quarta-feira, julho 02, 2008

Ética e Neurociência

Vejam esta notícia.

100 quilos de comida. Uma comunidade esfomeada. Se a comida for dividida entre todos, 20 quilos serão desperdiçados. Se dividida entre metade da comunidade, o desperdício é de 5 quilos. Quem opta por dividir entre toda a comunidade costuma ter acionada a parte do cérebro ligada às emoções. Quem opta pelo menor desperdício, aciona a parte ligada a recompensas. Conclusão? Nosso senso de justiça está ligado aos sentimentos, e não à razão.

Mas quem disse que dividir igualmente é o justo? De onde se tirou que a justiça demanda tratar todos com estrita igualdade sempre? Se assim for, então todos nós somos injustos ao dar uma esmola, pois temos uma certa quantia de dinheiro que, ao invés de dividirmos entre todos os pedintes da cidade, vai para apenas um, que por acaso cruzou nosso caminho. Se dermos a um e não a outro, cometemos injustiça? Claro que não.

Com presentes, doações e esmolas, não há justiça ou injustiça: são frutos livres da caridade humana. Ninguém tem o direito de receber um presente; ninguém pode exigir uma doação (se pudesse, não seria doação). Quando ocorre uma injustiça, significa que alguém não recebeu o que é seu de direito, e portanto pode exigi-lo, mesmo à força (e é para isso que existe o Estado; para que essa “força” não seja a de cada indivíduo, mas sim de uma autoridade imparcial e justa). Ninguém tem, por si só, “direito à comida”. Se uma pessoa quer que outras a alimentem, ela tem que dar algo em troca; a não ser que, como no caso estudado, alguém se disponha a fazer caridade.

Grande parte das pessoas hoje em dia crê que o justo seja a igualdade. É claro que seus sentimentos relacionados à justiça refletem isso. E foi o que os neurologistas captaram. Se cressem que o justo, que o imperativo moral, é dividir desigualmente, teriam acionado a região dos sentimentos com a resposta contrária. Mas isso não tornaria essa ou aquela resposta a resposta racional. O que revela qual decisão é a mais racional é o estudo da própria questão em seus termos. A análise ética independe de se saber se foi o neurônio X ou Y que fez a sinapse.

A confusão aqui reside numa falsa dicotomia da ética moderna: a separação do moral e do racional. O campo da razão é aquele no qual escolhemos os meios para se chegar a um fim, ou analisamos a coerência interna de algum sistema. Já a moral trata da escolha dos fins, e é fruto de mandamentos arbitrários ou de sentimentos e paixões que nos guiam. Os neurologistas seguem essa separação: seguir o senso de justiça é seguir os sentimentos; o pensamento mais racional é “eficiente”, o que pouco tem a ver com o bem.

E têm uma ideologia por trás: tudo o que se considerava como “moral” ou “ético” antigamente, todas as noções da tradição e mesmo do senso comum, têm que ser mostradas como irracionais. As instituições humanas não são fundadas na razão, e sim nas paixões e nos instintos. Moral, liberdade, responsabilidade pessoal, é tudo ilusão. Isso é pressuposto em toda a pesquisa neurológica atual (embora não seja, de forma alguma, uma afirmação científica), e todos os resultados experimentais são interpretados de forma a confirmá-la. Que conseqüências isso terá para a vida humana e para a organização da sociedade, o tempo dirá.

13 comentários:

Anônimo disse...

Alô Joel,

Lendo o artigo, não percebo o que a divisão de 100 quilos de comida por uma população esfomeada tem a ver com justiça, como está implícito no artigo...

Ser justo uma pessoa esfomeada obter comida significa que ela fez algo para merecê-la. Mas pelo artigo, não se percebe o que a população esfomeada tenha feito para merecer a comida, para além de simplesmente estar esfomeada, que é o que é implicitamente argumentado pelo artigo e por muita gente. Ou seja, o facto de uma pessoa estar esfomeada faz com que ela mereça comida...

Claramente discordo com este ponto de vista. Darmos comida a uma pessoa esfomeada não tem nada a ver com justiça porque a pessoa nada fez para merecê-la, sendo possivelmente por causa disso que está esfomeada.

