segunda-feira, dezembro 18, 2006

Mente: Produto do Corpo?

Existem idéias que parecem fazer sentido, que são aceitas por muitos, e que, se analisadas cuidadosamente, levam a auto-contradições e absurdos que ninguém jamais aceitaria.

Uma dessas idéias, à primeira vista perfeitamente aceitável, é a de que a mente, ou os processos mentais, sejam produto do corpo (ou, mais especificamente, do cérebro). Faz sentido, não faz? O corpo tem diversos órgãos que produzem diversas substâncias diferentes, e não há dúvida de que o cérebro está diretamente ligado aos nossos pensamentos; dada a sua enorme complexidade, pode ser que os processos que nele ocorrem (sinapses neurológicas, liberação de químicos, etc) dêem origem aos nossos pensamentos, desejos e emoções. Não há como provar definitivamente que isso seja o caso, mas é uma possibilidade, não é mesmo?

Suponhamos que essa possibilidade seja de fato aceitável, e aceitemo-la. Que conclusões se seguiriam logicamente? Bom, o pensamento é produto das condições físicas de nosso cérebro, da mesma forma que a saliva é o produto de nossa glândula salivar. As características particulares da saliva que produzimos depende dos processos que se dão na glândula salivar; duas glândulas em estados diferentes produzirão salivas de tipos diferentes (com mais ou menos enzimas, por exemplo). Da mesma forma, o pensamento que a mente terá depende das condições particulares e específicas do cérebro; se a sinapse B ocorrer ao invés da sinapse A, isso terá conseqüências no produto do cérebro, ou seja, no pensamento.

Agora imaginemos um ser humano qualquer, e digamos que ele acredite no socialismo. Usualmente, diríamos que esse sujeito é socialista porque acredita que o problema da pobreza poderia ser resolvido com o planejamento da economia, que a desigualdade social é uma injustiça, etc. Mas pela nossa suposição essas explicações são inaceitáveis; a real causa da crença socialista é o fato de que, no cérebro do rapaz, ocorrem certas sinapses e um certo químico age de certa maneira de modo que o produto de tudo isso é a ideologia em questão.

O pensamento nada mais é do que o resultado natural de uma certa condição cerebral, assim como o tipo de saliva o é da condição da glândula. Assim, não existe pensamento verdadeiro ou falso, da mesma forma que não existe saliva verdadeira ou falsa. Mesmo o que o nosso senso comum diz ser a mais absurda das crenças, digamos, que a lua é feita de queijo, é a conseqüência natural e adequada de uma certa disposição dos componentes do cérebro, nem mais nem menos correta que nenhuma outra.

Alguns apelariam a uma definição pragmática de verdade, nessas linhas: “de fato, não existe saliva verdadeira ou falsa, mas existe saliva que cumpre ou não sua função, de ajudar na digestão dos alimentos. E existem pensamentos que ajudam o homem a sobreviver e a agir no mundo, e é isso que é o pensamento verdadeiro”. Mas essa defesa é impossível, pois a própria escolha de uma finalidade é uma idéia, e o julgamento de se uma finalidade foi ou não atingida também é um ato mental, e assim, pela própria teoria materialista, apenas o produto natural do cérebro em condições X.

Logo, uma visão materialista consistente não dá espaço para a existência de verdade ou falsidade. Assim, não é possível afirmar que a própria tese materialista esteja correta, pois isso seria contrariar sua conclusão lógica. Crer que os pensamentos são determinados por condições físicas do mundo material implica afirmar a não existência de verdade, e portanto implica não crer na própria crença. Portanto, é impossível aceitar o que diz o materialismo sem cair em contradição.

10 comentários:

Ailton disse...

Como sempre, muito legal seu texto. Tal concepção materialista também não me agrada. Se nossos pensamentos são resultados de aspectos físicos, não há livre arbítrio. Nosso raciocínio seria resultado das condições "naturais" (como máquinas programadas para agir de tal maneira em dada circunstância).

Sempre fiquei me perguntando, o que gera o impulso nervoso? Materialmente não se explica, simplesmente surge nos neurônios "do nada", e são conduzidos pelo sistema nervoso.

Agora, no seu exemplo sobre o carinha socialista, a argumentação ficou dúbia. A meu ver (depois quero uma réplica), não há contradição aparente entre o cara acreditar no socialismo e essa crença ser fruta de sinapses. As sinapses não podem provocar tal crença?

