segunda-feira, dezembro 22, 2008

Filosofia e Falência Espiritual

Aula de Filosofia. Matéria: teoria crítica (“Lá vem...” - calma, algo bom sairá daí!). Discute-se o conceito de “democracia deliberativa”. Tudo muito vago e abstrato; repetição dos textos ao invés de entendimento. Mas a intervenção de um aluno, membro da chapa recém-eleita do C.A., trouxe o mundo real à aula. Acontece que a chapa vencedora teve 80 votos. Mais de mil alunos na faculdade; 80 votos.

A realidade da faculdade é essa. Grande parte das pessoas simplesmente não se interessa. Outra parte, também considerável, se interessa, mas sabe que isso de nada adianta. As chapas, as assembléias, enfim, as “estruturas de poder” dos estudantes estão tomadas por pequenos grupos. Um deles, em particular, cujos membros se dizem parte da Quarta Internacional Trotskista, faz questão de ir a todas as reuniões e não deixar ninguém mais falar. As assembléias são intermináveis; vota-se inclusive se determinado ponto deve ou não ir a votação, e os resultados são sabidos de antemão. Assim, mesmo os bons se desinteressam e se distanciam cada vez mais da política universitária e da esfera pública em geral, minimizando o desgaste que teriam em lutas infrutíferas. Cada um vai para seu canto, estudar para sua prova. A suposta democracia se resume ao ato de votar; ação pontual que, isolada de um debate mais amplo, perde todo o sentido. Assim é a faculdade, é assim é, infelizmente, o mundo fora dela também.

Poderia ser diferente. O professor Ricardo Terra propôs a idéia: imaginemos que, dos mil alunos, a metade deles, quinhentos, adotasse uma postura ativa e participativa com relação à faculdade. Quinhentas pessoas dedicadas a pensar e discutir idéias, ler coisas de seu interesse, escrever textos, organizar grupos de estudo, produzir obras de arte, propor e elaborar projetos que envolvam os outros estudantes, etc. Nesse caso, seria possível, por exemplo, criar e consolidar um jornal dos alunos, no qual fossem discutidas, com total liberdade, todas as idéias e pontos de vista (o próprio Terra sugeriu, para o jornal hipotético, uma questão provocadora: “por que nenhuma boa universidade do mundo tem eleições diretas para reitor?”). A vida universitária seria outra. Haveria razão para se interessar e participar dos grupos estudantis. As votações seriam a culminação das discussões e debates que ocorreriam o tempo todo por toda a faculdade, para aquelas questões de ordem prática que exigem uma solução única; e não o princípio e o fim de toda a política. Isso é democracia deliberativa. E é um ideal verdadeiramente apaixonante.

E por que não se concretiza? Por um lado, como já foi mencionado, há o forte obstáculo à participação criado pela organização atual das entidades e assembléias. Por outro, todo mundo precisa estudar para passar de semestre, e muitos precisam trabalhar; não têm tempo para mais nada. Isso é o que foi alegado em sala, e no qual custo a acreditar. Sim, de fato a estrutura oficial desanima qualquer um; mas novas iniciativas não têm que, necessariamente, passar por ela. Também é verdade que é preciso estudar, e muitos estudam e trabalham; mas o mesmo valia no passado, quando existia uma vida universitária mais rica. Será crível que um aluno da Filosofia, que cursa de duas a três matérias por semestre (o que significa ir à faculdade dois ou três dias da semana), não tenha tempo?

O tempo sempre foi curto; não vivemos em uma época especial nesse sentido. O que falta é vontade e a disposição de agir. Em outra matéria deste semestre estudamos o Contrato Social de Rousseau (“Agora já passou dos limites!” - sem revoltas; aqui também há uma boa lição). Ele observava, em seu tempo, essa mesma passividade que se vê agora. Homens adultos, para não arcar com a responsabilidade de suas ações, o que envolve correr riscos, passar desconfortos e ocasionalmente falhar, abrem mão da própria condição de agentes. Preferem delegar suas responsabilidades para outros, e pagar-lhes para que ajam em seu lugar. Para Rousseau, a causa disso era o desejo de bem-estar material. Hoje em dia, mesmo a busca do bem-estar material é delegada; espera-se do governo que ele forneça a cada homem todas as necessidades da vida; até mesmo a educação e o cuidado dos próprios filhos são vistos como incumbência do Estado, e não dos pais. Não é preciso dizer que essa estratégia é frustrada; mesmo o bem-estar material piora em conseqüência dela.

Tal piora, no entanto, é pequena se comparada à degeneração moral e espiritual que decorre de uma existência passiva. Todos os sonhos e aspirações nobres são deixados de lado para se garantir o pouco (e é cada vez menos) que se tem. Deixa-se de perseguir a felicidade para evitar o sofrimento. O homem deixa de ser um agente e passa a ser uma vítima; vítima da sociedade, do capitalismo, dos políticos; vítima de seus pais, de seus genes, de seu corpo; vítima de um universo mau que não se dobra para satisfazer cada capricho seu. A conseqüência é que todos passam a exigir seus direitos (“direito” hoje em dia nada mais é do que obrigar outras pessoas a prover aquilo do qual se carece), e cada vez mais fogem de sua contrapartida necessária: as responsabilidades. As conseqüências são sentidas em todos os âmbitos da vida individual e social.

Enquanto essa atitude espiritual de fundo não mudar, as instituições políticas não mudarão; ela é sintoma, e não causa, do problema (embora, como em quase tudo na ação humana, o sintoma reforce a causa). Como mudá-la? Não sei ao certo, mas acho que a universidade, e especialmente a faculdade de Filosofia, deveria ter um papel aí.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

terça-feira, dezembro 02, 2008

Moral Objetiva e Filosofia Moral

A distinção entre o certo e o errado é objetiva ou subjetiva? A moral ou tem origem subjetiva, na vontade humana (fruto de um acordo entre os homens, ou da imposição do mais forte) ou é objetiva, isto é, decorre da própria natureza humana. Vou, neste texto, responder às críticas feitas pelo Ricardo (nos comentários ao texto anterior) à idéia de que ela é objetiva.

Ele começa apontando um fato: o valor moral de uma ação não é algo diretamente perceptível pelos cinco sentidos. Nada a discordar aqui. Contudo, os cinco sentidos são apenas o canal pelo qual as informações externas chegam à nossa mente; todas as operações mentais mais importantes ocorrem depois. Exemplifico: o que recebemos da visão são apenas manchas de cor. Não é a visão em si que nos diz que essas manchas compõem uma árvore, e aquelas uma casa; não é ela que nos informa que o carro pequeno está longe e o grande está perto. Esse trabalho de interpretação é feito pelo intelecto, ou entendimento (num nível ainda instintivo, é verdade, dado que nem pensamos para fazê-la, assim como todos os animais). Se fôssemos apenas um receptáculo de informações sensoriais, nossa vida seria uma seqüência caótica de experiências sem sentido ou coerência nenhuma.

A distinção entre o certo e errado, o julgamento moral, também é feita pelo entendimento, que parte de uma base instintiva e vai além dela. Pela experiência, sabemos que algumas coisas contribuem para uma boa vida e outras são nocivas. Além disso, temos consciência de que nossas ações podem alterar a realidade: nossa vida e a vida de outras pessoas. A moral decorre daí: sabemos que algo é bom, e que nossas escolhas nos aproximam ou afastam dele. Deixar as obrigações sempre para a última hora resulta em muito estresse, em tarefas mal feitas e mancadas ocasionais. Está em nosso poder cultivar ou combater esse hábito. É, portanto, um mau hábito, e quem o cultiva age mal. Já salvar um bebê que se afoga é dar-lhe a vida, condição necessária para os outros bens; é, portanto, uma boa ação.

A interação entre os instintos humanos (que são a base sensível dos nossos desejos: alimentação, sexo, lazer, curiosidade intelectual, empatia, etc) e a experiência sobre como conciliá-los costuma dar conta da maioria dos problemas e das escolhas morais. Não é preciso ter estudado filosofia para saber que mentir, estuprar ou torturar por prazer é uma má ação. Aqui chegamos à segunda crítica apontada pelo Ricardo: muitos filósofos dizem coisas muito diferentes sobre a moralidade; não há um método racional universalmente aceito para se chegar à verdade no campo da moralidade.

Ao se fazer essa crítica, perde-se de vista que o juízo moral não depende de uma fina e precisa distinção de conceitos. Se assim fosse, apenas os filósofos seriam capazes de agir moralmente. Na realidade, os filósofos morais não têm como objetivo, via de regra, “descobrir” o que é certo e errado; suas conclusões já estão dadas. Se alguém afirma provar, de forma indubitável, que estuprar é certo e beber água é errado, não é preciso estudar sua teoria: ela é obviamente falha. Todos os grandes filósofos morais (posso incluir aqui Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Locke, Hume, Kant, Mill e muitos outros) tentavam, em seu trabalho, chegar àquilo que o senso comum mais ou menos já mostrava. Sua finalidade é explicitar a base racional que justifica os juízos morais. Além disso, visam apresentar-nos um método confiável para nos guiar em situações dilemáticas, para as quais o senso comum não basta.

Outra função da filosofia moral é corrigir o senso comum quando ele erra. Embora seja uma importante fonte de conhecimento para o direcionamento de nossas vidas, é inegável que a experiência partilhada de uma sociedade carrega erros ocasionais que, com o tempo, se tornaram normas de conduta aceitáveis ou até mesmo obrigatórias. É o caso da escravidão no Ocidente de poucos séculos atrás, do canibalismo dos povos americanos, ou do aborto no mundo atual.

Assim, a filosofia, embora importante, não é estritamente necessária para o julgamento moral. Podemos andar perfeitamente bem sem conhecer a mecânica por trás da nossa locomoção. Com esse conhecimento, é possível corrigir erros de postura ou de pisada, mas não foi com base em tratados de anatomia e física que demos nossos primeiros passos. O mesmo vale para a outra grande faculdade própria da razão humana: o conhecer. Os maiores filósofos discordam sobre como se dá e se embasa o conhecimento; mas nem por isso o ceticismo radical é a posição mais razoável. Da mesma forma, apesar de todas as discordâncias sobre como discernir o bem do mal, que tal distinção exista não só é evidente como é aceita, na prática (embora nem sempre na teoria), por todos os seres humanos.

quinta-feira, novembro 20, 2008

Problemas Libertários

Apesar de toda a ideologia perversa por trás do dia da consciência negra, ao menos é feriado, e por isso sou grato. Dias sem obrigações são ótimos para se dedicar a atividades lúdicas, e coisas mais divertidas, como... dissertar sobre uma aparente inconsistência lógica no anarco-capitalismo.