Nós damos comida a uma pessoa esfomeada não por um sentido de justiça, mas sim por um sentido de solidariedade para com o próximo, porque sentimos compaixão e pena. Porque simplesmente somos seres humanos.

Na minha opinião, o estudo feito é simplista e não tem verdadeiro valor científico e aplicabilidade no mundo real.

A opção que deve ser feita no estudo apresentado depende do objectivo da pessoa: se o objectivo fôr desperdiçar menos comida possível, então alimentemos apenas metade da população; se o objectivo fôr alimentar toda a gente, então há que dar a comida a toda gente.

Se o objectivo fôr ajudar o máximo número de pessoas possível, então o estudo nada diz, porque ficamos sem saber como o desperdício de comida irá afectar a população imediatamente ou posteriormente! E é aqui que o estudo falha de uma forma grosseira.

Cumps.

Joel Pinheiro disse...

Concordo plenamente!
Obrigado pelo comentário!

Anônimo disse...

Incomoda-me a idéia de que a pessoa precisa fazer algo para merecer a comida, mesmo porque quem define este merecimento?

Além do mais, a idéia de que a pessoa deve merecer a comida para poder recebê-la me parece desumana: afinal, não temos todos o direito à vida? E se temos o direito à vida, não temos direito às condições básicas de sustento?

Caso contrário, o sujeito fica à mercê da boa vontade de quem "merece" a comida, isto é, os ricos. O que significa, no fim das contas, que o pobre só pode comer se fizer por merecer, quando o rico, até por direito de herança, não precisa fazer merecer para poder sustentar-se, para fazer valer seu direito à vida.

Isso sim é injusto, tanto quanto desproporcional, não razoável e, claro, desigual. Lembrando que o desproporcional e o não razoável são duas formas de se dizer a desigualdade, palavra que, claro, tem muitos sentidos.

Lucas Mendes disse...

Excelente discussão:

Adriano disse,
"O que significa, no fim das contas, que o pobre só pode comer se fizer por merecer, quando o rico, até por direito de herança, não precisa fazer merecer para poder sustentar-se, para fazer valer seu direito à vida."

Do ponto de vista da moral, não há justificativa à herança farta, nem à herança pobre. Afinal, o que tem Pedro de tão especial, do ponto de vista da moral, que ele mereça nascer rico? E o que tem o João de menos especial, que mereça ter nascido numa família pobre?

Dilemas morais, que inevitalvelmente impõe pressão à disciplinas como a economia, que, por seu lado, não pode desprezar o peso destas indagações.

Anônimo disse...

Nota: acho que todos sabem que sou avesso tanto à social-democracia, como ao socialismo. Espero que por minhas questões parecerem um tanto quanto assistencialistas — e Deus me livre do assistencialismo —, isso não impeça a discussão.

Digo "Deus me livre do assistencialismo", mas jamais concordaria com a extinção imediata do Bolsa Família, por exemplo, «acaso houvesse o risco de que pessoas passassem fome em decorrência» (e aqui um mero «talvez morram» é inaceitável).

De qualquer forma, também acho muito boa a discussão, porque não aceito o dogma de que necessariamente o mercado traga os maiores benefícios. Isso não quer dizer que eu seja estatista, estou longe disso; mas isso quer dizer sim que eu vejo muitos problemas na defesa do mercado quando esse mercado parece tão-somente ideal (ou, por exemplo, no mercado real não há corrupção?).

Anônimo disse...

Parece que por desprezar o comunismo e o estatismo contemporâneo somos obrigados a aceitar irrevogavelmente as benesses do grande salvador chamado mercado. A própria doutrina social da Igreja parece impor limites ao capitalismo, ou não? É claro que se pode falar em Concílio de Metz, em "invasão comunista" na Igreja e o escambau a quatro. Mas o que eu quero dizer, no fim das contas, é que o mercado não é a melhor escolha sempre, isto embora o Estado seja quase sempre a pior escolha.

Na verdade, tudo é imperfeito nesse mundinho nosso, sempre contingente; mas porque o capitalismo e a democracia sejam bons sistemas, disto não se segue que sejam sempre bons.

Afinal, mesmo que um homem seja bom, não é bom sempre. Damn tricky language.

Joel Pinheiro disse...