Enfim, concordo com sua tese (não sou materialista e acredito que a "gênese de nossos pensamentos e crenças" estão para além de coisas materias). Quero apenas debater a validade de seu exemplo.

Abraço.

Anônimo disse...

Interessante, Joel.
Realmente você analisa essa questão de maneiro inusitada...
me fez pensar um pouco...
porque isso desemboca na concepção de realidade...
pois tomamos como realidade o que a maioria das pessoas pode ver, sentir, ou constatar por seus aparelhinhos...
e, se as sinapses são apenas a capacidade de perceber, ver, ouvir... e se uma sinapse é diferente da outra, diz apenas se ela concorda ou não com as sinapses dos próximos...
interessante....
realmente, muito interessante.
Perdoe a pergunta, mas você é espiritualista, gosta particularmente de alguma religião?
Bom, em todo caso deixo meu email no espaço página da web.
Parabéns e até mais!

Joel Pinheiro disse...

Olá Ailton.

De fato não há contradição (ao menos à primeira vista) entre o sujeito ser socialista e as sinapses do sistema nervoso.

O que eu queria ressaltar é o verdadeiro motivo de alguém ser socialista.
Em geral diríamos, seguindo uma concepção não-materialista, que o sujeito é socialista, digamos, porque acredita que a desigualdade social é uma injustiça, ou porque sonha com um mundo sem pobreza, ou algo do tipo.

Mas essas explicações, para a concepção materialista, são falsas.
O sujeito crê no socialismo simplesmente porque ele tem a sinapse B e não a A.
Da mesma forma, se o sujeito mudar de crença e passar a ser um capitalista radical, o materialista nunca explicará esse fato dizendo que ele deve ter tido contato com novas idéias, que mudou de valores, etc.
O materialista dirá que o cérebro dele, que antes tinha os processos X, agora tem os processos Y, e a conseqüência desses novos processos é a defesa da economia de mercado.

Indo além disso, o que eu tento mostrar, com um argumento que, até onde sei, foi formulado por um economista (Ludwig Von Mises), é que, se as idéias e crenças são produtos de condições materiais, então não cabe a distinção entre idéias falsas e verdadeiras, e portanto não cabe sequer dizer que o materialismo é verdadeiro ou falso.
E portanto quem crê no materialismo é logicamente obrigado a não crer nele.

Joel Pinheiro disse...

Olá, Ethel.

Tenho religião sim: sou Católico Apostólico Romano.

Espero que você volta a participar de nosso blog!

Abraços e Feliz Natal!

Anônimo disse...

Pra variar, mais um dos seus textos me deixa com uma sensação de inquietude, Joel. Mas, continuemos com o meu agradável papel de advogado do diabo.

Comecemos então pelo grande erro que vejo na sua argumentação, que não refuta sua inicial, mas também não a prova, ou seja, não ajuda a provar que exista algo metafísico por trás do pensamento. Bem, eu já digo que tenho um viés pelo positivismo(sociológico), então sei das críticas marxistas e pós-modernas, mas parece que a teoria que você julga aqui é bastante positivista, então... No seu exemplo do socialista, você confunde sujeito e objeto. É perfeitamente plausível que eu coloque a contra-explicação de que, dadas as condições do indivíduo, este, ao ver a sociedade (ver mesmo, usando os sentidos), recebe impulsos dos nervos dos sentidos. Esses impulsos são processados pelo cérebro, o que resulta na formação e ativação de sinapses. Ora, essa ativação se dá de forma diferente em cada pessoa. Assim, em alguém que está naturalmente condicionado para "fazer" as sinapses socialistas, o capitalismo parecerá uma grande injustiça, este será o pensamento. Para outros, isso não ocorrerá.

Usando essa argumentação, podemos ver que a verdade está no objeto, não no que o sujeito faz ou pensa dele. Como aparentemente o materialismo é uma visão positivista, é assim que devemos entendê-lo. Se acreditarmos, como me parece que é o seu caso, que a verdade está no sujeito, ao aceitar isso já estaremos incorporando um quê de metafísica, que realmente é incompatível com essa teoria materialista. Esse materialismo de que você fala é uma teoria filosófica (o único materialismo que eu já ouvi falar é o histórico)?

