sexta-feira, junho 13, 2008

Ensino Superior ou Ostras em Coma

“Ostra em coma” foi como um amigo descreveu um certo tipo de pessoa. É maldoso; até certo ponto injusto. Contudo, uma ótima descrição. Referia-se àqueles cujos interesses reduzem-se exclusivamente ao eixo “faculdade-balada”. Provas, estágio, festas, cervejadas, viagens esportivas e intercâmbio. E só. Todas as energias e toda a atenção voltadas ao fluxo mais superficial e efêmero da existência: de um lado, o prazer sensível; de outro, o livro-texto – ambos dotados de algum bem, entenda-se! Mas de um bem pequeno, e que portanto não merece o lugar de destaque na formação intelectual e no lazer. Quatro anos dedicados à sucessão incoerente de “maratonas” de estudo pouco interessado (porque pouco interessante) e festivais de hedonismo vazio (falei das baladas; videogames e mangás também estão na lista). Qual o resultado disso? Uma existência fragmentária, impensada e pouco significante.

Claro, isso é só uma tendência geral. Ninguém é completamente ostra em coma. Há sempre graus de lucidez; momentos de ostra alerta. Mas a tendência é na direção do coma. Parte considerável dessa culpa é das próprias faculdades e universidades, que abandonaram qualquer idéia de formação humana mais completa. Afinal, não existe um bem objetivo para o homem, não existe um sentido na vida. Existe apenas o mercado de trabalho; vamos, portanto, formar técnicos, especialistas na última novidade do setor, e colocá-los para trabalhar o quanto antes. Vamos ensinar esses economistas a maximizar o lucro com funções de produção em espiral. Com cursos inteiros voltados a esse fim, fica difícil expandir os horizontes da vida. Contudo, se a estrutura dos cursos não coopera, é apenas a disposição dos alunos que concretiza a ostrificação.

Se existe algum momento na vida em que temos oportunidade de nos dedicar às grandes questões da existência e formar os laços pessoais que durarão até a nossa morte, é exatamente nos anos do ensino superior. Se alguém quiser estudar em profundidade alguma coisa nessa vida, seja ela qual for, essa é a hora. Talvez, de fato, seu caminho não seja dedicar-se “full time” à técnica bélica dos olmecas; mas, se um lampejo de interesse existir, porque não persegui-lo a fundo enquanto ainda é possível? Podemos ir mais longe, e tratar das grandes perguntas, de Deus, do que cada um espera da vida, dos valores que hão de reger nossa conduta. Todo mundo responde a essas perguntas na prática, com suas ações; mas formulá-las na mente e conversar sobre elas ajuda a encontrar respostas melhores.

É exatamente nesse exercício em comum da razão que se formam as amizades profundas. Meros colegas, companheiros de aulas e baladas, têm uma amizade baseada, antes de tudo, no prazer; quando o prazer cessa, ou quando se distanciam um pouco (digamos, as aulas de um mudam de horário), o vínculo logo desaparece. Já a amizade baseada na interação racional e na preocupação com o bem objetivo um do outro é mais duradoura e gratificante.

Por mais que os cursos sejam bitolantes, os livros estão por aí. Os filmes, as peças e os concertos também. Há pessoas para se conhecer mais profundamente, palestras para se assistir, enfim, oportunidades não faltam. Também não falta tempo! Quem diz que não tem tempo, revela apenas que prefere tudo aquilo que faz ao longo da semana (as longas horas de TV e de jornal, o deitar na cama e olhar o teto, etc) à opção que rejeita com esse pretexto. Falo com conhecimento de causa: fiz graduação dupla, uma delas na faculdade de economia mais puxada do país, e tinha tanto tempo livre que não sabia o que fazer com ele (posso dizer que conheço bem o teto do meu quarto). Quem quer, encontra tempo; quem não quer, encontra desculpas.

Das duas causas da crise do ensino superior - a estrutura das instituições e a disposição dos estudantes - falei apenas do segundo, certamente o menos interessante. Que conclusão pode-se tirar a não ser “Vamos, mexam-se!”? Não há mais o que dizer; cada um descobrirá, nas suas circunstâncias, o que é melhor fazer. Talvez eu tenha escolhido este tema pela clara percepção de que meu tempo de graduação poderia ter sido mais bem aproveitado (embora algum ainda me reste, e eu me esforce para mudar as coisas), e por ver tantas outras pessoas usando-o tão mal ou ainda pior.

O volume das ostras em coma parece crescer; uma solução para isso passará, certamente, por profundas reformas institucionais a longo prazo; mas antes que elas ocorram, e mesmo para que elas ocorram, é necessária uma mudança individual de atitude com relação ao conhecimento e à vida universitária por parte dos estudantes. Como operar isso permanece, para mim, um mistério.

15 comentários:

Anônimo disse...

o seu texto colocou em palavras o que eu ando pensando nesses dois anos de graduação...
mto bom!

Anônimo disse...

Um post que jamais será um, entre outros.
Com respeito e admiração,
C.

Anônimo disse...

sabias palavras.