Olá Adriano.

Em resposta ao seu primeiro comentário:

Concordo que uma pessoa não precise fazer nada para merecer comida.

Mas no meu texto tentei me manter longe dessa questão. E acho que há uma diferença entre merecer e ter um direito (que, aqui, significa a possibilidade de se exigir, legitiamente, algo de outras pessoas).
Deixe-me tentar deixar claro a distinção que vejo entre merecer e ter direito com um exemplo:

Um artista pinta um quadro muito bonito. É de fato uma obra de valor; tem qualidade real.
Esse artista merece que sua obra seja estimada pelo público. Ele merece conseguir uma galeria na qual ela seja exposta. Merece, por fim, que sua obra seja comprada por algum colecionador ou museu.

No entanto, ele não tem o direito; não pode exigir nenhuma dessas coisas de ninguém. Se nenhuma galeria se interessar pelo trabalho dele, "azar". Talvez o público não tenha o nível necessário para apreciar sua obra; é algo com o qual ele terá que viver. Se ninguém quiser o quadro, ele não tem nenhum direito de ser remunerado (isto é, de receber algo de outra pessoa).

A pessoa que passa necessidades merece sim tê-las satisfeitas. Mas não tem, ao menos não de si, o direito de exigir tais coisas de outras, a quem ela nunca deu nada.

O Estado pode criar, e cria, tais direitos. Meu texto não entra nessa discussão, e também eu não entrarei agora. Só digo minha posição em resumo: a criação desses direitos apenas intensifica os males que visa combater, e cria novos. Portanto, defendo que tais direitos não devam ser criados.

O texto, novamente, não entra nesse mérito. Dado que é um ato de caridade do qual o exemplo trata, tomo como evidente que não seja a aplicação de um direito. Se a sociedade do problema tem ou não um Estado assistencialista que vise garantir direito à alimentação à população fica em aberto. O fato é que existem pessoas com fome e uma doação, um ato de caridade, ou seja, não obrigatório, ou seja, que não podia ser exigido pelos beneficiados, está sendo feito.

No mais, não precisa exagerar na retórica. Não são só os ricos que conseguem se alimentar sem caridade.

Concordo com você que há sim desigualdades más, desproporcionais e injustas (embora isso não seja decidível por nenhuma medida quantitativa. Uma desigualdade de 100 para 1 pode ser justa, e uma de 2 para 1 injusta). Creio, no entanto, que elas sejam, via de regra, decorrentes da ação governamental.

No mais, valeu por manter acesa a chama da polêmica!

Anônimo disse...

Na verdade, Big Bro' Jo, eu me referia ao primeiro comentário, em que foi dito:

"Darmos comida a uma pessoa esfomeada não tem nada a ver com justiça porque a pessoa nada fez para merecê-la, sendo possivelmente por causa disso que está esfomeada."

Meu ponto não se relacionava ao seu texto, mas a esse comentário aí, que eu acho simplesmente desumano. E pior, complementa-se dizendo:

"Nós damos comida a uma pessoa esfomeada não por um sentido de justiça, mas sim por um sentido de solidariedade para com o próximo, porque sentimos compaixão e pena."

Como se fosse um grande favor (embora não deixe de ser) por parte de um grande humanitário dar comida a quem passa fome, e não um dever.

Mas gostei do "porque sentimos compaixão e pena" quando também se diz que "o estudo feito é simplista e não tem verdadeiro valor científico e aplicabilidade no mundo real". Não entro no mérito, mas é curioso dizer que o estudo não tem valor científico ao passo que se o comprova ao falar em dar alimento devido aos sentimentos de "compaixão e pena".

Quanto ao seu texto, Joel, acho que ele mereceria maiores comentários. Mas acho que não sou capaz de fazê-los nesse mesmo. Porém abro algumas perguntas, decerto de fácil resposta: a moral funda-se nos sentimentos ou na razão? E mesmo que digamos que se funda na razão, como saber que é tão-só a razão e não os sentimentos que nos levam a agir?

E mais outra: pode a ciência mostrar a origem da moral ou devido aos seus pressupostos metodológicos já implica ela mesma uma resposta, que portanto é viciosa? Por aí segue.

Grande abraço (para o Joel, desta feita).