Para concluir, quero colocar 2 frases que acho que resumem a minha crítica: Todo pensamento é existente, e, nesse sentido, verdadeiro, mas suas conclusões podem sim ser falsas ou inválidas. O pensamento é o resultado de uma atividade neurológica, mas não é a atividade neurológica em si.

Abraços e feliz natal.

Joel Pinheiro disse...

Olá Rodrigo. Feliz Nata para você e obrigado por seus comentários.

Deixe-me tentar esclarecer o argumento.

Bom, em primeiro lugar não vejo porque a "localização" da verdade seja importante para solucionar a questão. Eu trabalho com uma definição de verdade clássica, e que é no fundo a do senso comum: verdade é a adequação do intelecto ao objeto. Ou seja, pensamento verdadeiro é aquele que está de acordo com a realidade, e o falso é o que está em desacordo.

Sua descrição de como se dá o processo de formação de crenças (segundo o materialismo) me parece perfeito: o indíviduo recebe estímulos sensoriais, que por sua vez causam variações no cérebro, que por sua vez causam novas crenças, pensamentos, desejos, etc.

E o problema está exatamente aí: o cérebro é uma glândula que produz pensamentos de acordo com as leis de seu funcionamento.

Isso quebra de uma vez por todas a idéia de que o pensamento tenha alguma relação com o objeto dele.

Duas pessoas têm crenças diferentes sobre algo. Ou seja, o cérebro das duas funcionou de formas diferentes. Não há como dizer que o pensamento de uma é verdadeiro e o da outra é falso; ambos são apenas o produto perfeitamente natural do funcionamento de seus cérebros.

O pensamento vira, assim, um produto do corpo, do qual não é possível dizer que seja nem verdadeiro nem falso, como é o caso com lágrimas, saliva, bile, sangue, etc

Ninguém tem sangue "verdadeiro" ou sangue "falso". Pode-se dizer que o sangue de tal pessoa tem características tais que não permitem a sobrevivência dela.
Nesse caso usamos um objetivo (a sobrevivência, a saúde) segundo o qual diferenciamos sangue bom de sangue ruim.

Mas só é possível fazer isso para o sangue porque o objetivo que nós escolhemos não é, ele próprio, um sangue.
Para as idéias o oposto acontece. O objetivo que poderíamos escolher como critério para distinguir a idéia verdadeira da falsa é ele próprio uma idéia.
Também o julgamento de se uma idéia cumpriu ou não o objetivo que escolhemos como critério para julgar idéias (por exemplo, se elas nos ajudam a ter uma vida melhor) também é uma idéia.

Não existe base sobre a qual diferenciar o pensamento verdadeiro do falso.

Alguns materialistas chegaram a admitir isso. Os positivistas, que é de fato aqueles em quem eu pensei ao escrever o texto, não.

Mas Marx (cujo materialismo é bastante diferente daquele que eu descrevi em meu texto), chegava perto de admitir isso.
Segundo ele, o pensamento das pessoas é definido pelo modo de produção vigente e pela classe social a que a pessoa pertencia. Assim, todo pensamento que, por exemplo, um burguês poderia ter, não passava de ideologia: não era verdadeiro, mas apenas um defesa dos próprios interesses dela travestida de teoria científica.
Toda classe social produziria apenas ideologia, e não conhecimento verdadeiro.

Mas ele abre uma exceção: o pensamento dele, que seria o pensamento proletário, é de fato a verdade absoluta. A garantia disso foi-lhe dada pela revelação especial do próprio espírito da História.

Anônimo disse...

Bom, seguindo a sujestão do Joel, vou deixar as minhas críticas aqui

Então, como sempre, o texto está bem escrito. Mas, diferentemente da maioria dos seus outros textos, da metade pra frente ele não está nada claro. Mesmo tendo uma vaga noção do que é o materialismo, eu não consegui entender direito o que existe de contraditório em acreditar que o pensamento é produto do nosso organismo. Você disse que se fôssemos usar um pensamento tipicamente materialista, seria errado dizer que uma pessoa é socialista porque defende certos ideais. Você disse que, segundo a concepção materialista, o que define alguém ser socialista (ou anti-socialista) seria um certo conjunto de componentes e de reações do cérebro. Daí eu pergunto: qual o motivo dessa complicação toda?