A defesa do anarco-capitalismo é feita com base na idéia de uma moral objetiva e anterior a qualquer governo. Até aí, perfeito; qualquer pessoa com um mínimo de sensatez admite que o certo e o errado existem objetivamente, isto é, decorrem da natureza humana, e não da vontade de algum indivíduo ou instituição. Uma moral objetiva significa que nem tudo vale; algumas ações são erradas e não devem ocorrer. O problema do libertarismo (usarei libertarismo e anarco-capitalismo como sinônimos) é exatamente conciliar isso com a inexistência do Estado.

A filosofia libertária baseia-se no princípio de não-agressão. Para dar conta do problema dos recursos escassos (que geram conflitos e, portanto, agressão), existe todo um sistema de regras para determinar quem é o dono de algo. A principal delas - e com razão, por se basear no senso comum humano - é a da apropriação original. Se algo não tem dono, a primeira pessoa que o utiliza, que mistura seu trabalho com ele, vira o dono. Faz todo o sentido.

Pela própria teoria libertária, é preciso que a pessoa de fato utilize o bem que ela deseja apropriar. Não basta apenas dizer que se é o dono ou, no caso da terra, cercá-la. Caso contrário, alguém poderia simplesmente comprar arame e sair cercando propriedades gigantes de floresta. Pela filosofia libertária, o cercador é, se muito, dono apenas da fina faixa por ele cercada; o vasto interior da cerca permanece sem dono. Se alguém pulasse lá de pára-quedas, poderia se apropriar da terra.

Mas se não há um Estado para fazer valer essa lei (e esse é apenas um exemplo), ela não passará de uma idéia morta e ineficaz. O que impedirá um homem ou grupo de homens qualquer de cercar uma terra enorme e declarar-se dono dela, sem deixar que ninguém entre, expulsando inclusive os pára-quedistas espertinhos? Como esse, existem muitos outros casos em que a aplicação do direito libertário depende de alguma autoridade com poder coercitivo. A própria determinação das penas justas para cada delito necessitaria de uma instância suprema que a impusesse.

A resposta sempre recai nas agências de segurança e de justiça, que funcionam como Estados (defendem, julgam e punem), mas com relação à qual os indivíduos são consumidores. Qualquer um pode deixar de ser cliente de uma empresa para sê-lo de outra. Sendo assim, as empresas refletirão a crença de seus clientes sobre o que é certo (ou então do que crêem ser o mais benéfico para si). As que não o fizerem, logo sairão do mercado. Portanto, a não ser que a população seja e viva pela filosofia libertária, a filosofia libertária não vigorará sem a existência do Estado.

Assim, para o anarco-capitalismo existir, não basta que o Estado deixe de existir. É preciso que todas as pessoas sejam anarco-capitalistas convictas e sinceras. Caso contrário, as empresas de proteção e justiça operarão segundo outros critérios, inclusive segundo o critério de que é justo, em alguns casos, iniciar uma agressão. E quem vai impedi-las, se elas forem as mais fortes?

A maioria dos sistemas políticos não requerem que seus membros adiram todos à filosofia política em vigor; basta o consentimento tácito (a ausência de revolta). A grande maioria dos homens não precisa nem pensar no assunto. Pode viver normalmente e se dedicar a outras preocupações. A ordem social está estabelecida e é estável; crimes são punidos e há uma autoridade para fazer valer a justiça, quer se goste ou não.

Num mundo onde as leis às quais cada um se submete dependem da vontade de cada pessoa (o que inclui, se ela quiser, não estar sujeita a lei nenhuma), há alguma dúvida de que grande parte irá simplesmente se filiar a empresas de justiça e proteção que defendam os seus interesses, muitas vezes contra algum outro grupo ou indivíduo? E há alguma dúvida de que, fora um ou outro libertário de carteirinha, pouquíssimos aderirão a algo semelhante ao código de leis naturais libertário?

segunda-feira, novembro 03, 2008

Um novo tipo de democracia

A grande vantagem da democracia sobre outras formas de governo é que ela permite a transição pacífica de poder quando as idéias e os valores da maioria da população mudam. No longo prazo, qualquer governante precisa do apoio ideológico (ainda que tácito) da população. Mesmo um tirano sanguinário precisa do consentimento do povo para reinar. Não é ele que fisicamente obriga seus ministros e generais a obedecer suas ordens; e esses, por sua vez, também não têm poder físico coercitivo sobre aqueles que comandam. Esse poder depende de que os generais aceitem a autoridade do tirano, que os soldados aceitem a autoridade dos generais, e assim por diante.

A ordem social está baseada, antes de tudo, em crenças, nas quais o poder coercitivo se baseia para punir detratores minoritários. Se, amanhã, os generais deixarem de obedecer ao presidente, ou os soldados deixarem de obedecer aos generais e os policiais a seus superiores, a ordem política do país é imediatamente extinta. O mesmo se dará se a maioria da população deixar de aceitar a autoridade do governo e se revoltar contra ela. Os laços de poder dependem sempre da aceitação voluntária da autoridade dos superiores por grande parte dos subordinados.

Assim, se houver uma mudança radical na mentalidade da população, de forma que ela não mais tolere o jugo dos governantes atuais, a queda destes é inevitável. Outros governantes, que representem idéias, valores ou condutas diferentes virão substituir os antigos. Se o governo for monárquico, o rei será deposto, o que raramente se dá sem violência (a não ser que ele deixe o trono de bom grado, como ocorreu no Brasil). Na democracia, essa transição ocorrerá por meio das urnas, pacificamente, e isso é uma grande vantagem.

No entanto, se a democracia assegura a paz, ela o faz ao custo de tornar cada cidadão um pequeno dono do Estado. Cada um vota com seus interesses em mente, esperando conseguir do governo aquilo que ele quer. Todos tentam viver às custas de todos, tirando uns dos outros, pelo braço armado do Estado, os bens almejados. O resultado final dessa situação é a piora geral; se todo mundo quer tirar, e ninguém quer produzir, não restará nada a ser tirado. Na esfera pública (governamental), o auto-interesse de cada um leva à piora geral.

Como fugir dessa conseqüência nefasta da democracia? Num passado não muito remoto, isso era feito por meio do voto censitário. O governo servia para proteger a propriedade; assim, votava quem tinha propriedade a ser protegida. No entanto, se naquela época isso já permitia abusos e clientelismo, esse sistema seria ainda mais distorcido hoje em dia, visto que grande parte dos empreendimentos são financiados pelo Estado e é ele que remunera o grande capital.

Muito mais relevante do que a distinção entre pobres e ricos é a distinção entre quem paga e quem recebe impostos. Um trabalhador privado que utilize poucos serviços públicos e pague seus impostos dá mais dinheiro ao Estado do que recebe em serviços assistenciais. Já um funcionário público recebe impostos (seu salário é integralmente constituído deles). O mesmo vale para um empresário cujo negócio é financiado pelo banco estatal; ou para o usuário contumaz da saúde pública; ou para quem recebe renda de títulos públicos. A matemática é simples: se há gente que, liquidamente, recebe mais do Estado do que paga a ele, então há gente que paga mais do que recebe. A proposta política também é simples: só vota quem sustenta o Estado, isto é, quem paga mais do que recebe.

É bem possível que as pessoas continuem votando de acordo com seus interesses pessoais. Mas a partir do momento que o eleitor deixa de ser explorado pelo Estado e se torna um explorador, ele deixa de ser eleitor. Um político pode se eleger com o voto agrário, prometendo vastos subsídios agrícolas. Se o plano for colocado em prática, sua base eleitoral, os agricultores, não votará nas próximas eleições. Votarão aqueles que tiveram de pagar pelo subsídio e nada receberam em troca.

O grande problema dessa idéia seria sua implementação. Como medir o quanto cada um paga e recebe do governo? Certamente a tecnologia informática atual permite contabilizar os impostos pagos e a maior parte dos serviços recebidos. Um cadastro digital nacional seria necessário. Se esse cadastro substituir a papelada que inexplicavelmente ainda se requer dos cidadãos, ele poderia ser feito sem aumentar a burocracia estatal. Quem sabe é esse modelo de democracia que pode nos levar a um governo limitado e eficiente sem, com isso, perder a estabilidade pacífica da ordem democrática e nem eliminar do eleitorado permanentemente qualquer setor da população.

terça-feira, outubro 28, 2008

Eleição e Massificação

Devo confessar que senti uma certa alegria no fundo do coração no domingo, como sempre sinto em dia de eleição. Todo mundo saindo de suas casas para votar, acreditando poder mudar os rumos do país (bem, nesse caso, da cidade); ricos e pobres, homens e mulheres, patrões e empregados, todos têm a mesma voz na urna. Há um belo ideal aí. Mas a realidade do processo é bem menos bela.

A maioria dos que sai para votar vai obrigada. Muitos não têm condição alguma de deliberar sobre a administração pública, e poucos se dão ao trabalho de conhecer algo sobre os candidatos. Não que esse trabalho valha a pena, pois a qualidade dos políticos é lamentável. Todos dizem exatamente as mesmas coisas; as mesmas promessas e as mesmas acusações. Ninguém mais acredita neles, o que é bom. Contudo, a descrença nas promessas e nos ideais deu lugar ao oportunismo puro e simples, o que é ruim.

Quem usa ônibus, vota no candidato que der mais benefícios ao ônibus. Quem usa carro, vota naquele que prometer mais ruas. E é tudo assim. A política, pela natureza dela, sempre foi um jogo de interesses antagônicos; diferentes grupos lutando para decidir quem vai se beneficiar dos recursos públicos, e quem vai pagar por eles. A única diferença é que isso está cada vez mais claro e desavergonhado. A compra de votos é condenada como uma prática vergonhosa e anti-ética. Mas qual a grande diferença quando o pagamento pelo voto ocorre, não do bolso do político, mas dos cofres públicos, com transporte de graça, bolsa-família ou o que seja? Todos os candidatos querem comprar votos. O plano de governo é a tabela de preços que ele está disposto a pagar. Quem oferecer mais, e tiver uma propaganda eficaz, leva.

A revolta contra esse sistema é crescente, mas até agora ineficaz. O único efeito dela tem sido angariar votos de protesto para candidaturas humorísticas; vários candidatos a vereador apostaram suas fichas na comédia. A maioria deles perdeu (será que pelo excesso de opções? Se Sérgio Mallandro e Lacraia não tivessem dividido o eleitorado, quem sabe um deles chegasse à legislatura municipal...), mas a tendência deve crescer no futuro.

