segunda-feira, maio 26, 2008

Retomando Aristóteles...

Ética e felicidade; haveria dois conceitos mais distantes? Uma coisa é aquilo que devemos fazer: as regras e proibições às quais estamos submetidos. Outra, bem diferente, é aquilo que nos dá prazer e alegria, que nos torna felizes. Se há alguma relação entre as duas, é a inversa: a felicidade está exatamente em fazer aquilo que não deveríamos! Alguns objetariam: “Não é bem assim! Claro que a ética tem alguma importância para a felicidade. Se saíssemos matando todo mundo, não daria para ser feliz. Uma vez cumprida a ética, aí sim todo mundo pode procurar sua felicidade”.

Como estamos distantes da concepção aristotélica de ética! E como ela tem nos feito falta! Ética se tornou algum tipo de abstração, regras a serem seguidas, quando na verdade ela era nada mais do que o próprio estudo de como o homem deve se comportar para ser verdadeiramente feliz. E aqui deparamo-nos com a primeira “novidade”: existe uma verdadeira felicidade humana, universal e objetiva; felicidade não é qualquer coisa que a pessoa quiser.

“Ah, mas o que eu gosto é de passar a vida comendo pizza na cama! Você não pode me julgar!” – ora, somos homens! Há algo que nos distingue dos animais: a razão. Essa vida seria apropriada a um animal não-racional. Nosso amigo comedor de pizza talvez seja um bom porco (na verdade, nem isso), mas como homem ele é muito ruim, pois em sua vida não há espaço nenhum para aquilo que faz dele humano. Em geral é a própria pessoa que acaba descobrindo a roubada na qual esteve metida; pensou que seria feliz, mas encontrou apenas o tédio e o desgosto; precisa de cada vez mais pizza para obter um deleite cada vez menor. Mas mesmo que não descubra, nós, que olhamos de fora, vemos claramente que ele se contenta com bens muito menores do que sua natureza racional é capaz.

Existem coisas que tornam o homem feliz, e coisas que o afastam da felicidade à qual ele pode almejar. Isso não quer dizer que todas as pessoas tenham que ter a mesma vida. Não digo que “a verdadeira felicidade só é encontrada pelos bacharéis em economia e filosofia que procuram entrar para a vida acadêmica” - nada disso! Temos todos a mesma natureza humana, mas há muitas diferenças individuais que garantem uma grande variedade de vidas felizes. Mesmo assim, há coisas que valem para todos: é melhor amigos do que solidão; conhecimento do que ignorância; é melhor ser corajoso do que covarde; expedito do que preguiçoso; generoso do que invejoso.

O problema é que o ser humano não é uma alma que controla um corpo da mesma forma que um motorista guia um carro. Se o motorista quer fazer a curva à direita, basta virar o volante que o carro vai. Conosco é bem diferente. Sei que levantar no horário é bom para mim; quero levantar no horário; e, ainda assim, me delongo meia-hora a mais no aconchego da cama.

Mesmo reconhecendo o que seria o bom para sua vida, o homem tem dificuldade em persegui-lo. É preciso uma longa educação das próprias disposições internas (dos sentimentos, das paixões, das maneiras de pensar) para que ele viva de acordo com o que sabe ser o bem. A disposição de se comportar de forma boa é o que chamamos de virtude. Já a disposição má, chamamos de vício.

É muito difícil cultivar uma virtude; apenas com muitos pequenos atos de coragem repetidos ao longo de muito tempo é que nos tornamos corajosos. Já o vício cresce facilmente; basta não fazer nada que, espontaneamente, desenvolver-se-ão todos aqueles detestáveis traços de caráter que tanto odiamos nos outros, mas que relutamos em combater em nós mesmos. A coragem é um estreito meio-termo entre a covardia e a temeridade; a liberalidade (a virtude de se gastar bem o dinheiro), entre a mesquinhez e a prodigalidade. A virtude é a tendência a agir na medida correta, sem cair nem na deficiência e nem no excesso, que constituem os vícios.

Mas o que é a medida correta? Não quero ser nem glutão e nem passar fome; como saber se, na situação atual, a medida correta de comida é uma ou duas conchas de arroz? Assim como todas as questões importantes da vida, não é possível resolver o problema ético com regras ou fórmulas aplicáveis a todos os casos. Precisamos da virtude da prudência, que nos leva a avaliar as circunstâncias presentes e articulá-las com os princípios morais que nos guiam, de forma a descobrir como agir em cada caso particular. E como adquirir a prudência? Apenas com muita experiência e observação dos exemplos daqueles que vivem bem.

