terça-feira, agosto 18, 2009

Punir, com Amor

Compare essas duas posições: “Lugar de bandido é na cadeia! Roubou? Matou? Então tem mais é que pagar pelo que fez!”; “Eu acho que a função da prisão tem que ser sempre recuperar o presidiário. Punir por punir não faz sentido; é até cruel. O importante é a reinserção social do preso.”. Agora responda: qual dessas duas posições procede de um espírito mais humanitário, mais preocupado com o bem do ser humano? Talvez você pense que é a segunda, mas engana-se. A primeira posição é de longe a mais humana, e vou mostrar o porquê.

Consigo pensar em quatro finalidades possíveis para a punição: punir, recuperar, dissuadir, proteger. Talvez haja outras, mas acho que essas são as principais. A finalidade “punir” é o clássico restabelecimento da justiça, que foi violentada pelo ato criminoso. O homem culpado se apropriou do que não era seu por direito; por isso, ele deve, em contrapartida, perder algo que era. Dessa forma, ele percebe e sente na própria pele o mal que cometeu. Procura-se também recuperar o criminoso, para que, depois de solto, não volte a cometer crimes. Ao sair da cadeia, espera-se que tenha uma disposição moral mais benevolente e encontre um ambiente social menos hostil. O “dissuadir” refere-se ao efeito que a punição deveria ter em coibir criminosos potenciais: gente que só não comete um crime pelo medo de ser punida. E a quarta e última é a proteção do restante da sociedade, que fica mais seguro quando o criminoso é tirado das ruas.

Claro que essas finalidades não são excludentes. Devem ser, na medida do possível, harmonizadas. Mas qual delas é a principal, que não pode faltar de jeito nenhum? Defendo que a primeira finalidade, punir como um fim em si mesmo, seja a mais importante das quatro. Se ela não é considerada, toda e qualquer punição torna-se potencialmente injusta. Isso porque ela é a única que leva em conta, necessariamente, a culpa ou inocência de quem é punido. Vamos imaginar o que acontece quando alguma das outras três finalidades é elevada à condição de mais importante.

Imagine que um homem anti-social e violento vá para a prisão por 10 anos para que seja recuperado. Anti-social e violento, mas inocente - não cometeu nenhum crime. Nem é preciso dizer que, independentemente da “recuperação” e da “reinserção social” terem funcionado ou não, o que se passou aí foi uma tremenda injustiça. Agora imagine um outro caso, no qual uma pessoa inocente (mas que na opinião popular é culpada) seja punida para que sirva de exemplo e dissuada o povo de cometer crimes similares. Ainda que esse tipo de punição exemplar possa funcionar (e, de fato, em alguma medida funciona), trata-se de um ato revoltante, não é mesmo?

Por fim, dizer que a principal finalidade da punição é a segurança do resto da sociedade também leva a injustiças gritantes. Se fosse assim, então seria mais aceitável prender quem nunca cometeu um crime mas provavelmente cometeria no futuro do que quem cometeu um crime mas que provavelmente não cometeria mais no futuro, pois os primeiros apresentam maior risco para o resto da sociedade do que os segundos. Em outras palavras, faria mais sentido prender por 20 anos um jovem favelado totalmente inocente que, por suas circunstâncias, provavelmente entraria para a vida do crime do que um empresário que espancou a mulher ao pegá-la no flagra com um amante, mas que provavelmente nunca mais cometeria crime algum.

Só faz sentido ético punir quem é culpado. A punição do inocente só agrava ainda mais a injustiça; nunca é aceitável, não importa quão boas sejam as conseqüências (para a sociedade ou mesmo para ele próprio). A partir do momento que a punição em si (ou seja, pagar com um mal quem foi culpado de um mal) deixa de figurar entre as considerações acerca da punição, então torna-se irrelevante, ou na melhor das hipóteses secundário, se o punido é culpado ou inocente. Isso não é nada humanitário, e sim desumano. Não é bom que um inocente pereça para o bem da maioria. No final das contas, a opinião “retrógrada” revela-se a mais razoável e humana.

terça-feira, agosto 04, 2009

O Inferno é uma Raspadinha de Limão

O inferno é um assunto muito delicado hoje em dia. Inclusive, acho que é dos temas que mais geram resistência contra o Catolicismo. Esse é um ponto da sensibilidade humana que mudou muito. Séculos atrás, o inferno era a coisa mais natural do mundo; é, os maus são punidos eternamente mesmo e é isso, nada para se fazer drama, então trate de ser bom para não terminar lá. Hoje, mesmo quem acredita no inferno só o faz às custas de muito choro e ranger de dentes. “Mas como, todas aquelas pessoas, não é possível, são apenas seres humanos falíveis, não posso aceitar, é horrível demais!”

Embora tenha sua dose de sentimentalismo (o mundo moderno é muito sentimental!), acho que a sensibilidade contemporânea tem o seu ponto. Ser torturado eternidade adentro parece algo abusivo. Hesitaríamos em condenar mesmo os piores homens da história - Stalin, Mussolini, HITLER!!! - a uma pena desse tipo; o que dizer de homens comuns que, se bem que não foram nenhum modelo de virtude, também não cometeram grandes pecados? Quem seria capaz de condenar o sujeito “gente boa” da aula de inglês a torturas piores do que as piores que somos capazes de imaginar, não por um dia ou um bilhão de milênios, mas para todo o sempre?