A corrupção, a falta de seriedade e de competência dos políticos explica, em parte, o nível a que chegamos. Há também quem veja em tudo isso reflexos de uma cultura “ibero-católica-personalista”, pouco afeita à racionalidade e ao trabalho. No entanto, a coisa não muda muito em outros países. Que importa se nas eleições americanas vencer Obain ou McCama? A história dos dois partidos mostra que são, salvo raras exceções, indistinguíveis um do outro. O mesmo vale para a Inglaterra, França e toda a Europa. Foi-se o tempo em que concepções diferentes de sociedade e governo, teorias diferentes sobre o funcionamento da ordem social, competiam por meio de argumentos para persuadir o eleitor sensato.

Hoje em dia faz-se política para as massas. E, creio, isso é uma causa relevante para o fim de todo debate de idéias. É eleito quem agradar mais às massas. Quem prometer mais, e de forma mais convincente, leva os votos da maioria. A grande maioria das pessoas não tem nem a capacidade nem o interesse de seguir um argumento lógico complexo, deixando-se levar pelas emoções momentâneas. É de se estranhar que a política, nessas condições, transforme-se em mera repetição de slogans populistas e acusações midiáticas?

Não sei quem teve a idéia de que a maioria sempre escolhe, ou tende a escolher, bem. A verdade é obviamente o contrário: a maioria escolhe mal. Por acaso deixamos a cargo das massas a resolução de uma polêmica científica? E por que deveria ser diferente com a gestão do governo e dos recursos públicos?

Os políticos querem o poder. Para isso, utilizarão os meios necessários. Hoje em dia, sob o sistema “um homem, um voto”, o meio necessário é prometer algo de bom ao maior número de pessoas. Como, de qualquer coisa boa, são poucos os que têm muito dela e muitos os que têm pouco, sempre valerá a pena prometer alguma nova redistribuição. Assim, fica impossível qualquer proposta que fuja ao esquema básico do welfare state contemporâneo. Todos os políticos, tanto aqueles que a mídia chama de neo-liberais, como aqueles chamados de socialistas radicais, têm propostas muito parecidas. Propostas que sempre tendem, gradualmente, ao socialismo; pois cada intervenção estatal redistributiva gera novos problemas para os quais a solução consistirá em novas intervenções.

Para reverter esse quadro, há apenas duas saídas: promover uma virada nos valores da população, utilizando os mesmos meios propagandísticos do populismo (com a desvantagem de que, ao contrário deste, a defesa do livre mercado não raro implica ir contra o ganho pessoal imediato), ou a mudança do sistema político para algo mais sensato. Não sei qual é mais improvável.

sexta-feira, outubro 17, 2008

Algumas considerações sobre a crise atual

Este blog não morreu! Estava apenas hibernando. Acontece que ruídos alarmantes penetraram sua caverna, e é hora de voltar, espero, à ativa.

Nada mais propício do que voltar ao bom e velho tema da economia, que agora está na boca e, em menor grau, na cabeça de todo mundo. O trabalho do economista é curiosamente anti-cíclico; quando as coisas vão mal, aí que suas opiniões se valorizam! Ainda há muito espaço nessa crise para minha opinião se valorizar, mas dado que nada receberei por ela de qualquer jeito, este parece ser um bom momento.

O ex-presidente do Banco Central americano (FED), Alan Greenspan, afirmara “central banking is largely a theatrical business”, querendo dizer que, em larga medida, o papel dele é produzir as emoções certas nos participantes do mercado. Mais importante do que as medidas e previsões exatas, que são em todo caso inalcançáveis, é manter o otimismo dos investidores.

Nem isso os Bancos Centrais têm conseguido. Ninguém mais acredita em seu poder de reverter a crise. Poder que eles nunca tiveram, embora afirmassem e afirmem o contrário. A crise atual tem causas objetivas; não é mero fruto de mudanças de expectativas. As contas não serão pagas com otimismo, e não é a confiança no futuro que criará riqueza onde ela não existe. O pessimismo do mercado não é a causa; é a conseqüência. Outra coisa que não é a causa é a ganância dos investidores e especuladores. Não que eles não sejam gananciosos (a crise, inclusive, é uma boa oportunidade para muitos repensarem suas prioridades). A ganância existe, e é grande, mas não é a culpada. A raiz deste mal não é o amor ao dinheiro.

Qual é, então? Os próprios bancos centrais. Não podem remediar o que poderiam ter prevenido. São eles, hoje em dia, por trás daquilo que se chama, na ciência econômica, de ciclo de negócios: período de prosperidade seguido de queda abrupta dos valores de muitos ativos, e possivelmente de recessão (período de estagnação econômica); o boom seguido do crash. Inicialmente, parece que nada pode dar errado: todos os ativos se valorizam, a bolsa sobe a galope, todo mundo ganha. Subitamente, a bolha explode, e a mula empaca. O que aconteceu? Para onde foi a riqueza? Mas o momento da crise não destrói riqueza nenhuma. Antes, revela que a riqueza existente é muito menor do que se acreditava, e que muitos investimentos que pareciam valer a pena, não valem. O que criou essa ilusão coletiva foi a política inflacionista dos bancos centrais, especialmente do FED.

Hoje em dia, “inflação” quer dizer aumento geral dos preços; originalmente, significava a criação de mais dinheiro sem lastro (por exemplo, impressão maciça de novas cédulas). O aumento dos preços é a conseqüência natural disso, embora possa ter outras causas. A mudança no uso do termo apenas confundiu o entendimento do processo, ao se fixar na conseqüência e se esquecer da causa. Neste texto, utilizo “inflação” no sentido original do termo.

Há dois meios de se inflacionar a moeda: o primeiro é a emissão simples. Essa, ao mexer com o valor do dinheiro (mais unidades de dinheiro, menor o valor de cada unidade), danifica o funcionamento de todo o sistema de preços da economia, mas não gera o ciclo de negócios. A inflação que o gera é aquela criada por meio do crédito, ou seja, quando um empréstimo é feito a investimentos para o qual não existe poupança. Os bancos centrais incentivam essa prática ao manter os juros artificialmente baixos e dar aos bancos comerciais a garantia de que, se estiverem insolventes, receberão ajuda.

Com os juros artificialmente baixos devido à abundância do crédito, muitos maus investimentos são feitos. Ativos altamente arriscados parecem um ótimo negócio; sobra capital. Mas é tudo ilusório; ilusão que dura apenas enquanto dura a política inflacionista do banco central. Quando cessa a inflação - e ela tem que cessar eventualmente, porque senão todo o sistema econômico colapsaria - a real situação da poupança nacional fica aparente; o crédito tem que contrair. Os maus investimentos que foram feitos têm que ser liquidados. Não há outra saída.

Tudo o que o governo e banco central podem fazer é: inflacionar ainda mais, o que aumenta e empurra a crise para um futuro incerto; ou impedir, por meio de novos gastos e regulamentações, que os maus investimentos sejam liquidados, o que impede que os recursos da economia rendam frutos para a população, às custas dos contribuintes e de todo mundo que sair perdendo com o aumento de preços que resultará da inflação.

O melhor a fazer é fazer nada. Deixar quebrar quem precisar quebrar, e facilitar o redirecionamento do capital e do trabalho para novas finalidades. É hora também de cortar impostos e gastos do governo, para permitir que as pessoas tenham mais recursos à sua disposição nesses tempos de reajuste.

sexta-feira, agosto 15, 2008

Lei seca: eficácia dúbia, incoveniência certa

É provável que a lei seca tenha algum impacto nas decisões das pessoas de guiar depois de ter bebido. Aumentou a punição (que antes era ou inexistente - para pequenas doses - ou menos severa) e, pelo que se tem dito, aumentou a fiscalização. É certo que, se um conhecido for preso, isso será para mim um poderoso indicador de que a probabilidade de ser pego não é desprezível, o que justificará medidas de segurança da minha parte (usar mais táxi ou carona, por exemplo).
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Entretanto, parece que o alarde quanto ao sucesso da nova lei foi, no mínimo, exagerado. Também, o que esperávamos? É natural que, com o terrorismo inicial com que se a anunciava, mais gente receasse beber e dirigir. Contudo, após um período de adaptação (aparentemente curto), o medo deixa de prevalecer.

Mas suponhamos que a percepção das pessoas quanto ao risco de serem punidas tenha mudado significativamente, e que isso de fato resulte num número menor de motoristas alcoolizados, e portanto numa redução do número de acidentes; se tudo isso ocorrer, terá a lei valido a pena?

Uma lei pode ser ruim por ser incapaz de atingir seu objetivo. Uma lei de salário mínimo a 1 milhão de Reais por mês (tudo mais constante), embora proponha um ideal agradável à imaginação, não atingiria seu objetivo de melhorar as condições de vida dos trabalhadores, mas apenas aumentaria o desemprego e a informalidade. Por isso, seria uma lei ruim. Outro motivo de uma lei ser ruim é ter um objetivo em si mesmo indesejável, como seria o caso de uma lei de segregação racial. Mesmo que fosse perfeitamente eficaz em atingir esse objetivo, seria, ainda assim, má.

Entretanto, é possível que uma lei tenha um objetivo bom, seja eficaz em atingi-lo e, ainda assim, não seja uma boa lei. Seria ótimo se nossas ruas fossem mais limpas. Se uma nova lei ordenasse a execução sumária e instantânea de qualquer pessoa que jogasse lixo no chão, e alocasse muitos policiais para fiscalizar seu cumprimento, provavelmente atingiria o objetivo almejado. Essa lei seria boa? É claro que não. Apesar de seu objetivo ser bom e eficazmente alcançado, os meios para alcançá-lo são por demais custosos à sociedade. Perde-se a liberdade e a segurança a um grau tão exacerbado, e a pena é tão desproporcional ao delito, que os benefícios visados são superados por males.

Mesmo supondo que a lei seca tenha alguma eficácia em diminuir mortes no trânsito (algo que os dados estão longe de mostrar...), os meios empregados são por demais custosos à sociedade. Beber alguns chopps não tem grandes impactos na direção. E beber é um hábito tão arraigado no costume popular, que abrir mão dele é altamente custoso. Um jantar romântico no qual o casal toma uma taça de vinho tornou-se impraticável.