Vejamos o raciocínio comum: Uma pessoa pode, sim, ser "classificada" como socialista segundo os ideais que persegue. Agora, o que fez essa pessoa perseguir esses ideais foi o tal conjunto de sinapses (que varia de pessoa pra pessoa).

Não consigo entender porque esse raciocínio é "inaceitável" para os materialistas. Você quer dizer que se eu perguntasse "Porque você ama a sua mãe?", um materialista JAMAIS aceitaria a resposta: "Porque ela me deu todo o carinho do mundo" ??? Ele apenas aceitaria algo do tipo: "Porque as informações sensoriais que eu recebi dela provocaram reações no meu cérebro, ao longo da minha vida, o que me fez criar afeto"? Não entendo: Um tipo de resposta nega o outro.

Você começou o artigo defendendo que os pensamentos humanos resultam de algo além do nosso mecanismo cerebral natural (pelo menos é o que ficou implícito). E concluiu dizendo que "é impossível aceitar o que diz o materialismo sem cair em contradição". No final, o seu texto se tornou uma crítica ao marxismo, uma crítica ao fato de que NEM OS PRÓPRIOS MARXISTAS são capazes de defender seus ideais sem cair em auto-contradição (o exemplo do socialista que você deu não tinha apenas intenção ilustrativa, tinha?). Isso não era o propósito inicial do texto. Ou era? O conceito de materialismo já é pouco compreendido entre muitos internautas. Utilizá-lo sem um esclarecimento breve, e em seguida negá-lo, não ajudou em nada a compreensão do seu ponto de vista. Se a sua intenção era dar uma noção de por que a citada idéia é contraditória, não deu. Após lermos o seu texto, eu e muitos outros leitores continuamos com a pergunta intacta.

Anônimo disse...

Joel, também estou deixando aqui a resposta que você me deu:

"Oi Ruben.

Obrigado pelas críticas ao texto.

Bom, você apontou de fato uma fraqueza do meu texto, que foi introduzir o termo "materialismo" sem defini-lo explicitamente.
Materialismo é exatamente a tese de que todos os pensamentos e idéias dos seres humanos são produto de condições materiais, físicas.
Há muitas variantes de materialismo. No meu texto foquei o pode ser chamada de variante positivista ou cientificista: é o funcionamento do cérebro, da biologia humana em geral, que determina os pensamentos dos indivíduos.

Existem outras variantes, uma delas o materialismo dialético do marxismo: o pensamento dos homens é fruto das forças produtivas materiais, ou do modo de produção (forma como a sociedade organiza sua produção), e da classe social que o indivíduo ocupa nesse modo de produção (nobre, escravo, camponês, burguês, proletário, etc).

O foco do meu texto foi na variante "positivista", e de fato o exemplo da crença no socialismo (que era de fato ilustrativo) foi uma escolha infeliz. O importante é lembrar que "materialismo" é simplesmente o nome dado à tese que eu tento refutar no texto: o pensamento dos homens é produto das condições materiais (sejam elas biológicas, raciais ou socio-econômicas)".

Anônimo disse...

Joel, ao contrário que vc tenha tentado se expressar por uma metáfora, vc foi muito mal ao afirmar que o pensamento de uma pessoa é resultado de suas condiç~eos cerebrais. Nossa, nós estamos no século XXI. Que conclusões mais ultrapassada!
O homem é uma construção social. Não se explica tão-somente por um cálculo matemático.
Quer dizer então que eu acredito no socialismo por causa das minhas sinapses? E as minhas vivências, vão pra onde? para as cucuias?
E ao responder um comentário vc afirma que que pretende ressaltar o verdadeiro motivo para alguém acreditar no socialismo. Já parou para pensar que não existe um motivo único? Que as pessoas podem acreditar na mesma coisa por motivações diferentes? Que uma pessoa pode crer simplesmente no socialismo pq convém acreditar que o Estado tem o dever de promover o seu bem estar em vez de ter que lutar para conquistá-lo? afinal, isso seria muito cômodo para muita gente!
Bjus

Joel Pinheiro disse...

Sonja, o seu comentário deixa claro que o meu texto falhou mesmo retumbantemente em seu principal objetivo: defender claramente o ponto que defendo.

O meu texto é (ou ao menos tentou ser) um argumento contra a visão de que nossos pensamentos sejam determinados apenas por fatores físicos.

Futuramente tentarei tomar mais cuidado com o meu uso da linguagem.