segunda-feira, setembro 14, 2009

15 anos de cursinho

É um fato bem conhecido que a educação no Brasil não está bem, embora nem sempre seja fácil apontar o que, especificamente, está errado. Uma recente pesquisa trouxe um pouco de luz ao problema, cujas origens podem estar no ensino fundamental: em países como Chile e Cuba (até em Cuba!), o professor passa a maior parte da aula voltado para os alunos, elucidando conceitos, respondendo perguntas e discutindo eventuais polêmicas; a lousa é usada como um apoio ao ensino. No Brasil, ela é a peça central da aula. O professor passa a maior parte do tempo de costas para a classe, copiando o que está escrito no livro didático, enquanto os alunos, por sua vez, copiam da lousa para os cadernos. Isso se ainda não perderam o interesse pela aula e, desistindo de anotar, conversam entre si.

A educação brasileira consiste essencialmente na cópia e na repetição dos conteúdos já extremamente simplificados e esquematizados dos livros didáticos. Esse padrão não é, infelizmente, restrito ao ensino fundamental (o que já seria preocupante), mas verifica-se ao longo de todo o sistema. Richard Feynman, prêmio Nobel de física, quando veio ao Brasil, ficou chocado em ver como jovens universitários tão inteligentes preocupavam-se apenas em memorizar, e não em compreender. Concluiu ele: “Por fim, eu disse que não conseguia entender como alguém podia ser educado neste sistema de autopropagação, no qual as pessoas passam nas provas e ensinam os outros a passar nas provas, mas ninguém sabe nada.” (Tirado do livro “O Senhor está brincando, Sr. Feynman?”.) Isso foi nos anos 50. Desde então, nada mudou.

Como recém-formado de duas faculdades paulistanas, observei a mesma coisa. Pouco entendimento, muito decoreba. Os conteúdos são ministrados visando apenas à prova ao fim do semestre, como se estivéssemos num cursinho pré-vestibular (que já é, por sinal, o modelo padrão do ensino médio). Do livro-texto para a lousa (ou para o slide de PowerPoint), da lousa para o caderno, do caderno para a prova. Vocês podem imaginar o quanto se perde a cada uma dessas passagens. O resultado são alunos bons em recitar informações, mas com enorme dificuldade em integrá-las num corpo de conhecimento utilizável fora da sala de aula. Enfim, do ensino básico ao superior, nunca saímos do cursinho.

Um cursinho que, ironicamente, não produz resultados. Os alunos do ensino básico brasileiro vão consistentemente mal em avaliações internacionais, ficando atrás de países como Jordânia, Tailândia e Bulgária (PISA 2006). E não é para menos: o cursinho funciona quando se tem um objetivo pontual e concreto em mente, como uma prova específica que se queira passar; quando se trata de educação num sentido mais amplo, de longo prazo, o modelo da memorização e repetição torna-se desestimulante, o que talvez explique, em parte, por que os estudantes demonstram tão pouco interesse pelas aulas na maioria dos colégios e faculdades.

6 comentários:

Maria Celina disse...

Joel, eu me formei em Direito e saí da faculdade com a impressão de que havia passado 5 anos num longo cursinho para OAB e concursos. Meus colegas sabem tudo de Direito - decoraram praticamente todo o ordenamento jurídico. Mas nunca se preocuparam em entender o que está escrito nas leis.
O pior foi a indiferença nas aulas de filosofia, filosofia do Direito e ciência política, quando não havia tanta decoreba assim.
Nem a faculdade promove um conhecimento melhor, nem os estudantes se preocupam com isso. Só querem passar no primeiro concurso e garantir sua estabilidade.

Joel Pinheiro disse...

Pois é! E imagino que para faculdades como direito, onde praticamente todo mundo quer passar em provas e concursos para poder exercer sua profissão, essa mentalidade de cursinho deve ser ainda mais forte.

Blogildo disse...

Lembro de um professor de Logística (faço administração) explicando o conceito por trás da produção: insumos, processamento, produtos acabados, estoque inicial, estoque em processo, estoque final etc. Um grupo que havia estudado comigo na cadeira de contabilidade não lembrava que o mesmo conceito havia sido dado no tópico de análise de custos no período imediatamente anterior.
Vergonhoso.