É sempre possível diminuir um mal tirando-se a liberdade para praticar um bem. Um toque de recolher às 22:00 diminuiria muito os índices de violência noturna; mas a perda de liberdade que ele acarreta seria muito maior do que o bem conseguido. Da mesma forma, é bem possível que permitir níveis razoáveis de álcool no sangue dos motoristas aumente o número de acidentes (um reflexo levemente pior pode causar uma trombada); entretanto, esse risco levemente maior é preferível à perda da liberdade. O homem, imperfeito, sempre pode usá-la mal. Isso não muda o fato de que, sem ela, seria impossível alcançar qualquer bem.

terça-feira, agosto 05, 2008

Negando a Hipótese Deus

A ciência natural está sempre sujeita a revisões. A teoria que ontem parecia sólida pode, hoje, revelar-se imprecisa, até errada. É exatamente esse caráter incerto das teses científicas, sempre abertas a novos testes, que garante a eficácia da ciência em elucidar cada vez melhor o funcionamento do mundo.

Toda teoria científica tem, ao menos em tese, algum vínculo lógico com a realidade observável, ou seja, faz alguma previsão testável acerca do universo. Mas há também vínculos entre as diversas teorias. Se amanhã descobrirem que o Tiranossauro Rex nunca existiu, que os paleontólogos misturaram ossos de diferentes dinossauros, isso implicará mudanças na forma como entendíamos outros dados da natureza. A tese de que uma certa espécie de lagarto se alimentava dos restos de comida entres os dentes do T-Rex também terá de ser revista. Ainda assim, com ou sem o T-Rex, nossa concepção do universo permanece em larga medida a mesma; alguns ajustes serão necessários, mas a idéia geral permanecerá.

Agora suponha novos experimentos que revelem erros profundos em nosso entendimento atual da lei da gravidade. Todos os testes, e todas as aplicações da teoria na tecnologia, funcionaram por motivos casuais e não-relacionados. É algo, sem dúvida, muito improvável (embora logicamente possível). Se acontecesse, a mudança na nossa concepção de como o universo funciona seria enorme. Muitas outras teorias teriam de ser revistas; toda a física sofreria uma revolução. Sem a teoria da gravidade, todas as nossas idéias e pensamentos que pressupunham a validade da teoria antiga estariam minados.

Isso é verdade nas ciências naturais; e é ainda mais radical na metafísica, a ciência (embora não ciência empírica) que investiga, não como se dão os processos da realidade observável, mas sim a estrutura básica e fundamental dessa realidade. Quando falamos em causa e efeito, em substâncias, essências, acidentes (que são as características não-essenciais dos seres), possibilidade, necessidade, e mesmo na idéia básica de “ser”, estamos utilizando conceitos metafísicos. Aceitamos, ordinariamente, que a realidade à nossa volta seja composta de diversos seres distintos, com propriedades determináveis, que atuam uns sobre os outros em relações causais; aceitamos que cada ser humano é uma pessoa, distinta de seus pensamentos e ações (embora esses também acabem por mudar quem ela é) e com uma existência contínua no tempo. Quando encontro meu amigo depois de uma semana, ele acumulou diversas pequenas diferenças, mas ainda é a mesma pessoa.

Aceite-se essa idéia básica da realidade, e a existência de Deus segue-se necessariamente. A própria relação de causalidade já nos leva, em poucos passos, à necessidade da causa primeira. Os diversos seres contingentes, ao ser necessário. Não dá para aceitar os primeiros, sem aceitar o segundo. Isso do ponto de vista puramente lógico (da ordem do pensamento). O mesmo ocorre do ponto de vista ontológico (da ordem das coisas): se não existe Deus, se não existe um princípio absoluto criador e ordenador de toda a realidade, então não tem como a realidade ser ordenada e inteligível. E a premissa de que a realidade é inteligível está na base da própria ciência natural.

O universo sem Deus (ignorando o problema de sua existência, que deve ser encarado como pseudo-problema criado pela mente humana) é um fluxo constante de eventos. Não há substâncias, entidades, que agem umas sobre as outras; há apenas uma série de eventos e fenômenos sem nenhuma ordem entre si. É a mente que cria ordem nos dados caóticos da experiência. Nossa linguagem e pensamento, que ainda seguem a velha metafísica, estão em contradição com a realidade. A distinção entre sujeito e objeto, entre um ser e suas qualidades, são ilusórias: imaginamos a realidade composta de entidades fixas e ordenadas, quando na verdade tudo é mudança não-inteligível.

O ser humano é parte dessa mudança constante. E a concepção do homem como uma pessoa, sujeito racional com existência contínua ao longo do tempo, é tão ilusória quanto os demais conceitos metafísicos. Ele também é fluxo, de desejos e impulsos. Não há pessoa por trás. Pedro, ontem, era o aglomerado de impulsos X; hoje, o que chamamos de Pedro é o aglomerado Y, um outro estado mental. Além disso, é óbvio que o homem não é, de forma alguma, algo ontologicamente diferente do resto da realidade; é, assim, como tudo mais, um produto de forças alheias a ele. Não há escolha; não há nem propriamente ação. Os movimentos humanos seguem a mesma necessidade de todo o resto; motivos, intenções e finalidades são ilusões criadas conforme o fluxo da realidade segue seu curso. A vida humana não constitui uma narrativa; não há um “eu” contínuo sob os fenômenos, e muito menos um sujeito que altere a realidade.

Volta-se, assim, à concepção de Heráclito, filósofo pré-socrático que dizia ser impossível fazer qualquer afirmação. A realidade é como um rio que corre: sempre o mesmo rio, mas nunca a mesma água. No momento em que afirmamos algo, a realidade já mudou, e o sujeito, nós, já mudamos. Portanto toda afirmação é falsa.

Muitos ateus tratam a existência de Deus como se fosse a existência do T-rex, com poucas ou nenhuma conseqüência para o resto do universo. O grande homem invisível e poderoso que fica lá em cima pode existir ou não; tudo continua na mesma. É uma hipótese a ser testada.

Esse ser do qual falam (“super-poderoso, que tudo sabe, invisível”) não é Deus, mas apenas uma criatura imaginária. Deus é infinitamente superior a essa descrição; é o próprio princípio criador e ordenador de tudo o que existe. Não há evidência possível para sua existência, pois a existência de qualquer coisa já o prova. Se Ele não existe, então a realidade como a pensamos carece da base metafísica que precisa para se sustentar, e é muito diferente daquilo que nossa linguagem e pensamento comum representam.

quarta-feira, julho 02, 2008

Ética e Neurociência

Vejam esta notícia.

100 quilos de comida. Uma comunidade esfomeada. Se a comida for dividida entre todos, 20 quilos serão desperdiçados. Se dividida entre metade da comunidade, o desperdício é de 5 quilos. Quem opta por dividir entre toda a comunidade costuma ter acionada a parte do cérebro ligada às emoções. Quem opta pelo menor desperdício, aciona a parte ligada a recompensas. Conclusão? Nosso senso de justiça está ligado aos sentimentos, e não à razão.

Mas quem disse que dividir igualmente é o justo? De onde se tirou que a justiça demanda tratar todos com estrita igualdade sempre? Se assim for, então todos nós somos injustos ao dar uma esmola, pois temos uma certa quantia de dinheiro que, ao invés de dividirmos entre todos os pedintes da cidade, vai para apenas um, que por acaso cruzou nosso caminho. Se dermos a um e não a outro, cometemos injustiça? Claro que não.

Com presentes, doações e esmolas, não há justiça ou injustiça: são frutos livres da caridade humana. Ninguém tem o direito de receber um presente; ninguém pode exigir uma doação (se pudesse, não seria doação). Quando ocorre uma injustiça, significa que alguém não recebeu o que é seu de direito, e portanto pode exigi-lo, mesmo à força (e é para isso que existe o Estado; para que essa “força” não seja a de cada indivíduo, mas sim de uma autoridade imparcial e justa). Ninguém tem, por si só, “direito à comida”. Se uma pessoa quer que outras a alimentem, ela tem que dar algo em troca; a não ser que, como no caso estudado, alguém se disponha a fazer caridade.

Grande parte das pessoas hoje em dia crê que o justo seja a igualdade. É claro que seus sentimentos relacionados à justiça refletem isso. E foi o que os neurologistas captaram. Se cressem que o justo, que o imperativo moral, é dividir desigualmente, teriam acionado a região dos sentimentos com a resposta contrária. Mas isso não tornaria essa ou aquela resposta a resposta racional. O que revela qual decisão é a mais racional é o estudo da própria questão em seus termos. A análise ética independe de se saber se foi o neurônio X ou Y que fez a sinapse.

A confusão aqui reside numa falsa dicotomia da ética moderna: a separação do moral e do racional. O campo da razão é aquele no qual escolhemos os meios para se chegar a um fim, ou analisamos a coerência interna de algum sistema. Já a moral trata da escolha dos fins, e é fruto de mandamentos arbitrários ou de sentimentos e paixões que nos guiam. Os neurologistas seguem essa separação: seguir o senso de justiça é seguir os sentimentos; o pensamento mais racional é “eficiente”, o que pouco tem a ver com o bem.

E têm uma ideologia por trás: tudo o que se considerava como “moral” ou “ético” antigamente, todas as noções da tradição e mesmo do senso comum, têm que ser mostradas como irracionais. As instituições humanas não são fundadas na razão, e sim nas paixões e nos instintos. Moral, liberdade, responsabilidade pessoal, é tudo ilusão. Isso é pressuposto em toda a pesquisa neurológica atual (embora não seja, de forma alguma, uma afirmação científica), e todos os resultados experimentais são interpretados de forma a confirmá-la. Que conseqüências isso terá para a vida humana e para a organização da sociedade, o tempo dirá.

quarta-feira, junho 25, 2008

Revista Dicta & Contradicta

Boas notícias... para mim!

A revista Dicta & Contradicta, da qual faço parte (como co-editor e autor de um artigo de filosofia), está em segundo lugar na lista dos livros mais vendidos da Livraria Cultura, categoria não-ficção.

Digo com segurança que o resultado final dela é muito bom; e não falo por minha causa (não tenha dúvidas: meu artigo não é dos mais importantes, e nem dos melhores, da revista). Se você ainda não tem a sua, ou se ainda nem ouviu falar dela, ainda é tempo de mudar!