A questão do tempo é hoje a mais simples e compreensivel desculpa. Pois não devia. A falta de tempo é relativa se considerarmos quantos anos de vida ainda teremos pela frente... falta tempo para quê
Eduardo Figueiredo

Anônimo disse...

Eu realmente concordo com grande parte do seu ponto de vista, mas talvez seja muito fácil julgar ostras. Pelo visto voce nunca se interessou em mudá-las...
Uma pena um discurso tão interessante e uma conclusão tão clichê.

Joel Pinheiro disse...

Bom, estou aberto a novas conclusões.

Realmente não vejo, no plano individual, uma conclusão prática que não passe pela decisão individual de mudar de atitude frente ao mundo como um todo.

É possível ajudar outros nisso? Com certeza. E é possível receber ajuda também, para nos aproximar mais do estado alerta quando dele nos afastamos. Mas, em última análise, é uma decisão pessoal de cada um.

Joel Pinheiro disse...

Gostaria de desfazer um mal-entendido que surgiu em discussão sobre esse texto em outro lugar.

Minha intenção não era defender as formas do que se chama de "alta cultura". Não era dizer que orquestra sinfônica é bom e banda de rock ruim, ou que pintura é bom e história em quadrinhos ruim. Não que não exista uma hierarquia entre essas coisas; mas isso não vem ao caso.

Acho que mais importante do que o tipo de interesse, é a profundidade dele. Alguém pode ir fundo mesmo na análise de mangás ou no interesse por música tecno que em geral toca em balada. Fundo o bastante para se chegar em questões e inquietações "filosóficas".

O problema é que em geral o interesse não vai fundo. Não há qualquer esforço em formar um gosto, desenvolver a percepção, conhecer e entender o que há por trás do prazer. Apenas aceita-se passivamente o que vier.

Anônimo disse...

"Apenas aceita-se passivamente o que vier."

Like cattles in the center.

Anônimo disse...

Joel,
"Vamos ensinar esses economistas a maximizar o lucro com funções de produção em espiral. Com cursos inteiros voltados a esse fim, fica difícil expandir os horizontes da vida."
O que são os horizontes da vida?

Anônimo disse...

Com certeza a expansao de horizontes só com funçoes de maximizaçao de lucro nao tem muita perspectiva...Mas se voce concorda que é possivel ajudar,"É possível ajudar outros nisso? Com certeza." O que voce faz em relaçao a isso?

Anônimo disse...

Anônimo,
Eu ainda acredito que empresas maximizam lucros e pessoas maximizam bem estar. Seja o bem estar derivado do consumo de bens ou o bem estar derivado da introspecção.
A economia pode ajudar, e muito, na análise de problemas da vida prática somente com ferramentas de otimização.
Esse ferramental deriva da observação dos comportamentos das pessoas, ele é uma forma de se manter clara a exposição das idéias. Infelizmente existe um custo alto, aprender a linguagem matemática e os conceitos iniciais de economia, para que se possa entender alguns resultados.
A matemática é somente uma ferramenta para se por a prova a lógica das idéias que os economistas têm.

Anônimo disse...

Joel, realmente um texto primoroso, que traduz em palavras experiências concretas e quotidianas, observações "palpáveis" da realidade.

Um abraço!

Ps. Aproveito para convidá-lo a visitar http://flavio.blogg.se, meu blog.

Joel Pinheiro disse...

Ao anônimo que perguntou como ajudar os outros nessa questão: acho que o principal meio é a conversa. Como eu disse, depende também de uma decisão pessoal do outro. (Não que seja algo como uma conversão, é claro; "do nada ao tudo!" - a ajuda é no sentido de estimular a pessoa aos melhores interesses, e se deixar estimular pelos outros nesse sentido também).

Victor, a economia pode ajudar nos problemas da vida prática??? Como?
Lembre-se: a economia dá modelos de maximização dadas preferências. Mas ela não diz quais são ou quais devem ser as preferências, e parece ser exatamente essa a questão da vida prática (no nível pessoal que estamos falando aqui).

Anônimo disse...

Gostei!

Espero que a vc não considere a naza uma ostra em coma!! rsrs...

th. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
th. disse...

Intessante tópico para ser publicado numa sexta-feira 13.

Lendo, fiquei de certa forma feliz por ter largado a faculdade (fazia matemática na Unicamp; cá estou de volta ao Ceará e por ora em universidade nenhuma) - embora isso não devesse fazer muito sentido. Larguei motivado por inquietações relacionadas ao curso, ao funcionar acadêmico e a algo que me vem em mente agora chamar, para não muito me alongar, de 'burocracia Vs. mérito'. Escrever 'burrocracia' teria lá sua graça, mas seria um trocadilho imediato demais. Fiquei feliz porque me dei conta de que se tivesse superado a problemática sugerida por essas 3 musas que citei e continuado na universidade, certamente seria porque teria cedido ao correctíssimo impulso de ser aquilo que a maioria era e que muito lhes parecia fazer bem. Ser uma ostra em coma.

Graças ao bom Deus, livrei-me. Hoje sou um caranguejo fazendo 'moonwalk'.