quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Consumo não é consumismo, ou Apologia do shopping center

As atitudes contemporâneas acerca do consumo são totalmente equivocadas. Quais são as duas coisas que se costuma dizer? 1) o consumo é um vício, algo que destrói o indivíduo; 2) entretanto, ele ajuda a economia a crescer e nos torna mais prósperos. As duas estão erradas; o consumo não causa crescimento econômico nenhum - ele é apenas consequência do crescimento, e pode inclusive significar retração econômica se for aumentado às custas da poupança. Mas mais importante do que isso é que o consumo não é mau e nem degrada o ser humano; antes, ajuda-o a chegar à plenitude de sua existência.

O que é consumir senão utilizar algum meio externo (isto é, distinto do próprio agente) para atingir alguma finalidade? Comer um hamburger é consumir, vestir uma roupa é consumir, ouvir uma sinfonia é consumir, ler um tratado filosófico é consumir. O que muda é a finalidade. Por acaso é algo mau se alimentar, estar bem vestido, apreciar uma obra de arte ou ponderar sobre as grandes questões da existência? São coisas boas? Então também são bons os meios pelos quais chegamos a elas.

Ademais, repare no seguinte: quem considera o consumo um mal deveria, conseqüentemente, ter a mesma opinião acerca do trabalho, pois todo trabalho visa ao consumo; seja o consumo do próprio trabalhador ou o consumo de outros, por meio da troca. Não faz sentido, portanto, louvar um e condenar o outro, a não ser que o ideal do sujeito seja o trabalho supostamente praticado por alguns monges, que teciam cuidadosamente cestos de vime para depois desmanchá-los e tecê-los novamente. Não conheço a origem dessa história, e nem se é verdadeira; sei que os primeiros monges e eremitas do Cristianismo, os chamados padres do deserto, que abandonaram o mundo para meditar e orar no deserto, faziam cestos que eram vendidos no mercado, e com o dinheiro compravam seus víveres (muito poucos, obviamente, pois sua vida era de abnegação). O mesmo vale para a imensa maioria dos monges, aos quais mesmo os ateus são gratos pelas cervejas e bolos. Fim do parêntese histórico-teológico. Tudo isso para dizer que consumir é, em si, um bem, uma necessidade humana.

Coisa muito diferente é o consumismo, a doença do consumo, que é o desejo excessivo de comprar. Acho que há uma série de motivações por trás dele: o apego aos prazeres sensíveis de curto prazo; o gosto superficial da novidade pela novidade; o desejo de aparecer e ser admirado pelo que se tem. Todos eles, creio, fluem de algo mais profundo, um vazio da alma que não será preenchido nem por dez mil acessórios Louis Vuitton.

É muito fácil fazer a acusação de consumismo genérico. Compra-se muitas coisas supérfluas; para quê ter um celular que tira foto? No caso particular, contudo, cada compra parece ter sua razão de ser. De perto, o que parecia um aglomerado de zumbis arrastado por campanhas de marketing rumo ao shopping revela-se uma família normal (no bom sentido) satisfazendo suas necessidades de forma razoável e eficiente. É ótimo e prático ter um celular que tira foto; assim posso registrar e partilhar momentos que de outra forma perderia; por que não? Pois é; é muito fácil bater no peito e dizer que se é consumista no geral, mas difícil identificar quais compras são realmente desnecessárias e prejudiciais.

Para dificultar a questão, a diferença entre o consumo e o consumismo é apenas indiretamente ligada à quantidade de produtos comprados. Em geral, tudo mais constante, o consumista tenderá a comprar mais do que o consumidor temperante. Mas mesmo alguém que não consuma tanto ou de forma tão extravagante pode ter sua atenção inteiramente voltada para sonhos de consumo ao qual ele não tem acesso (carros, iates e mansões que ele não tem dinheiro para comprar). E há o consumismo alternativo, o desejo por produtos raros e únicos (o artesanato da tribo perdida, o CD da banda que ninguém conhece); aqui não se busca a quantidade e nem alguma qualidade do produto em si, mas uma sensação socialmente atribuída a ele (a raridade, a sensação de superioridade intelectual ou cultural, etc). Em suma, é fácil valorizar exageradamente os bens materiais, mas não é fácil identificar as ocasiões em que isso ocorre.

Já repararam que muita gente fala mal de shopping center e bem de museu, mas frequenta sempre o primeiro e quase nunca o segundo? É que o shopping ganhou a fama de símbolo do consumismo, então pega mal dizer que se gosta dele. Eu, apreciador assumido do bom shopping center, tendo passado diversos bons momentos em suas dependências, sinto-me moralmente compelido a defendê-lo; que não mais se confunda consumo com consumismo!

Vejam só: sempre que é preciso fazer uma compra ou que se quer ir ao cinema, lá está o shopping como a opção mais prática, na qual ainda pode-se tomar um lanchinho ou saborear uma boa refeição. Ora, por que não ir a uma rua de comércio? Porque o shopping simplifica e facilita muito a nossa vida. Reúne várias conveniências num mesmo ambiente com ar-condicionado, pouco barulho (passeie pela Teodoro Sampaio e me diga se uma trilha easy-listening não é preferível à barulheira dos ônibus, e o ar condicionado ao sol de rachar, ou à chuva), é muito mais fácil de parar o carro e bem mais seguro. Isso permite uma alta concentração de lojas num local agradável o bastante para permitir que os consumidores passeiem com calma; e é aí que descobrem novas oportunidades de compra.

O shopping é um templo do consumo? Só para quem faz do consumo seu deus. Para quem tem suas prioridades em ordem, é onde se resolve com pouco gasto de tempo as necessidades de consumo, sem falar na boa sociabilidade e nas opções de lazer oferecidas. Um ponto concedo de bom grado: o shopping é palco de muita cafonice. Ele reflete, afinal de contas, o gosto dos consumidores; e hoje em dia, por algum motivo que desconheço, imitações baratas de arquitetura neo-clássica e orquestras de papais Noéis tocando standards americanos passam por elegantes (bom, até aí, Campos do Jordão é muito pior). Além disso, algumas de suas qualidades geram defeitos: a segurança relativamente confiável, por exemplo, faz com que os pais deixem seus filhos lá sem grande medo. A conseqüência é termos que aturar a euforia boçal das trupes de pré-adolescentes que experimentam, no shopping, seu primeiro gostinho de liberdade (eu bem sei; já fui um deles).

Mas nada disso deve inibir o consumidor virtuoso. Vá lá ao shopping com seus amigos (ou desacompanhado - o estranhamento de ir ao cinema ou a um restaurante sozinho ocorre somente na primeira vez; a partir daí, vira um ótimo programa - tenho experiência nesse departamento), tenha uma tarde excelente e, quando um pseudo-intelectual ou um “geração saúde” vier com aquele olhar reprovador, lembre-se de que a diferença de hábitos pos si só não os torna imunes ao consumismo.