segunda-feira, junho 08, 2009

Apenas letal

“O homem é apenas um punhado de moléculas” - diz, com sorriso maroto, o materialista iconoclasta. Tudo o que você conhece e gosta - seus ideais, seus sonhos, sua namorada, o carinho da mamãe, tudo - é ilusório. Os cientistas comprovaram: a realidade é composta de moléculas. Não há Deus. No entanto, o que torna a afirmação tão perigosa não é a ciência, e sim o uso espertinho da gramática.

É verdade, o homem é (no sentido de “é composto de”) um punhado de moléculas. Até aí, não conheço ninguém que discordaria. O veneno está invisível, escondido na singela expressão “apenas”. “Eu queria apenas me divertir!”; “Foi apenas uma vez!”; “o homem é apenas um punhado de moléculas”. Com apenas uma palavra, todas as esferas da realidade menos uma são eliminadas. Contudo, não nos deixemos levar: o "apenas" é apenas uma manobra retórica, e não um motivo racional para restringir nosso pensamento à esfera querida por nosso interlocutor.

Uma casa é uma pilha de tijolos, mas não é apenas uma pilha de tijolos. Não acredita em mim? Vá aos fundos de uma olaria; lá haverá muitas pilhas de tijolos, mas nenhuma casa. A definição dada responde à causa material, à pergunta “do que é feito?”, mas é apenas uma parte da resposta à pergunta mais ampla “o que é?”. Faltou o mais essencial: uma casa é definida, antes de tudo, não pelos materiais que a compõem (embora também por eles), mas por seu projeto: ela é dividida em cômodos, cada um com sua função no todo cujo fim último é abrigar e permitir a vida de uma pessoa ou grupo delas. E o que é esse projeto? Ele está desenhado num papel, na planta, mas ele não é o desenho. Tanto é assim que é possível desenhar o mesmo projeto em outro papel com outro lápis, e nem por isso a casa terá dois projetos. O projeto é aquilo que o desenho expressa: a estrutura lógica, racional, da construção: os tamanhos e localizações dos cômodos, onde cada material será usado, a função de cada cômodo, etc.

É o projeto da casa, a estrutura lógica que ordena o todo, que a metafísica tradicional chamava de “forma”. A forma não é uma entidade paralela ao ser real; o projeto asbtrato e a casa física não existem separadamente. Tijolos sem projeto, e projeto sem tijolos, não seriam uma casa.

A filosofia incorreu num grande erro quando aceitou a distinção radical que Descartes fez entre corpo (“coisa extensa”) e mente (“coisa pensante”). É simplesmente impossível bolar uma teoria que explique satisfatoriamente como duas coisas radical e categoricamente diferentes podem influenciar uma a outra (a resposta de Descartes, a glândula pineal, era claramente o ponto mais fraco de seu pensamento). Assim, de duas uma: ou o corpo engoliu a mente (materialistas), ou a mente engoliu o corpo (idealistas).

A única saída disso é negar de saída o dualismo cartesiano, segundo o qual corpo e mente seriam duas substâncias distintas (isto é, entidades que existem por si mesmas). Antes, a relação entre os dois é aquela que existe entre matéria (do que algo é feito) e forma (o que algo é). É impossível entender um ser vivo sem falar de funções (alimentação, crescimento, reprodução, etc), algo que evidentemente não está dado nos componentes materiais (moléculas) de que ele é feito. A alma é o princípio ordenador pelo qual o ser desempenha todas aquelas operações próprias do ser vivo; é como o projeto da casa, mas que determina não apenas uma extensão espacial estática, mas todo um jeito de se comportar e todas as capacidades que o ser vivo pode desenvolver. O que chamamos de mente é uma das funções da alma, que depende, para funcionar, do corpo (dos sentidos, da memória, etc), mas não é o corpo.