Em breve virá um update real para este blog. Um texto sobre as implicações das descobertas da neurociência para nosso pensamento sobre ética; um assunto da moda! Até lá, tenho feito pequenas contribuições ao site da revista, http://www.dicta.com.br/ , que procuramos manter diariamente atualizado com novas sugestões e pequenos artigos.

sexta-feira, junho 13, 2008

Ensino Superior ou Ostras em Coma

“Ostra em coma” foi como um amigo descreveu um certo tipo de pessoa. É maldoso; até certo ponto injusto. Contudo, uma ótima descrição. Referia-se àqueles cujos interesses reduzem-se exclusivamente ao eixo “faculdade-balada”. Provas, estágio, festas, cervejadas, viagens esportivas e intercâmbio. E só. Todas as energias e toda a atenção voltadas ao fluxo mais superficial e efêmero da existência: de um lado, o prazer sensível; de outro, o livro-texto – ambos dotados de algum bem, entenda-se! Mas de um bem pequeno, e que portanto não merece o lugar de destaque na formação intelectual e no lazer. Quatro anos dedicados à sucessão incoerente de “maratonas” de estudo pouco interessado (porque pouco interessante) e festivais de hedonismo vazio (falei das baladas; videogames e mangás também estão na lista). Qual o resultado disso? Uma existência fragmentária, impensada e pouco significante.

Claro, isso é só uma tendência geral. Ninguém é completamente ostra em coma. Há sempre graus de lucidez; momentos de ostra alerta. Mas a tendência é na direção do coma. Parte considerável dessa culpa é das próprias faculdades e universidades, que abandonaram qualquer idéia de formação humana mais completa. Afinal, não existe um bem objetivo para o homem, não existe um sentido na vida. Existe apenas o mercado de trabalho; vamos, portanto, formar técnicos, especialistas na última novidade do setor, e colocá-los para trabalhar o quanto antes. Vamos ensinar esses economistas a maximizar o lucro com funções de produção em espiral. Com cursos inteiros voltados a esse fim, fica difícil expandir os horizontes da vida. Contudo, se a estrutura dos cursos não coopera, é apenas a disposição dos alunos que concretiza a ostrificação.

Se existe algum momento na vida em que temos oportunidade de nos dedicar às grandes questões da existência e formar os laços pessoais que durarão até a nossa morte, é exatamente nos anos do ensino superior. Se alguém quiser estudar em profundidade alguma coisa nessa vida, seja ela qual for, essa é a hora. Talvez, de fato, seu caminho não seja dedicar-se “full time” à técnica bélica dos olmecas; mas, se um lampejo de interesse existir, porque não persegui-lo a fundo enquanto ainda é possível? Podemos ir mais longe, e tratar das grandes perguntas, de Deus, do que cada um espera da vida, dos valores que hão de reger nossa conduta. Todo mundo responde a essas perguntas na prática, com suas ações; mas formulá-las na mente e conversar sobre elas ajuda a encontrar respostas melhores.

É exatamente nesse exercício em comum da razão que se formam as amizades profundas. Meros colegas, companheiros de aulas e baladas, têm uma amizade baseada, antes de tudo, no prazer; quando o prazer cessa, ou quando se distanciam um pouco (digamos, as aulas de um mudam de horário), o vínculo logo desaparece. Já a amizade baseada na interação racional e na preocupação com o bem objetivo um do outro é mais duradoura e gratificante.

Por mais que os cursos sejam bitolantes, os livros estão por aí. Os filmes, as peças e os concertos também. Há pessoas para se conhecer mais profundamente, palestras para se assistir, enfim, oportunidades não faltam. Também não falta tempo! Quem diz que não tem tempo, revela apenas que prefere tudo aquilo que faz ao longo da semana (as longas horas de TV e de jornal, o deitar na cama e olhar o teto, etc) à opção que rejeita com esse pretexto. Falo com conhecimento de causa: fiz graduação dupla, uma delas na faculdade de economia mais puxada do país, e tinha tanto tempo livre que não sabia o que fazer com ele (posso dizer que conheço bem o teto do meu quarto). Quem quer, encontra tempo; quem não quer, encontra desculpas.

Das duas causas da crise do ensino superior - a estrutura das instituições e a disposição dos estudantes - falei apenas do segundo, certamente o menos interessante. Que conclusão pode-se tirar a não ser “Vamos, mexam-se!”? Não há mais o que dizer; cada um descobrirá, nas suas circunstâncias, o que é melhor fazer. Talvez eu tenha escolhido este tema pela clara percepção de que meu tempo de graduação poderia ter sido mais bem aproveitado (embora algum ainda me reste, e eu me esforce para mudar as coisas), e por ver tantas outras pessoas usando-o tão mal ou ainda pior.

O volume das ostras em coma parece crescer; uma solução para isso passará, certamente, por profundas reformas institucionais a longo prazo; mas antes que elas ocorram, e mesmo para que elas ocorram, é necessária uma mudança individual de atitude com relação ao conhecimento e à vida universitária por parte dos estudantes. Como operar isso permanece, para mim, um mistério.

sábado, junho 07, 2008

Evento em São Paulo





Este convite vai para todos aqueles que estarão em São Paulo no dia 10/06.

Como podem ver acima, haverá o coquetel de lançamento da revista Dicta&Contradicta (da qual faço parte como escritor de um artigo de filosofia e membro do conselho editorial), do Instituto de Formação e Educação ( http://www.ife.org.br/ ).

O que posso dizer sobre ela? Claro que sou suspeito, mas acho que o resultado final ficou muito bom. Temos, dentre os artigos principais, uma transcrição editada das últimas aulas do poeta Bruno Tolentino, e um ensaio literário do prof. Luiz Felipe Pondé.

Na seção de filosofia, além do meu artigo sobre o livre arbítrio, há um artigo do nosso editor, Henrique Elfes, sobre as severas limitações das ciências humanas hoje em dia, e um do prof, Luiz Antônio Lindo, da faculdade de Letras da USP, sobre a natureza da linguagem (palavras se referem a coisas na realidade, ou apenas umas às outras?).

Há uma seção de análise de poesia, feita, nesse número, pelo Pedro Sette Câmara, já notório por seu trabalho em ajudar muita gente a apreciar melhor essa arte.

Isso dá apenas uma pequena amostra do conteúdo da revista. Ao longo de suas páginas, há espaço para poemas, contos, resenhas de filmes e livros, ensaios traduzidos e até uma coluna humorística.

Enfim, todos os leitores deste blog estão convidados, e se conhecerem alguém que possa se interessar, que os tragam também!

segunda-feira, maio 26, 2008

Retomando Aristóteles...

Ética e felicidade; haveria dois conceitos mais distantes? Uma coisa é aquilo que devemos fazer: as regras e proibições às quais estamos submetidos. Outra, bem diferente, é aquilo que nos dá prazer e alegria, que nos torna felizes. Se há alguma relação entre as duas, é a inversa: a felicidade está exatamente em fazer aquilo que não deveríamos! Alguns objetariam: “Não é bem assim! Claro que a ética tem alguma importância para a felicidade. Se saíssemos matando todo mundo, não daria para ser feliz. Uma vez cumprida a ética, aí sim todo mundo pode procurar sua felicidade”.

Como estamos distantes da concepção aristotélica de ética! E como ela tem nos feito falta! Ética se tornou algum tipo de abstração, regras a serem seguidas, quando na verdade ela era nada mais do que o próprio estudo de como o homem deve se comportar para ser verdadeiramente feliz. E aqui deparamo-nos com a primeira “novidade”: existe uma verdadeira felicidade humana, universal e objetiva; felicidade não é qualquer coisa que a pessoa quiser.

“Ah, mas o que eu gosto é de passar a vida comendo pizza na cama! Você não pode me julgar!” – ora, somos homens! Há algo que nos distingue dos animais: a razão. Essa vida seria apropriada a um animal não-racional. Nosso amigo comedor de pizza talvez seja um bom porco (na verdade, nem isso), mas como homem ele é muito ruim, pois em sua vida não há espaço nenhum para aquilo que faz dele humano. Em geral é a própria pessoa que acaba descobrindo a roubada na qual esteve metida; pensou que seria feliz, mas encontrou apenas o tédio e o desgosto; precisa de cada vez mais pizza para obter um deleite cada vez menor. Mas mesmo que não descubra, nós, que olhamos de fora, vemos claramente que ele se contenta com bens muito menores do que sua natureza racional é capaz.

Existem coisas que tornam o homem feliz, e coisas que o afastam da felicidade à qual ele pode almejar. Isso não quer dizer que todas as pessoas tenham que ter a mesma vida. Não digo que “a verdadeira felicidade só é encontrada pelos bacharéis em economia e filosofia que procuram entrar para a vida acadêmica” - nada disso! Temos todos a mesma natureza humana, mas há muitas diferenças individuais que garantem uma grande variedade de vidas felizes. Mesmo assim, há coisas que valem para todos: é melhor amigos do que solidão; conhecimento do que ignorância; é melhor ser corajoso do que covarde; expedito do que preguiçoso; generoso do que invejoso.

O problema é que o ser humano não é uma alma que controla um corpo da mesma forma que um motorista guia um carro. Se o motorista quer fazer a curva à direita, basta virar o volante que o carro vai. Conosco é bem diferente. Sei que levantar no horário é bom para mim; quero levantar no horário; e, ainda assim, me delongo meia-hora a mais no aconchego da cama.

Mesmo reconhecendo o que seria o bom para sua vida, o homem tem dificuldade em persegui-lo. É preciso uma longa educação das próprias disposições internas (dos sentimentos, das paixões, das maneiras de pensar) para que ele viva de acordo com o que sabe ser o bem. A disposição de se comportar de forma boa é o que chamamos de virtude. Já a disposição má, chamamos de vício.

É muito difícil cultivar uma virtude; apenas com muitos pequenos atos de coragem repetidos ao longo de muito tempo é que nos tornamos corajosos. Já o vício cresce facilmente; basta não fazer nada que, espontaneamente, desenvolver-se-ão todos aqueles detestáveis traços de caráter que tanto odiamos nos outros, mas que relutamos em combater em nós mesmos. A coragem é um estreito meio-termo entre a covardia e a temeridade; a liberalidade (a virtude de se gastar bem o dinheiro), entre a mesquinhez e a prodigalidade. A virtude é a tendência a agir na medida correta, sem cair nem na deficiência e nem no excesso, que constituem os vícios.

Mas o que é a medida correta? Não quero ser nem glutão e nem passar fome; como saber se, na situação atual, a medida correta de comida é uma ou duas conchas de arroz? Assim como todas as questões importantes da vida, não é possível resolver o problema ético com regras ou fórmulas aplicáveis a todos os casos. Precisamos da virtude da prudência, que nos leva a avaliar as circunstâncias presentes e articulá-las com os princípios morais que nos guiam, de forma a descobrir como agir em cada caso particular. E como adquirir a prudência? Apenas com muita experiência e observação dos exemplos daqueles que vivem bem.