Esse jeito de encarar a ética muda tudo. Não estamos mais falando de leis distantes de nós, mas sim do tipo de atitude que teremos com relação a nossa própria vida, de forma a atingir nossa finalidade de animais racionais: a felicidade. Por um lado, nos livramos do peso opressivo de tantas regras que não nos ajudam a melhorar como seres humanos. Por outro, é uma concepção mais exigente: não basta seguir as regras. Você não mata, não rouba e pára no sinal vermelho; muito bem! Mas, até aí, a ética mal começou. Tudo o que fazemos impacta no nosso caráter, e portanto todas as nossas ações são passíveis de juízo ético. Mesmo sozinhos em casa, ou durante nosso tempo livre, podemos agir bem ou mal. Cada ação nos aproxima ou nos afasta da felicidade que desejamos – a ética começa quando percebemos isso e resolvemos fazer algo a respeito.

sexta-feira, maio 16, 2008

Nossa Amiga Desigualdade Social

Os 10% mais ricos detêm 75% da riqueza nacional. Essa é a realidade da nossa “distribuição da riqueza” (em breve explico as aspas). Ou seja, há poucos ricos e muitos pobres. Ao mesmo tempo, os pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos. Ninguém deve gostar desse quadro social, pintado há séculos e nunca modificado. No entanto, parece-me que a discussão sobre desigualdade social (e tributação, que caminha junto), partindo de alguns erros conceituais, e seguindo por caminhos totalmente equivocados, chega a propostas desastrosas. Quem perde com isso é a sociedade toda; principalmente quem está longe daqueles poderosos 10%.

Para começar, um choque: a desigualdade social, em si, não é um problema. No mercado, ela apenas reflete as diferentes contribuições dos diversos participantes em satisfazer os desejos dos demais. Claro, no caso brasileiro, parte dela se explica por intervenções do governo; e aí sim é maléfica, pois alguns ganham mais do que produzem, e outros produzem mais do que ganham. Mas não nos iludamos: a desigualdade não se deve principalmente à ação do governo. O mercado realmente promove a desigualdade, na medida em que as contribuições são desiguais.

Pensa-se em produção e distribuição como realidades diferentes. Primeiro os bens são produzidos, e só depois repartidos entre a população. É nessa repartição que moraria a injustiça, pois muito é alocado a poucos. Nada mais distante da realidade. A distinção entre produção e distribuição é puramente conceitual. Na realidade do processo de mercado, produzir e ter são apenas dois jeitos de ver uma mesma coisa. Quem produz algo de maior valor, tem algo de maior valor. Não existe nenhuma “distribuição”. Por isso as aspas.

É essencial para nossa vida que seja assim. É por meio da diferença de renda que sabemos quais serviços são mais demandados pela sociedade. Se faltam pães, o salário dos padeiros sobe. Isso gera um incentivo para atrair mais padeiros. É por isso que temos pão quentinho de manhã cedo. Talvez o padeiro preferisse grafitar as paredes da cidade; mas se ele quiser ter quatro paredes para morar, é melhor oferecer algo de valor aos outros. Portanto, ao forno!

Não fosse pela desigualdade de renda, não haveria incentivo para se dedicar a atividades que satisfaçam melhor as demandas da sociedade. “Faltam eletricistas; só que eu gosto mesmo é de tocar violão em bar. Minha renda seria a mesma nos dois casos; mudar por quê?”. Mas o problema vai mais fundo: sem desigualdade de renda, nem sequer saberíamos quais atividades estão em falta e quais em excesso. Só sabemos isso porque podemos comparar as diferentes remunerações. Talvez as pessoas queiram mais e melhores instalações elétricas, ou talvez queiram ouvir mais músicas batidas do Djavan no bar da moda; como saber, se a conta de um é fixada no mesmo valor do couvert artístico do outro? A igualdade de renda levaria rapidamente ao caos produtivo.

Portanto, a desigualdade de renda (e de riqueza) é boa. É nossa aliada, nossa amiga, no combate à verdadeira vilã: a pobreza. Ainda assim, note-se: a pobreza que hoje nos choca seria riqueza 200 anos atrás. Daqui a 1000 anos, quem sabe, o padrão de vida do Abílio Diniz qualificará para o bolsa-família. Esse progresso é fruto única e exclusivamente da organização e da cooperação humanas por meio do processo de mercado. Tentar trapaceá-lo, procurar atalhos redistributivos para a riqueza geral, põe em risco o processo todo.

O que nos traz ao segundo ponto: o sistema tributário. Parte-se da premissa inquestionável que uma das funções do sistema tributário é promover a igualdade. Como se tirar mais dos ricos ajudasse os pobres; antes, os prejudica. Se os fazendeiros pagam mais imposto, os alimentos encarecem. Os pobres terão ainda mais dificuldade para comprar comida; e aumentamos os necessitados do bolsa-família, o que requererá mais impostos... Cobrar alíquotas maiores de quem tem renda mais alta é, efetivamente, punir a produtividade. É minar as próprias bases de qualquer desenvolvimento econômico possível no país.