Isso significa abrir mão da imagem sedimentada na nossa imaginação coletiva, e inegavelmente útil: a do corpo como morada da alma, que o guia assim como um motorista guia um carro. Por serem entidades de categorias diferentes (física e não-física), é impossível traçar qualquer relação inteligível entre corpo e alma no modelo dualista. Como pode a alma, entidade não-física, ter efeitos físicos? E como pode o corpo, pura matéria, mexer com o espírito? Reduzir o homem, ou qualquer ser vivo, ou qualquer ser, a apenas matéria ou forma é fechar-se a uma parte limitada e em si mesma ininteligível da realidade; é apenas mutilar a própria inteligência.

terça-feira, junho 02, 2009

Cada um é dono do seu nariz

Entro feliz num bar, para uma reunião de amigos, quando me dou conta de estar em meio a fumantes, o que logo me deixa preocupado. O primeiro dos nada agradáveis sintomas é a irritação da garganta e dos olhos, que de tanto coçar transformam-se em chagas inflamadas de lágrimas e catarro, o que não é grave se comparado ao que se passa dentro de mim: à fumaça que entra em meu peito a cada respiração, e que me levará, em alguns anos, do bar à UTI, esquelético e careca depois de várias quimioterapias fracassadas, aguardando sozinho a morte de câncer pulmonar. Por pior que seja, contudo, câncer letal é pouco perto do pior efeito do tabaco: ao sair do bar, minhas roupas e corpo exalam um odor tão repulsivo que eu me sinto como o fundo de um cinzeiro lotado de bitucas amanhecidas. A única coisa a fazer é incinerar as roupas imediatamente e me esfregar com a bucha por duas horas no banho. Assim, não sou exatamente fã do cigarro. Mas há algo que eu odeio ainda mais: a lei anti-fumo de José Serra, nosso Stalin da saúde.

Onde foram parar o direito de propriedade e o direito de escolha? Um dono de bar tem o direito de escolher se permitirá ou não que se fume em seu estabelecimento. Não há maneira mais justa ou eficiente de se solucionar o problema.

Justa, porque respeita o direito de propriedade e autonomia de cada um. O dono de um estabelecimento pode decidir as regras que valem lá dentro, e quem não quiser segui-las, que não vá lá. Ninguém é obrigado a ir a bar ou balada nenhuma. Eu detesto música tecno e ambientes barulhentos e escuros; adivinha qual é minha conduta acerca da maioria das baladas que existem por aí? Peço ao Serra que imponha por lei um nível mínimo de luz e um nível máximo de ruído, bem como uma política de cotas para músicas de vários estilos em cada balada? Não; simplesmente não vou. E já que não conheço nenhuma balada próxima de mim que não seja assim, não vou a baladas e ponto final. Se quiser baladas diferentes, devo estar disposto a pagar por elas; não estou.

Essa solução é também a mais eficiente. Se eu terminantemente não quero contato com cigarro, não irei à casa de um fumante ou a um bar que permita o fumo. Se a ojeriza dos não-fumantes ao cigarro for tal que eles se recusem a ir a bares de fumantes, ou estejam dispostos a pagar a mais para ter seu “smoke-free environment”, então valerá a pena abrir bares onde é proibido fumar. Se tais bares não existem, então ou o os não-fumantes não se incomodam tanto assim com o cigarro, ou há oportunidades de lucro esperando os primeiros empreendedores a auferi-las. Provavelmente, o desgosto com o cigarro não é tal que justifique bancar estabelecimentos onde não se fume. Quem defende a lei quer, portanto, que os outros paguem por seu conforto e saúde.

Eu adoraria um mundo sem cigarros. Outras coisas que eu eliminaria de bom grado são o mau hábito de mascar chiclete e de homens adultos andarem por aí de bermuda. A externalidade negativa é real. Mas fazer o quê? Eles não violam meus direitos. Se a fumaça dos bares e baladas invadisse nossas casas e atacasse nossas crianças, daí sim haveria motivo para alguma medida legal entrar em vigor (punindo o estabelecimento responsável, e apenas ele). Como não é esse o caso, o governo deveria se manter bem longe da discussão. Se nós, não-fumantes, não estamos dispostos a arcar com o custo de estabelecimentos exclusivos para nós, com que direito os exigimos? Cada um é dono do seu nariz apenas; é uma pena que o Serra meta o dele onde não foi chamado.