Anônimo disse...

Ô Joel, quando vi a chamada de seu texto no “Dicta” já fui logo injuriando: “mais um fazendo apologia de uma ‘educação mais humana’argh!”. Depois pensei ser melhor entrar nesse debate. Aqui vou eu.

Essa história de opor memorização a compreensão é muito superficial e já há muito ultrapassada. Hoje, é ponto já muito conhecido por quem pesquisa seriamente a aprendizagem que esta decorre de dois momentos: o primeiro é o momento do entendimento; o segundo, o momento da retenção. Bobagem pensar que o que foi entendido, foi retido. A retenção se dá pela repetição mecânica ou pelo apaixonamento, mas irredutível ao entendimento. De tal forma que tudo o que hoje foi compreendido, mas não foi retido, daqui a alguns dias o sujeito terá um novo trabalho cognitivo de entendimento. A aprendizagem não avança.

Isso de falar de professor de costas para o aluno e o aluno transcrevendo da lousa para o caderno em processo mecânico e tal e localizar aí o problema da aprendizagem é muita tolice. Se essa aprendizagem “mecânica” é causa da pobreza educacional do Brasil e se ela existe desde sempre (você mesmo faz alusão a 1950) por que o declínio é de uma, duas décadas para cá¿
A causa é “muito outra”. Dou uma dica. Que tal procurar a causa da decadência da educação brasileira na transferência da responsabilidade pela aprendizagem do aluno para o professor, a escola, o “sistema” etc. Esse descompromisso que o aluno das séries iniciais tem com o seu próprio desenvolvimento o torna indolente e desmotivado. O declínio do sentido da disciplina tem aí, também, sua parcela de culpa (os professores estão sendo escorraçados por alunos de 10, 12 anos de idade).
Sem um compromisso pessoal com o desenvolvimento e sem o retorno aos princípios disciplinares, ainda que de forma mais planejada e inteligente, dificilmente haverá melhorias na educação brasileira.

Um abraço
Edson Moreira (www.edsonmoreira.blogspot.com)

Joel Pinheiro disse...

Olá, Edson.

Concordo com a substância dos seus comentários. Há sim que se ter a retenção do conhecimento, que se dá pela repetição de exercícios, por exemplo. O problema é quando isso se dá superficialmente, sem o entendimento prévio do que se está estudando.

E isso tem efeitos sérios sim na capacidade de aprender. Estudei no mesmo colégio em que meu pai estudou. Ele lia Dostoiévski no segundo colegial para a aula de filosofia. Nós lemos a lista do vestibular e olhe lá. A aula de filosofia era com base em fichas.

Quanto à perda dos princípios disciplinares e da disposição do aluno como essencial ao seu desenvolvimento, estamos de pleno acordo. Mas devo reiterar meu ponto: há sim uma diferença enorme, incomensurável, entre a aula de um professor que faz realmente uma "lecture", ou seja, uma fala elaborada, e que exige a atenção dos alunos, e um que prepara slides de powerpoint e explica (ou lê) um a um os pontos do slide.

Uma das faculdades que eu fiz era privada, e friza muito a importância da disciplina dos alunos, do estudo, em suma, da disposição pessoal. Há leituras para se fazer em casa que podem ser cobradas, provas toda semana, etc. Mas quase todo o conteúdo, salvo uma ou duas honrosas matérias que ousam sair do padrão, baseiam-se em livro-texto e slide.

Não dá para levar muito a sério um ideal acadêmico de disciplina e comprometimento se o material de estudo é um slide baseado num manual que já é um descalabro de superficialidade e preguiça intelectual.

Anita disse...

Caro Joel,

Você foi na mosca! A educação aqui parecemesmo um longo cursinho. Estudo história numa universidade federal e é exatamente essa a sensação que tenho às vezes.

Estudei um ano na Itália, apesar de não ter achado taaaanta diferença, me parecia que os professores do dpto de Letras e Filosofia da Universidade de Florença instigavam mais os alunos a estudarem por si. Aqui, de certa forma, substima-se a capacidade dos estudantes e, em virtude disso, se passa um conteúdo mastigado - de cursinho - e se sacrifica o "potencial" (não gosto muito desta palavra, mas...) de tantos.

Ótima reflexão!