A única função do sistema tributário deve ser arrecadar dinheiro para os gastos públicos da forma menos custosa à população. O bem-estar de um depende do bem-estar dos demais. Se punirmos os produtores, ou os poupadores, com impostos mais altos, é óbvio que teremos menos produtos e menos poupança.

Focar-se na desigualdade como um problema a ser corrigido pelo Estado é perder de vista o que realmente importa: a melhora na qualidade de vida das pessoas. Só com uma mudança radical de foco conseguiremos, quem sabe, formular medidas que ajudem nossa população a sair da pobreza. E quando isso acontecer, mesmo que 10% continuem a concentrar 75% da riqueza, estaremos todos muito melhor.

domingo, maio 04, 2008

Deus ou Partícula-Deus?

Enquanto escrevo este texto (e enquanto você lê), desenvolve-se na Suíça um projeto revolucionário: a construção do Grande Colisor de Hádrons, um gigantesco acelerador de partículas. Seu objetivo é encontrar a elusiva partícula Bóson de Higgs. Até agora, ela tem sido suposta pela teoria física, sem nunca ter sido observada. Se conseguirem comprovar empiricamente sua existência, então a física conseguirá explicar muitos fenômenos, e fechar muitas de suas lacunas. Alternativamente, se as coisas derem errado, produzir-se-á um pequeno buraco negro que engolirá o planeta inteiro (eu escreverei um texto muito revoltado a respeito!!).

Há muito o que se dizer sobre o projeto. Do ponto de vista econômico, poderia questionar o gasto de bilhões de euros para realizá-lo. Não que ele não seja interessante, mas será que vale o que custa? No entanto, deixarei de lado esse ponto. Meu interesse aqui é filosófico.

O poder explicativo do bóson de Higgs é tão grande que já foi até chamado de “partícula-Deus”. Apesar do sentido humorístico do nome, ele representa um tipo de pensamento nada incomum: conforme a física se torne capaz de explicar os fenômenos do universo, e a explicar como surgiu o universo, então ela desbancará Deus. Se tudo pode ser explicado em termos puramente naturais, para quê Deus? Se descobrirmos qual a partícula fundamental do universo, a base e a origem de todo o resto, então o problema de Deus desaparece; os argumentos da existência de Deus revelar-se-ão furados: acreditava-se que a causa primeira era Deus, quando na verdade ela é o bóson de Higgs.

Quem assim pensa não entendeu direito os argumentos da existência de Deus. Não compreendeu que a ciência natural não pode nem sequer tocar a questão da existência de Deus, e que os argumentos, por sua vez, não dependem da validade de nenhuma teoria científica particular.

A prova da existência de Deus parte da constatação de que os seres do universo são contingentes. Isto é, poderiam não existir. Não há nenhuma contradição lógica em se imaginar que não existam homens ou cachorros. Por muito tempo, não havia nem homens nem cachorros. Homens e cachorros são, portanto, contingentes. Todo ser contingente necessita de um ser que não ele próprio como causa de sua existência; como o universo inteiro é o conjunto dos seres contingentes, ele próprio precisa de algo externo a si que seja a causa de sua existência; e é a esse algo, a esse ser necessário, cuja existência não depende de nada mais (e, se assim não fosse, não poderia haver seres contingentes), que chamamos de Deus.

O bóson de Higgs é um ser contingente. Tanto é assim que estamos fazendo experimentos empíricos para ver se ele de fato existe ou não. A existência de um ser necessário pode ser conhecida pela mera especulação mental; se entendemos o que ele é, podemos concluir logicamente que ele existe. Sua não-existência implicaria uma contradição lógica. Para saber se existem homens, cachorros ou bósons, não basta formular um argumento abstrato; temos que sair pelo universo para ver se achamos algum exemplar deles.

No fundo, a ciência e a filosofia fazem perguntas diferentes, e é isso que gera a confusão. A ciência pergunta “como se dão os processos no universo? Quais são as causas que operam NO universo?”; e a filosofia (nesse ponto): “qual é a causa DO universo?”.

A ciência investiga como as coisas são. Mas a questão da existência de Deus não depende do “como”, e sim do “que”; é o fato da existência de algo que nos leva a Deus. Não importa se esse algo é composto de partículas indivisíveis e iguais ou dos cinco elementos primordiais (água, fogo, etc). Tudo isso é “como as coisas são”, algo posterior ao mais elementar “que”: o fato de elas existirem.

A ciência muito nos ensina sobre o universo, mas não pode ir além dele. Seja o universo como for, com ou sem bóson de Higgs, a existência de Deus continua necessária como sempre. A partícula-Deus, a seleção natural, ou a super-corda podem explicar muita coisa, mas não respondem à questão fundamental: por que existe alguma coisa ao invés de não existir nada?