quinta-feira, maio 26, 2011

A Moeda Perdida

Pão de queijo - R$ 1,10. As últimas moedas dos cinqüenta Reais que o pai dera na semana anterior iriam agora, não fosse a estranha falta de dez centavos. Só podia ter sido o Tonhão. Logo que bateu o sinal, algum do grupinho dele pegou a carteira e jogaram bobinho, Lucas no meio pra variar. Acabaram devolvendo e foram pro futebol, só que faltava uma moeda. Naquele momento o Tonhão já devia estar contando vantagem no campinho e todo mundo rindo do idiota do “Luquinhas”; imaginava e ficava vermelho. Era a gota d’água.

Quase todos os meninos da turma jogavam futebol. Lucas era dos menores, e a pré-adolescência aumentara a distância, não só de altura. Como de costume, passaria o recreio andando pelos corredores e jardins com o Milton. Hoje, sem lanche: para a Coca não teria dinheiro mesmo, e o pão de queijo o Tonhão roubara.

Não saía de sua cabeça a zoada do mesmo dia na aula de Português. Foi pedido um exemplo de estrangeirismo; sua mão era sempre das primeiras, para a inveja – dizia sua mãe – dos colegas. “Videogame”. Acontece que, na sexta série, por algum motivo que ele ainda não entendia, gostar abertamente de videogame já não pegava muito bem. A tirada do Tonhão era idiota, sem qualquer graça: “Que nerd!”, mas todo mundo riu. Até quem não viu graça se sentiu na obrigação. Até a Helena.

“Nerd.” Em poucos anos aquilo seria uma besteira, um nada. Mas na sexta série era muito. E por enquanto não ia melhorar. Numa festa-baile ele vira o Tonhão e a Helena se beijando. Não foi que nem nos filmes: não era importante, era só um amasso num canto, no pano de fundo, e ninguém parava para ver. Ainda que Lucas não estivesse exatamente louco de vontade de roçar sua língua na de alguma menina da série – com uma possível exceção – esse próprio não querer era sinal de algo cada vez mais vergonhoso, mas que ele não sabia bem o que era. O fato é que o Tonhão já ficava e ele não tinha nem uma amiga.

“Eu odeio o Tonhão! Ele é um idiota.”

“O que a gente vai fazer?” Os dois já tinham planejado pequenas vinganças antes; Milton não era alvo freqüente de gozação, só de desprezo silencioso. “E se a gente roubar o material da mochila dele e jogar fora de novo?” Ele adorava o jogo.

“Não vai adiantar. Da outra vez ele nem reparou. Tem que ser pior: o Tonhão é um bosta!”

“E se a gente pegar o celular novo da Ju P. e botar na mala dele?” Tonhão já tinha tido duas “conversas” com a orientadora naquele semestre; uma vez por ter xingado a professora e outra por cabular aula para trocar figurinhas da Copa com uns colegiais. A diretoria sabia que ele era um mau elemento, só que sem o dinheiro que protegia outros similares a ele. Mãe professora de inglês, pai divorciado ausente. Entrara no colégio com bolsa, e por algum motivo o menino modelo tinha, desde a quarta série, desandado. A seqüência de fatos era previsível: recuperação atrás de recuperação, repetir um ano, namoro, sexo, maconha, briga. Mas o que eles podiam fazer? Mandar embora ou cortar a bolsa seria cruel, fora que a mãe ia dar um jeito de reverter na Justiça. Restava esperar que alguma das violações legais que o rapaz certamente cometeria no futuro fosse flagrada dentro dos muros da escola. Daí era fim de papo.

Lucas lembrava da festinha da primeira série do colega agora odiado. A casa simples, os salgados feitos pela mãe e pela empregada, o videogame antigo. Mesmo assim, sentiu que uma mera suspensão não bastaria. “Tem que ser sério, Caio. A Regina não vai fazer nada; tem que ser pior do que ela.”

Nessa confabulação os dois passaram na frente da capela da escola, e foi então que veio uma luz. Lucas se lembrou das aulas de catequese do ano anterior, com o padre Aurélio (uma inexplicável relíquia de rígida ortodoxia catequética num colégio há muito apostatado). O curso terminara na Primeira Comunhão, e desde então a lembrança das aulas enfraquecia. Conforme andavam adiante, contudo, algumas fagulhas da aula de religião acenderam na mente do garoto. O que é mesmo que a catequese tinha ensinado sobre a vingança?

“Já sei!” Ele parou junto da velha árvore que servia de pics no esconde-esconde do primário; o amigo parou também. “O Tonhão tem 12 anos, né? Ele tá entrando na puberdade. Ce já viu o sovaco dele? Então, os hormônios tão crescendo.” – Isso, é claro, não veio da catequese, mas das aulas de “Conscientização para uma Sexualidade Segura e Saudável”, curso que perpassava todo o Ensino Fundamental II, dado pela Ísis, psicóloga e pedagoga, e pelo Tadeu, o professor de ciências. “E como ele é grande, as meninas vão querer transar com ele. Eu vi ele beijando na festa da Lu S. Ele vai ter uma namorada. E ele vai transar ano que vem no máximo. Se for a Helena, ainda esse ano com certeza. A Ju K. vai dar a festa dela e os pais dela vão viajar. Vai ser em novembro. E ela já falou que vai liberar o quarto. Então a gente faz assim: a gente vai na festa e um de nós dá um jeito de deixar a Helena bem bêbada; lembra da aula de sexo? O Tonhão você não deixa ficar bêbado, senão não funciona. Daí quando eles forem para o quarto eu vou ficar escondido no armário com o meu canivete. E quando o Tonhão for chegar no orgasmo eu saio do armário e meto o canivete na jugular dele. Ele vai se virar e saber que fui eu que matei ele e eu vou rir da cara de coitado dele! Daí os últimos momentos da vida dele vão ser de vergonha porque ele vai estar de calça abaixada chorando na frente da Helena. Só que o melhor não é isso. Lembra da aula de catequese? Sexo é pecado mortal. O Tonhão cabulou um monte de aula e não vai lembrar de se arrepender. E daí depois que ele morrer ele vai direto pro inferno. E ele vai ser assado que nem um porco enterrado na merda do buraco mais fundo do inferno! E um diabo imundo vai estuprar ele para sempre sem nenhuma chance de escapar. Ele vai implorar por perdão e não vai ter, e eu vou rir pra ela!”

Milton arregalou os olhos. Lucas esboçava um sorrisinho satisfeito quando sua mão, que remexia dentro do bolso, sentiu uma pequena saliência dura numa dobra interna. Era a moeda que faltava; o pão de queijo estava salvo! Houve júbilo e regozijo.

2 comentários:

Mat Freitas disse...

Bom demais!

Bells disse...

genial! haha