textos um do outro; leitores externos seriam um bônus. Contudo, essa preocupação logo se impôs com mais força, ainda que nossa indisciplina na publicação tenha botado tudo a perder. No fim das contas, a pressão que eu fazia para que mantivéssemos uma boa rotina de posts acabou tornando o blog mais um fardo do que um prazer para o resto do grupo. Um a um foram saindo até que fiquei só eu. Hoje, dos mais ou menos 150 textos publicados, dois terços são meus.

Se leio algum dos meus antigos, sinto um tremendo mal-estar e ranjo os dentes desconfortável; “Escrevi isso?”. Há alguma coisa no tom, na forma de se relacionar com o texto e com o leitor, que mudou profundamente. Não consigo ler, por exemplo, o texto original do blog sem achá-lo insuportavelmente presunçoso e arrogante, e isso vale para muitos outros. Arrogância que prejudicava a argumentação, tornando algumas questões artificialmente mais fáceis do que realmente são. (Espero que, daqui a três anos, os textos de hoje em dia também me pareçam fracos.) E olha que, considerando apenas as posições defendidas, não mudei muito não; ainda acho que a igualdade de oportunidades é uma besteira, que o feminismo radical é nocivo, que a verdade existe, que se A é verdadeiro então não-A é falso e que a salvação da alma é mais importante que o hexacampeonato da seleção – mas tenho certeza que, ano que vem, não escreverei nenhuma tirada deprimente contra o futebol, ao menos não nos termos amargos e prepotentes em que o fiz na copa passada (baixar a bola do futebol, em si, isso talvez eu não resista).

Ninguém é bom juiz em causa própria. Sei que, no momento em que escrevo, minha opinião sobre o texto é sempre superior ao seu mérito; e que, se o leio depois de um tempo, costumo achá-lo pior do que realmente é. Por isso deixo-os publicados aqui (fora dois, cujo tom ou posição estavam tão distantes de mim que não resisti e deletei), para algum leitor ocasional tirar algum proveito, se possível. E olha que volta e meia alguém pergunta ao Google se existe verdade absoluta; quem sabe meu texto tenha auxiliado a algum desses. E vai que alguém, que chegue aqui via Google por um texto antigo, acabe se interessando pelos novos. O formato blog virtualmente lima o passado, o que no meu caso é bom; são poucos os que acessam o conteúdo antigo; mas ele está lá para quem quiser.

Hoje, contento-me com o número modesto de acessos à minha página e aguardo ansioso comentários aos textos. Gostaria de ter mais leitores, o que é sempre bem-vindo, mas não tenho nenhuma pretensão, e nem dedico esforço algum, a torná-lo um blog popular.

A Internet é uma ferramenta formidável: acesso irrestrito à informação. É verdade que isso traz o risco de diminuir nosso comprometimento. Quero dizer: ao comprar um livro, crio imediatamente um compromisso de lê-lo. Além disso, o objeto físico, bonito e bem acabado, convida ao investimento de tempo que ele demanda. Já um livro gratuito em PDF, longe disso: não foram poucos os que li por cima apenas na ocasião em que os baixei e depois nunca mais. Mesmo assim, o fato é que a internet torna disponível um universo de informação, e depende apenas de cada um utilizá-lo e melhorá-lo. Creio que cada blog, por menor que seja, contribui para a produção de conhecimento, ou ao menos para criar interesse e debate, e assim ajuda na mudança e no progresso da cultura.

Na internet todos podem falar. Não há censura, não há vitória pelo silêncio e não estamos restritos às opiniões (ou melhor, à opinião) mainstream de sempre. O monopólio dos governos e dos grandes grupos de mídia acabou. As bases muito frágeis nas quais se assentava o poder dos formadores de opinião estabelecidos estão sendo roídas aos poucos e não há mais volta. Sua última defesa, o preconceito de que algo escrito na internet é menos sério do que o impresso no papel barato de um jornal, torna-se menos crível diariamente. Folha ou Estado, PT ou PSDB; “Mario ou Luigi”. A falsa opção está ficando aparente. Quem tinha ouvido falar em economia austríaca, ou em liberdade radical de mercado, dez anos atrás? Hoje, os únicos a ainda ignorá-las são aqueles com medo de perder as posições de destaque que conseguiram com anos de compromissos, favores e submissões à opinião aceitável. Com questões mais culturais, morais e espirituais, com o Cristianismo, com o conservadorismo – entendido no bom sentido: a retomada de valores tradicionais e de uma ética das virtudes calcada na natureza humana, e não a corrente filosófica da qual fazem parte Collor, Sarney e Antônio Carlos Magalhães – o mesmo tem acontecido. O melhor é que está cada vez mais óbvio que essas causas (liberdade de mercado, virtudes, Cristianismo), que já andaram muito separadas umas das outras, fortalecem-se mutuamente. Tudo isso em grande parte graças à Internet.

Sou uma gota nesse mar de idéias e discussões. Mas uma gota que não vai se mesclar e perder a identidade com a água à sua volta. Em defesa da verdade onde ela estiver, como dizia a tag line antiga, mas mais preocupado em discutir, ensinando e aprendendo, do que de pontificar de uma cátedra inexistente. Grato aos leitores que me agüentaram até aqui, abuso de sua paciência para pedir que me agüentem por anos mais.

quinta-feira, outubro 15, 2009

Carlos, o consequencialista

Carlos era um jovem estudante de economia numa faculdade privada paulistana, e estava insatisfeito. Ele queria fazer algo para ajudar os necessitados, mas os professores só falavam em maximizar o lucro, em perseguir o auto-interesse. E isso não era o exato oposto da ética? Os princípios morais de Carlos eram outros: “o bem da coletividade deve vir antes do bem individual”; “fazer o bem é trazer o máximo benefício para o maior número de pessoas”; “uma ação é má quando é egoísta, e boa quando é altruísta”. E alguém discordava? De forma nenhuma: os colegas, os amigos, os parentes, todos estavam de pleno acordo, mas mesmo assim nada mudava. Era como se, para todo mundo menos ele, essas máximas devessem ser só faladas, e não vividas.