A justificativa tradicional de que o pecado é uma ofensa a Deus, que tem dignidade infinita, e que portanto merece punição infinita não cola hoje em dia. Acho que o que falta, muitas vezes, é ressaltar o caráter voluntário e auto-infligido do inferno. O melhor jeito de se entender um conceito novo é com uma imagem ilustrativa. No meu caso, foi um sonho. Não; um pesadelo.

Consistia de dois elementos. O primeiro era eu. Na vida desperta tenho, a todo instante, inúmeros desejos e sensações. No sonho, tinha apenas um: sede. Uma sede muito forte, próxima da obsessão. Havia um calor no meu peito (na parte superior, logo abaixo da garganta), uma chama insuportável, um fogo dominador que precisava ser apagado, custe o que custar, por algo líquido e gelado. Meu ser se resumia a esse desejo. Esse é o primeiro elemento.

O segundo era um fluxo horizontal infinito de raspadinha de limão voadora. Imaginem um cano largo (diâmetro de uma cabeça humana, mais ou menos), suspenso na altura dos nossos ombros, com água passando. Agora tirem o cano e imaginem que a água continua a passar no mesmo formato cilíndrico. Era isso, só que ao invés de água era raspadinha de limão estupidamente gelada. Mas não dessas de praia, cujos cristais de gelo são grandes e bem distintos um do outro; pense numa raspadinha mais fragmentada, na qual os minúsculos cristais estão tão juntos que quase formam uma pasta; quem já tomou frozen margarita sabe do que estou falando. Agora só falta trocar o sabor da margarita pelo de limonada industrial, bem doce, dessas que são vendidas no McDonald’s ou no Burger King.

O resultado era matemático: entrei de cabeça, sedento, a boca aberta recebendo a raspadinha incessante que me invadia goela abaixo, sendo desnecessário engolir. Tão voraz estava que a velocidade do fluxo parecia pouca, de forma que eu me precipitava para frente para sorver ainda mais daquele gelinho salvador.

Era uma torrente implacável. O jato impiedoso cobria minha cara e descia pela minha traquéia impedindo a respiração. Contudo, a sede não passava. A pequena chama ainda queimava no meu peito. Talvez um pouco mais de velocidade, um pouco mais de voracidade... não adiantava. Fiquei sem ar e com ânsias de vômito. Seria uma boa idéia parar um pouquinho, fechar a boca, engolir e virar a cara de lado para respirar, mas na minha obsessão a única coisa que importava era saciar aquele desejo. A dor da falta de ar e a ânsia nauseante aumentavam sem que a sede diminuísse. O mergulho crescentemente insuportável nessa avalanche de limão me custava o ar vital sem retornar benefício algum. Eu sabia que a sede era insaciável e que estava em meu poder sair daquilo, mas não o fazia.

Logo acordei. A sede incontrolável, felizmente, fora criação do sonho, e dela restou apenas a imagem. Esse pesadelo maluco é para mim o melhor exemplo dos sofrimentos auto-infligidos, dos cursos de ação fracassados dos quais, embora reconheçamos o fracasso, não nos desviamos, obstinados num desejo mais forte que nosso melhor julgamento. O inferno, que é um estado da alma e não um lugar geográfico, deve, segundo penso, ser mais ou menos assim (só que com desejos e frustração existencial um pouquinho maiores).

Ilustração final, um trecho de Sto. Agostinho que li há alguns anos (no tratado “Sobre o Livre-Arbítrio”) e que pela primeira vez marcou essa idéia em minha mente:

“Certamente, o próprio fato de um desejo desordenado governar a mente já é, em si, uma punição nada desprezível. Arrancada da riqueza da virtude por forças opostas, a mente é arrastada pelo desejo desordenado à ruína e à pobreza; ora tomando coisas falsas por verdadeiras, e até defendendo essas falsidades repetidamente; ora repudiando o que antes acreditara e mergulhando de cabeça em novas falsidades; ora negando o assentimento a, e afastando da mente, argumentos claros; ora desistindo de encontrar a verdade e se delongando nas sombras da estupidez; ora tentando entrar na luz do entendimento mas logo desistindo, exausta.

“Nesse meio-tempo, a cupidez instaura um reinado de terror, assolando a vida e a mente humana com tempestades vindas de todas as direções. O medo ataca de um lado e o desejo do outro; de um lado, ansiedade; de outro, uma felicidade enganosa e vazia; de um lado, a agonia de perder o que se amava; de outro, a paixão por se adquirir o que não se tinha; de um lado, a dor da injúria recebida; de outro, o desejo ardente de vingança. Para onde quer que se vire, a avareza pode pinicar, a extravagância arruinar, a apatia esmagar, a obstinação incitar, a opressão enervar, e incontáveis outros males povoar e correr soltos pelo reino do desejo desordenado. Podemos, em suma, considerar essa punição algo trivial - uma punição que, como você vê, todos aqueles que não aderem à sabedoria sofrerão?”