Esse jeito de encarar a ética muda tudo. Não estamos mais falando de leis distantes de nós, mas sim do tipo de atitude que teremos com relação a nossa própria vida, de forma a atingir nossa finalidade de animais racionais: a felicidade. Por um lado, nos livramos do peso opressivo de tantas regras que não nos ajudam a melhorar como seres humanos. Por outro, é uma concepção mais exigente: não basta seguir as regras. Você não mata, não rouba e pára no sinal vermelho; muito bem! Mas, até aí, a ética mal começou. Tudo o que fazemos impacta no nosso caráter, e portanto todas as nossas ações são passíveis de juízo ético. Mesmo sozinhos em casa, ou durante nosso tempo livre, podemos agir bem ou mal. Cada ação nos aproxima ou nos afasta da felicidade que desejamos – a ética começa quando percebemos isso e resolvemos fazer algo a respeito.

sexta-feira, maio 16, 2008

Nossa Amiga Desigualdade Social

Os 10% mais ricos detêm 75% da riqueza nacional. Essa é a realidade da nossa “distribuição da riqueza” (em breve explico as aspas). Ou seja, há poucos ricos e muitos pobres. Ao mesmo tempo, os pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos. Ninguém deve gostar desse quadro social, pintado há séculos e nunca modificado. No entanto, parece-me que a discussão sobre desigualdade social (e tributação, que caminha junto), partindo de alguns erros conceituais, e seguindo por caminhos totalmente equivocados, chega a propostas desastrosas. Quem perde com isso é a sociedade toda; principalmente quem está longe daqueles poderosos 10%.

Para começar, um choque: a desigualdade social, em si, não é um problema. No mercado, ela apenas reflete as diferentes contribuições dos diversos participantes em satisfazer os desejos dos demais. Claro, no caso brasileiro, parte dela se explica por intervenções do governo; e aí sim é maléfica, pois alguns ganham mais do que produzem, e outros produzem mais do que ganham. Mas não nos iludamos: a desigualdade não se deve principalmente à ação do governo. O mercado realmente promove a desigualdade, na medida em que as contribuições são desiguais.

Pensa-se em produção e distribuição como realidades diferentes. Primeiro os bens são produzidos, e só depois repartidos entre a população. É nessa repartição que moraria a injustiça, pois muito é alocado a poucos. Nada mais distante da realidade. A distinção entre produção e distribuição é puramente conceitual. Na realidade do processo de mercado, produzir e ter são apenas dois jeitos de ver uma mesma coisa. Quem produz algo de maior valor, tem algo de maior valor. Não existe nenhuma “distribuição”. Por isso as aspas.

É essencial para nossa vida que seja assim. É por meio da diferença de renda que sabemos quais serviços são mais demandados pela sociedade. Se faltam pães, o salário dos padeiros sobe. Isso gera um incentivo para atrair mais padeiros. É por isso que temos pão quentinho de manhã cedo. Talvez o padeiro preferisse grafitar as paredes da cidade; mas se ele quiser ter quatro paredes para morar, é melhor oferecer algo de valor aos outros. Portanto, ao forno!

Não fosse pela desigualdade de renda, não haveria incentivo para se dedicar a atividades que satisfaçam melhor as demandas da sociedade. “Faltam eletricistas; só que eu gosto mesmo é de tocar violão em bar. Minha renda seria a mesma nos dois casos; mudar por quê?”. Mas o problema vai mais fundo: sem desigualdade de renda, nem sequer saberíamos quais atividades estão em falta e quais em excesso. Só sabemos isso porque podemos comparar as diferentes remunerações. Talvez as pessoas queiram mais e melhores instalações elétricas, ou talvez queiram ouvir mais músicas batidas do Djavan no bar da moda; como saber, se a conta de um é fixada no mesmo valor do couvert artístico do outro? A igualdade de renda levaria rapidamente ao caos produtivo.

Portanto, a desigualdade de renda (e de riqueza) é boa. É nossa aliada, nossa amiga, no combate à verdadeira vilã: a pobreza. Ainda assim, note-se: a pobreza que hoje nos choca seria riqueza 200 anos atrás. Daqui a 1000 anos, quem sabe, o padrão de vida do Abílio Diniz qualificará para o bolsa-família. Esse progresso é fruto única e exclusivamente da organização e da cooperação humanas por meio do processo de mercado. Tentar trapaceá-lo, procurar atalhos redistributivos para a riqueza geral, põe em risco o processo todo.

O que nos traz ao segundo ponto: o sistema tributário. Parte-se da premissa inquestionável que uma das funções do sistema tributário é promover a igualdade. Como se tirar mais dos ricos ajudasse os pobres; antes, os prejudica. Se os fazendeiros pagam mais imposto, os alimentos encarecem. Os pobres terão ainda mais dificuldade para comprar comida; e aumentamos os necessitados do bolsa-família, o que requererá mais impostos... Cobrar alíquotas maiores de quem tem renda mais alta é, efetivamente, punir a produtividade. É minar as próprias bases de qualquer desenvolvimento econômico possível no país.

A única função do sistema tributário deve ser arrecadar dinheiro para os gastos públicos da forma menos custosa à população. O bem-estar de um depende do bem-estar dos demais. Se punirmos os produtores, ou os poupadores, com impostos mais altos, é óbvio que teremos menos produtos e menos poupança.

Focar-se na desigualdade como um problema a ser corrigido pelo Estado é perder de vista o que realmente importa: a melhora na qualidade de vida das pessoas. Só com uma mudança radical de foco conseguiremos, quem sabe, formular medidas que ajudem nossa população a sair da pobreza. E quando isso acontecer, mesmo que 10% continuem a concentrar 75% da riqueza, estaremos todos muito melhor.

domingo, maio 04, 2008

Deus ou Partícula-Deus?

Enquanto escrevo este texto (e enquanto você lê), desenvolve-se na Suíça um projeto revolucionário: a construção do Grande Colisor de Hádrons, um gigantesco acelerador de partículas. Seu objetivo é encontrar a elusiva partícula Bóson de Higgs. Até agora, ela tem sido suposta pela teoria física, sem nunca ter sido observada. Se conseguirem comprovar empiricamente sua existência, então a física conseguirá explicar muitos fenômenos, e fechar muitas de suas lacunas. Alternativamente, se as coisas derem errado, produzir-se-á um pequeno buraco negro que engolirá o planeta inteiro (eu escreverei um texto muito revoltado a respeito!!).

Há muito o que se dizer sobre o projeto. Do ponto de vista econômico, poderia questionar o gasto de bilhões de euros para realizá-lo. Não que ele não seja interessante, mas será que vale o que custa? No entanto, deixarei de lado esse ponto. Meu interesse aqui é filosófico.

O poder explicativo do bóson de Higgs é tão grande que já foi até chamado de “partícula-Deus”. Apesar do sentido humorístico do nome, ele representa um tipo de pensamento nada incomum: conforme a física se torne capaz de explicar os fenômenos do universo, e a explicar como surgiu o universo, então ela desbancará Deus. Se tudo pode ser explicado em termos puramente naturais, para quê Deus? Se descobrirmos qual a partícula fundamental do universo, a base e a origem de todo o resto, então o problema de Deus desaparece; os argumentos da existência de Deus revelar-se-ão furados: acreditava-se que a causa primeira era Deus, quando na verdade ela é o bóson de Higgs.

Quem assim pensa não entendeu direito os argumentos da existência de Deus. Não compreendeu que a ciência natural não pode nem sequer tocar a questão da existência de Deus, e que os argumentos, por sua vez, não dependem da validade de nenhuma teoria científica particular.

A prova da existência de Deus parte da constatação de que os seres do universo são contingentes. Isto é, poderiam não existir. Não há nenhuma contradição lógica em se imaginar que não existam homens ou cachorros. Por muito tempo, não havia nem homens nem cachorros. Homens e cachorros são, portanto, contingentes. Todo ser contingente necessita de um ser que não ele próprio como causa de sua existência; como o universo inteiro é o conjunto dos seres contingentes, ele próprio precisa de algo externo a si que seja a causa de sua existência; e é a esse algo, a esse ser necessário, cuja existência não depende de nada mais (e, se assim não fosse, não poderia haver seres contingentes), que chamamos de Deus.

O bóson de Higgs é um ser contingente. Tanto é assim que estamos fazendo experimentos empíricos para ver se ele de fato existe ou não. A existência de um ser necessário pode ser conhecida pela mera especulação mental; se entendemos o que ele é, podemos concluir logicamente que ele existe. Sua não-existência implicaria uma contradição lógica. Para saber se existem homens, cachorros ou bósons, não basta formular um argumento abstrato; temos que sair pelo universo para ver se achamos algum exemplar deles.

No fundo, a ciência e a filosofia fazem perguntas diferentes, e é isso que gera a confusão. A ciência pergunta “como se dão os processos no universo? Quais são as causas que operam NO universo?”; e a filosofia (nesse ponto): “qual é a causa DO universo?”.

A ciência investiga como as coisas são. Mas a questão da existência de Deus não depende do “como”, e sim do “que”; é o fato da existência de algo que nos leva a Deus. Não importa se esse algo é composto de partículas indivisíveis e iguais ou dos cinco elementos primordiais (água, fogo, etc). Tudo isso é “como as coisas são”, algo posterior ao mais elementar “que”: o fato de elas existirem.

A ciência muito nos ensina sobre o universo, mas não pode ir além dele. Seja o universo como for, com ou sem bóson de Higgs, a existência de Deus continua necessária como sempre. A partícula-Deus, a seleção natural, ou a super-corda podem explicar muita coisa, mas não respondem à questão fundamental: por que existe alguma coisa ao invés de não existir nada?

quarta-feira, abril 30, 2008

Medos Malthusianos

O crescimento da China e da Índia, inserindo muitos de seus habitantes no mercado global, traz à tona velhos medos malthusianos. “Se continuar desse jeito, não terá para todo mundo! A população da Terra setuplicou em 200 anos; já não está bom??” Críticas ideológicas (tanto à esquerda quanto à direita) à parte, acho que vale a pena pensar mais a fundo sobre essa idéia de Malthus, que sem dúvida é importantíssima na história da ciência (não só da economia como da biologia; foram as idéias de Malthus que inspiraram Darwin).