Seu tio, por exemplo, era rico e comprara um carro importado; por acaso era justo uns terem carro importado enquanto outros pegavam ônibus lotado? “Ah, Carlinhos, o mundo é assim, seria ótimo se todos fossem iguais, mas não são. Fazer o quê? Cada um corre atrás do seu”. Alguns colegas ajudavam uma entidade estudantil que dava aulas de reforço para crianças carentes. As intenções até que eram boas, mas qual o resultado prático? Quase nenhum. E fazer o bem era, por acaso, ter intenções boas, ficar de consciência tranquila? Isso também era egoísmo. Até seu melhor amigo da faculdade, o Dado, o decepcionou. No começo do curso, um verdadeiro revolucionário; só falava da revolução e o mundo igualitário que ela traria; até viajou para Cuba nas férias. Já no quinto semestre, amoleceu. “Olha, não dá para viver como se estivéssemos numa utopia; se quisermos ter algum impacto social, precisamos entrar no jogo do sistema capitalista.” Nessa época, Dado já estagiava.

Não. Não dava para continuar sendo hipócrita. Ainda que ninguém no mundo fosse moral, Carlos seria. A decisão não podia esperar. Todo egoísmo, toda preferência por si mesmo e pelos próprios desejos devia ser eliminada. O bem da maioria deveria sempre vir antes do bem individual. Por que o mero acidente, o acaso, de uns nascerem ricos e outros pobres significava que os primeiros teriam direito a uma vida boa e os segundos não?

O primeiro passo foi vender o carro e doar o dinheiro para uma ONG que ajudava vítimas da violência no Paquistão. Ele até considerou doar para alguma causa mais próxima, mas ver o resultado de sua caridade daria um certo prazer, e seria portanto um tipo de egoísmo; fora que seria injusto preferir alguém só porque esse alguém estava mais próximo. A responsabilidade moral não se pauta por algo tão arbitrário quanto a distância. Afinal, ele queria fazer o bem ou apenas reconfortar sua consciência individualista?

O passo seguinte foi largar a faculdade (privilégio de poucos) e passar os dias nas ruas, distribuindo alimentos e roupas para os mais miseráveis que pudesse encontrar. Com o dinheiro da faculdade (que os pais, que moravam no Rio, continuavam depositando na conta dele, sem suspeitar de nada) ele comprava para si apenas o mínimo necessário: a comida mais barata que permitisse a sobrevivência de seu corpo e algumas outras necessidades vitais; o resto era doado. O espaço do apartamento charmoso que ele alugava não ficou improdutivo. Expulsou o Marcos e o Alex, dois colegas que moravam com ele (tinham meios para se sustentar; não ia ser ele a auxiliar o egoísmo alheio) e trouxe doze mendigos para viver lá. O bem de doze é superior ao de dois. Da Leni, a empregada que costumava cozinhar e limpar a casa, nem preciso falar - demitida. Daí para frente nada poderia impedir sua progressão rumo ao altruísmo total.

Sua única muda de roupa estava preta de tão imunda, não tomava banho, o corpo era uma vara suja e fedorenta; comia do lixo, ia ao banheiro na rua e dormia no chão. Mas ainda estava insatisfeito; queria fazer algo a mais. Um dia, o Robério, um dos mendigos do apartamento, teve um piripaque, babou sangue e foi para o hospital; precisava de um pulmão novo. Aí veio a revelação: o corpo esbelto e saudável de Carlos tinha órgãos que poderiam salvar a vida de muitos doentes. Qual o critério ético objetivo para priorizar a própria vida sobre as vidas de outras pessoas? Nenhum. Manter-se vivo enquanto outros padeciam era um ato egoísta; era o ato egoísta supremo. A decisão era clara.

Foi uma espera de dois meses até que Robério morresse. É que Carlos não queria correr o risco de ajudar alguém próximo. Era para evitar esse egoísmo da preferência pessoal que ele procurava afastar de si os amigos ou quem quer que lhe agradasse (o que já não era difícil, dado seu aspecto). Morto o mendigo, foi até o saguão de um hospital bem equipado e se degolou na frente das enfermeiras. Os médicos tentaram salvar o rapaz mas não teve jeito, e os órgãos foram, então, doados. Receberam-nos cinco jovens em condições críticas. Desses, dois tiveram problemas sérios de rejeição e não resistiram. Dos outros três, dois tiveram vidas normais e pouco notáveis. Já o terceiro, um menino de 13 anos, que recebera um dos rins, foi um caso a parte.

O menino se chamava Pedro de Oliveira Albinone. Ele teve uma vida longa e feliz (bem, era o que ele dizia para si mesmo), trabalhando como funcionário público em Brasília; a promoção pela qual ele tanto lutou não veio, mas a aposentadoria era boa. Seu único filho foi Frederico Lima Albinone, que entrou para a história como o “Bin Laden brasileiro”. Durante um mochilão pela Ásia, o jovem Fred converteu-se ao Islã e entrou num grupo revolucionário radical paquistanês. Passados alguns anos, assumiu a chefia de uma célula terrorista, apossou-se de uma bomba nuclear no mercado negro e a explodiu no centro de Nova Delhi, eliminando, naquele momento, 300.000 pessoas, sem contar as estimadas 1 milhão de mortes causadas pela radiação.