Joel Pinheiro disse...

Ah sim, vejo que suas considerações são pertinentes.

De fato, quando Ulaikamor diz que a pessoa não merece comida, eu só concordo se com isso ele quiser dizer o mesmo que eu usei o termo "direito" para se referir.

Acho sim que a pessoa merece comida, mas não tem, ao menos a princípio, nenhum direito a tirá-la dos outros.

Anônimo disse...

Alô.

Eu quis mesmo referir no meu comentário a palavra "merecer" e não o ter "direito".

Na minha opinião, o "direito" é uma questão de legitimidade, é uma questão de um número largo suficiente de pessoas reconhecerem as pretensões de um determinado indivíduo ou indivíduos.

Quanto ao "merecer", quando todos nós éramos crianças, era-nos contada a história da formiga e da cigarra. Não sei se vocês conhecem a história, mas resumindo, a história conta que durante o Verão a formiga trabalhou e trabalhou, enquanto que a cigarra só cantava. E quando chegou o Inverno, a formiga tinha armazenado comida suficiente, enquanto que a cigarra... bom, acho que não preciso continuar. Eventualmente, a cigarra teve que pedir abrigo à formiga.

Tendo em mente esta história, onde é que está o merecimento ou até o direito da cigarra de pedir algo que seja? Ao contrário, a formiga mereceu estar na sua casinha comfortável.

É exactamente o mesmo com a analogia do pintor que o Joel fez. Se o pintor tivesse feito um quadro em 5 minutos e não tivesse perdido o tempo a realmente produzir algo digno da arte, o que merece ele?

Agora, se me dizem que a minha posição é dura, só posso concordar. No entanto, o que seria da cigarra se a formiga também tivesse passado o Verão a cantar?

E é exactamente neste ponto que eu quero tocar. Nos dias de hoje, às pessoas que nada fazem são dadas tudo. As pessoas que pouco produzem são o foco da atenção. As pessoas que contribuem pouco para o bem-estar comum, expressão muito usada por certas pessoas, chegam de vez em quando a ser vistas como heróis.

Pois, peço desculpa, mas não posso concordar com essa posição, porque o herói sou eu, que acordei hoje às 6h30 da manhã, trabalhei o dia todo e provavelmente só vou chegar a casa às 20h00, sendo que 1/3 daquilo que produzo vai para pessoas que eu nunca vi à frente. E, aparentemente, sou desumano porque simplesmente acho que eu mereço aquilo que tenho e as outras, que levam 1/3 daquilo que produzo e nada fizeram para o merecer, não.

Relativamente ao seguinte comentário, “Como se fosse um grande favor (embora não deixe de ser) por parte de um grande humanitário dar comida a quem passa fome, e não um dever.”, não deveria essa pessoa ser considerada um grande humanitário? Não deveria essa pessoa ser vista como um herói? Não deveriam as pessoas, cujo esforço permite a que outras também sobrevivam, ser respeitadas e vistas com bons olhos? E, no entanto, aparentemente não é assim! É preciso dar e ficar-se na miséria. Só isso parece satisfazer certas pessoas.

A tendência nos dias de hoje é as pessoas darem e serem insultadas por não darem mais. Pois, penso que as pessoas deviam pensar mais no que seria das pessoas carenciadas se as pessoas que trabalham deixassem de o fazer...

Eu pelo meu lado vou continuar a trabalhar. Quanto a dar... começo a ficar ulcerado...

Cumps.

Jether disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joel Pinheiro disse...

Ulaikamor, tendo a concordar. Não é pelo mero fato de existir que uma pessoa merece ganhar tudo aquilo que ela precisa/quer.

No entanto, pense no caso de alguém que se esforça para trabalhar, que faz tudo com diligência e honestidade, e mesmo assim, infelizmente, não consegue se sustentar. Eu diria que essa pessoa merece sim ganhar seu sustento. Tanto que, se ela finalmente conseguir, será natural dizer a ela: "Ah, finalmente você conseguiu o que merece!"

Mas note que dizer que ela merece é bem diferente de dizer que deva haver algum sistema coercitivo que transfira a renda de outros para esse indivíduo.

Jether disse...
Este comentário foi removido pelo autor.