Uma parte do pensamento malthusiano me parece absolutamente inegável, e podemos expô-la da seguinte maneira: os recursos do planeta são finitos. Portanto, o planeta não comporta uma população infinita. Ou seja, há algum limite para o número de seres humanos que a Terra comporta. Isso é ponto passivo.

O furo dos medos malthusianos atuais está no fato de não se levar em conta os ganhos produtivos do aumento de população. Admito desde já: quanto mais gente, maior é a demanda por alimentos (e por todas as outras necessidades da vida: água, roupas, etc) - é bem verdade que o crescimento da produção de alimentos e da população não seguem exatamente o padrão previsto por Malthus; mas, ainda assim, não é verdade que, no mínimo, a demanda cresce proporcionalmente à população (todo ser humano tem as mesmas necessidades básicas), enquanto a oferta cresce com rendimentos decrescentes? Um novo trabalhador na fazenda consome tanto quanto seus colegas, mas os frutos adicionados por seu trabalho no mesmo campo são inferiores aos frutos adicionados pelo camponês anterior. Mas há também algo que é ganho com um novo trabalhador!

Os rendimentos decrescentes são uma realidade. Mas a análise acima se esquece de dois outros fatores, que atuam em sentido contrário: em primeiro lugar, um número maior de pessoas significa uma maior probabilidade de inovações e descobertas; cada novo ser humano é mais uma mente criativa tentando descobrir soluções para satisfazer os desejos do homem em um mundo de escassez. É verdade que a maioria das pessoas não fará quaisquer contribuições para o conhecimento que temos de técnicas e estratégias de produção; mas um número maior delas aumenta o número que podemos esperar de novas idéias e novos negócios.

Em segundo lugar, e na minha opinião mais importante, estão os ganhos com a divisão de tarefas. Mais gente significa que podemos dividir melhor as diversas funções produtivas; e dessa especialização do trabalho segue-se, como se sabe, uma quantidade maior de bens para todos os envolvidos no processo produtivo.

Um homem sozinho na floresta nunca poderia ter uma casa e um carro; isso só é possível num mercado altamente especializado. Muitas vezes temos a idéia errada de que a riqueza, os bens de consumo, são uma realidade independente dos seres humanos, que apenas os consomem; e quanto mais gente, maior o consumo. Mas essa visão está errada: os bens de consumo só existem na medida em que forem produzidos, e, no que diz respeito à produção, muitas pessoas podem produzir mais, per capita, do que poucas.

Portanto, quanto mais gente, mais ricos estaremos? Não necessariamente. Os próprios ganhos da divisão do trabalho são decrescentes. Até certo ponto, esses ganhos (e os ganhos da inovação) mais do que compensam os rendimentos decrescentes do trabalho nas mesmas atividades; depois desse ponto, o efeito contrário tem primazia, e a partir daí, de fato, mais pessoas significará mais pobreza.

É impossível conhecer esse ponto “ótimo” de população. Mesmo porque muitos dos ganhos aí não são sequer calculáveis. Uma família pode estar melhor, apesar de mais pobre materialmente, pelo afeto extra que um filho a mais traz ao lar, que não é um bem transacionável no mercado, e que portanto não pode ser precificado. Mas ao que tudo indica, estamos muito longe desse ponto – não vivemos pior, mas melhor, do que viviam nossos antepassados; a perspectiva da China e da Índia produzindo ainda mais para o resto do mundo deveria nos encher de otimismo.

sexta-feira, abril 18, 2008

A Polêmica Lula x FMI sobre os biocombustíveis

“O verdadeiro crime contra a humanidade é relegar os países pobres à miséria” – é esse o último desdobramento da improvável polêmica que tem se desenrolado entre o presidente Lula e o Fundo Monetário. Ironicamente, é o Fundo que defende a comida, enquanto Lula defende a produção de biocombustível. E então, quem está certo nesta polêmica?

O FMI afirma que, ao se produzir combustível, a produção de alimentos sofre. Isso é verdade. A questão é: é ruim que se deixe de produzir um pouco de comida para que se produza um pouco mais de combustível? Demagogias à parte, ambos são muito importantes para a vida de muita gente. Assim como todos morreríamos se deixássemos de produzir comida para produzir apenas combustível, a vida humana também pioraria muito (e a maior parte da humanidade morreria também) se parássemos de produzir combustível para produzir apenas comida. Os recursos disponíveis (no caso, principalmente o solo) são escassos; não dá para satisfazer a todos os desejos. Há um trade-off real em jogo.

O mundo é muito complexo. Certamente ninguém conhece a fórmula que nos permita determinar a quantidade “ótima” de combustíveis e alimentos a ser produzida. Com base no quê podemos afirmar que usar um solo para a produção de combustíveis não é algo bom para a sociedade? A não ser que tenhamos acesso à equação universal e total da produção humana (que, entre outras coisas, leva em conta as preferências individuais de cada indivíduo humano vivo e ainda por nascer), um bom jeito de se averiguar isso é saber se o produtor tem lucro ou prejuízo. Nos EUA, por exemplo, só se produz etanol de milho porque o governo subsidia quem o faz; ou seja, não fosse por isso, não valeria a pena usar milho para fazer etanol.

O que isso significa? Significa que a sociedade demanda com mais urgência outros bens feitos de milho (farinha, por exemplo) do que o etanol. O preço que os consumidores estão dispostos a pagar pelo etanol de milho não cobre os preços dos bens de capital utilizados em sua produção (milho, máquinas, terra, etc). De fato, o subsídio ao biocombustível distorce a produção, e portanto o mundo inteiro (pois falamos de um mercado global) sai prejudicado dessa troca. O mesmo ocorreria se a comida fosse subsidiada.

No caso do Brasil, parece que não é preciso subsidiar o produtor de cana para que seu negócio seja lucrativo. Ele está, portanto, satisfazendo as necessidades dos consumidores por combustível, e ajudando-os, assim, a viver melhor. Se produzisse alimentos, os preços que eles atingiriam no mercado seriam inferiores; em outras palavras, a demanda por eles não é tão intensa. O solo brasileiro ajuda mais a vida dos consumidores sendo usado para cana do que para comida (enquanto, e apenas na medida em que, for mais lucrativo usá-lo para cana do que para outros fins).

Assim, tanto Lula quanto o FMI têm algo de razão e algo de erro. Sim, o aumento no preço dos alimentos se deve, em parte, ao uso indevido do solo para produção de combustíveis, como acontece nos EUA. Mas isso não quer dizer que todo uso de solo para se produzir combustível seja ruim; se isso for lucrativo no mercado competitivo, então, é de fato, como diz nosso presidente, o caminho para o desenvolvimento e, entre outras coisas, para o fim da fome.

quarta-feira, abril 16, 2008

Conhecendo o Sentido da Vida

“Você sabe qual é o sentido da vida?” – “Sim.” Parece arrogante, não é mesmo? “Qual é o sentido da vida?” é o exemplo máximo de pergunta irrespondível por excelência. O sentido da vida é aquilo que todo ser humano anseia saber, mas que nunca alcançará plenamente; e sentimos que, se fosse porventura alcançado, a própria vida perderia um pouco da graça. Se eu já possuo o sentido da vida, o jogo acabou; já posso sentar e esperar.

E, no entanto, todo mundo que tem uma religião, no fundo, julga que conhece a resposta. Eu tenho religião: sou católico. Portanto, sou um daqueles que julga conhecer a resposta. Arrogante, não?

Não necessariamente! E aqui faço uma distinção: uma coisa é conhecer exteriormente, ou em linhas gerais, o sentido da vida; e isso eu conheço: fazer o bem; a santidade; amar a Deus; Jesus Cristo (apesar da diferença de grafia, os quatro dizem a mesma coisa). Isso eu sei, e posso dizer que já dá uma bela luz à questão “qual o sentido da vida?”; dá uma finalidade, uma direção e um sentido. Mas não dá a rota individual que cada um terá que traçar!

Como eu disse, esse conhecimento pode ser chamado de “exterior”. Ele é universal e válido a todos os homens; dá-nos as coordenadas principais sobre como viver. Mas não diz, para cada um de nós, o que fazer em cada situação, e como coordenar esses fins com nossa situação individual, concreta e única. Uma coisa é saber que temos que ser bons; outra é descobrir no que, para cada um de nós, consistirá esse bem a ser vivido; e é esse o conhecimento “interior”.

Deus é o sentido da vida? Sim! Mas o que é Deus? Como o conheço? A princípio, podemos apenas enumerar aquilo que Deus não é: Ele não é corpóreo; não é finito; não tem qualquer limitação. Em suma, é totalmente diferente de tudo o que conhecemos. Mas, se consideramos que as coisas criadas, de forma finita e parcial, refletem algo do Criador, e, ainda mais, se aceitamos que cada ser humano é uma imagem de Deus, e ainda que Cristo é Deus feito homem, então podemos começar a conhecê-lo diretamente. Mas esse conhecimento, que de fato preenche aquela noção, inicialmente negativa, que temos de Deus, depende da experiência; ou seja, depende da vida de cada um. E como o ser de Deus é infinito, infinitas vidas diferentes podem levar a infinitos conhecimentos diferentes. Claro, isso não nega a realidade objetiva; há coisas (e, principalmente, privações de coisas) que simplesmente não refletem Deus; e sempre que houver contradição entre duas afirmações, é óbvio que uma delas está errada. Não se nega a realidade objetiva, e nem a unidade da verdade, ao se aceitar que diferentes perspectivas levem a diferentes visões do mesmo objeto.

É importante frizar que não falo da distinção entre meta e caminho. Tanto a meta quanto o caminho podem ser conhecidos de ambas as formas. Cristo, Deus, Igreja, sacramentos, graça. Sei o que é a Igreja, sei porque ela foi estabelecida; qualquer um pode saber isso. Mas que papel específico eu terei nela e como os canais da graça divina que ela nos disponibiliza afetarão a minha vida, isso é algo que apenas eu posso saber, e que estou em constante processo de descoberta.

Assim, conhecer perfeitamente o sentido da vida e, ainda assim, buscá-lo com todas as energias, não são contraditórios. O que muda é a forma na qual o conhecemos. Exteriormente, e esse conhecimento, de fácil comunicação, é o mesmo e invariável para todos; ou interiormente, e esse conhecimento, que relaciona o indivíduo com o absoluto, é particular a cada um, e só o descobrimos conforme vivemos – e apenas se nos mantemos firmes nos conhecimentos da primeira forma, que são absolutamente verdadeiros e confiáveis, embora não esgotem o que é a vida espiritual para cada um. O mapa nos dá conhecimento verdadeiro sobre a ilha; mas só podemos dizer que a conhecemos se já pisamos em seu solo – contudo, se quisermos desbravá-la sem o mapa, vamos simplesmente nos perder.

É arrogante dizer que se conhece o sentido da vida? Se isso significa que supomos ter desvendado os mistérios de Deus e do homem, e que sabemos o que é melhor para cada pessoa em cada situação, então certamente é. Mas se apenas aceitamos que, por nenhum mérito nosso, conhecemos aquilo que devemos mirar e pelo qual devemos viver, então não; pelo contrário, é o primeiro passo da humildade que reconhece a insuficiência do homem e permite que ele dê passos concretos em direção a algo que não o seu próprio capricho.

segunda-feira, abril 07, 2008

Cientistas anti-científicos

Os genes estão na moda. Agora todo comportamento humano é explicado biologicamente: primeiro, procura-se uma área do cérebro ao qual ele está ligado; em seguida, elabora-se um argumento ou modelo para mostrar como ele garante vantagens reprodutivas. Pronto! Já se pode atribuir, como causa do comportamento, um punhado de genes. É o que tem sido feito com a religião e com a moral, numa empreitada particularmente desastrada de alguns biólogos contemporâneos.

“Os homens têm preocupações morais. Certas áreas do cérebro se ativam quando eles pensam em termos morais. Com efeito, um homem que agisse moralmente teria mais chances reprodutivas do que um que não agisse. Portanto, a moralidade nada mais é do que um instinto favorável à reprodução humana e que foi, por isso mesmo, selecionado.” Esse é o tipo de argumento. Qualquer comportamento poderia ser explicado assim. Homens ao redor do mundo constroem casas. Certamente, há áreas do cérebro ativadas para se desenhar e construir uma casa, e elas estão ligadas a genes. Não há a menor dúvida de que quem constrói casas tem mais chances de sobreviver e se reproduzir do que quem dorme ao léu. Portanto, podemos postular um “instinto de construir casas”.

É claro que não construímos casas por “instinto”, por algum impulso pré-racional determinado pelos genes. Essa explicação é irrisória, pois ignora aquilo que verdadeiramente explica esse comportamento: a razão. Observamos que certas coisas nos são más e agimos de forma a preveni-las. Dormir ao relento traz sérios riscos; percebemos que, com algumas pedras e um pouco de trabalho, podemos nos proteger; assim, resolvemos o problema. Com a moralidade e a religião é a mesma coisa: são resultados de processos mentais humanos visando entender o mundo, agir de forma a viver melhor, etc. Toda explicação evolucionária torna-se, na melhor das hipóteses, supérflua, quando nos lembramos que o homem é um animal racional que procura conhecer e agir com propósitos. Não é preciso recorrer a nossos avós para explicar algo que, conosco, já faz sentido.

A segunda deficiência das explicações evolucionárias para os comportamentos humanos é sua total falta de evidência. Um cientista faz um modelo no qual ele mostra que os efeitos de, digamos, ter uma religião, são positivos para a propagação de um gene. Em primeiro lugar, é claro que nenhum modelo de computador leva em conta os incontáveis fatores que afetam nossa reprodução; todo modelo que tente representar a vida humana contém, em alguma medida, a arbitrariedade do programador. Mas, mesmo assim, podem dar explicações plausíveis. Contudo, o meramente plausível não é necessariamente verdadeiro. Onde está a evidência empírica de que, em algum momento da história, houve populações humanas sem “instinto moral”? Não existe.

Assim, as explicações evolucionistas para o comportamento humano não têm evidência empírica e são supérfluas. Por que, então, têm feito tanto sucesso? Note-se que nenhum cientista jamais falará em “instinto de construir casas”, mas “instinto moral” tem sido amplamente divulgado. A razão é muito simples, e muito pouco científica: o desejo de desqualificar a moralidade objetiva e a religião.

Se se aceitar que, por exemplo, a religião nada mais é do que um instinto advindo de genes que ajudavam a sobrevivência humana no ambiente ancestral, não é preciso nem discutir seus méritos enquanto crença; ela está desqualificada a priori. A questão acerca da verdade de uma dada religião nem sequer emerge, pois mostrou-se que a origem da religião está nos genes, nos instintos, e não na tentativa de se conhecer a realidade. Todo homem racional, portanto, não se deixará levar por esses impulsos animais.

Ótimos cientistas naturais podem ser péssimos filósofos. Assim, todo cuidado é pouco quando nos deparamos com respeitadas autoridades científicas que insistem em misturar, aos seus trabalhos de pesquisa e divulgação, conclusões interpretativas sobre o fundamento das crenças e ações humanas.

quarta-feira, março 19, 2008

Uso de células-tronco embrionárias: argumentos contrários

Discute-se a moralidade de se usar células de embriões humanos na pesquisa científica. O problema é que, para que essas células sejam coletadas, o embrião morre. E agora, o que será que tem precedência: o conhecimento científico ou a vida do embrião?

Esta discussão, como toda discussão ética, não pode ser resolvida com base na legislação vigente. O fato de uma ação estar ou não prevista em alguma constituição ou código de leis não muda seu caráter moral. Portanto, não vou me debruçar sobre a lei brasileira, e tratarei diretamente da ação em si mesma.

Um embrião humano é, biologicamente falando, um indivíduo; não é parte do corpo da mãe. Tanto é assim que tem DNA diferente do da mãe e é capaz, em condições artificiais, de existir fora de seu corpo (como é o caso dos embriões cujo futuro está em jogo). É um ser vivo individual. De qual espécie? Obviamente, da espécie dos pais. É, portanto, um indivíduo da espécie humana: um ser humano.

“Mas ele não tem nenhuma das características de um ser humano! Não tem nariz e nem braço!” – Essas são, de fato, as características de um ser humano adulto, que se desenvolveu plenamente. Todo homem adulto, no entanto, começou como embrião. O estágio embrionário é um estágio normal e natural do desenvolvimento humano. O embrião humano tem todas as características próprias de um ser humano da sua idade.

“Sim, é um ser vivo da espécie humana, mas não é um homem! Não tem sistema nervoso: portanto não sente dor e nem pensa! É como um pedaço de matéria bruta; não há problema, portanto, em tratá-lo como tal” – É bem verdade que o embrião ainda não desenvolveu seu sistema nervoso (como todos nós quando tínhamos essa idade). Mas isso dá o direito de tratá-lo como um objeto? Apliquemos o mesmo raciocínio a um outro estágio da vida humana. O bebê recém-nascido também não desenvolveu plenamente suas capacidades mentais: ainda não é um ser racional. A inteligência dele não é muito diferente da de um animal. Isso quer dizer que podemos tratar o bebê da mesma forma que tratamos os animais? Claro que não. Se o respeito à vida humana depende do desenvolvimento mental do indivíduo, então não há grandes problemas em se matar um bebê para se alimentar de sua carne!

“Se não usarmos os embriões congelados agora, eles vão ser destruídos de qualquer jeito!” - E se os usarmos, caímos imediatamente no círculo vicioso: mais embriões virão, e o que fazer com esses? Na prática, serão seres humanos feitos para ser assassinados. Dado que está estabelecido que o embrião é um ser humano e que sua vida tem a mesma dignidade dos outros homens, fica claro que a própria fabricação artificial de embriões deve ser proibida. Além do mais, não matamos doentes terminais para fins de pesquisa; por que deveria ser diferente com embriões, ainda que estejam fadados à morte? Na medida do possível, os embriões existentes e disponíveis deveriam ser implantados e gestados; se isso for impraticável, enterrados dignamente.

Ninguém nega a importância do progresso científico. Mas ele não deve ser feito às custas da humanidade! A ciência, assim como todas as atividades do homem, deve se pautar pela ética. Que tipo de sociedade seremos se aceitarmos que vidas humanas sejam criadas e destruídas para fornecer matéria-prima de tratamentos médicos?

sábado, março 15, 2008

Duas novidades quentes na Internet

A primeira novidade diz respeito diretamente a mim. Já foi ao ar o site do Instituto de Formação e Educação (IFE), do qual eu e o Luiz Felipe (membro inativo deste blog) fazemos parte. Nosso intuito? Criar, ou ao menos alimentar, uma cultura acadêmica de alto nível no Brasil. Temos dois projetos já em andamento: a revista de humanidades Dicta & Contradicta, que será lançada em breve, e alguns cursos ministrados no Universo do Conhecimento, em São Paulo. Quem valoriza o saber e o pensamento humano, e especialmente o patrimônio intelectual construído por nossa civilização ao longo de sua história, compareça.

Ao dizer que visamos criar uma cultura acadêmica no país, não desmerecemos os resultados das universidades nacionais. Apenas constatamos a existência de lacunas na formação humana dos estudantes brasileiros, que esperamos ajudar a remediar, por meio do debate intelectual e da troca de idéias.

O site do Instituto, com as informações sobre os cursos, é http://www.ife.org.br/

A segunda notícia, essa sem relação comigo, é o lançamento da versão brasileira do site do Instituto Mises. O site Mises.org é a melhor fonte de artigos sobre economia na Internet, bem como de livros online sobre a escola austríaca de economia. A versão brasileira, integralmente em português, é uma grande adição para os internautas nacionais.

Só espero que o site consiga manter uma distância analítica de certas posturas dos autores americanos que em nada contribuem para o conhecimento sério. Um exemplo é o artigo traduzido do Llewellyn Rockwell (que tem ótimos textos, por sinal), que começa com a seguinte afirmação: "A história da Escola Austríaca começa no século XV, quando os seguidores de São Tomás de Aquino, que escreviam e lecionavam na Universidade de Salamanca, na Espanha, procuraram entender e explicar toda a completa extensão da ação humana e da organização social."

Bem que eu gostaria que a Escola Austríaca tivesse começado com São Tomás de Aquino! Mas o fato é que ela data do fim do século XIX, e a ligação dela com o pensamento tomista, embora válida, é muitíssimo indireta. Os primeiros austríacos provavelmente nem sabiam da existência da escola de Salamanca. Bom, isso são detalhes.

Espero que o site brasileiro foque-se mais na produção de novos textos do que apenas na tradução dos americanos! E que tenham sucesso em educar o povo brasileiro nessa disciplina negligenciada e vilipendiada que é a economia!

O site do Mises Brasil é http://www.mises.org.br/

quarta-feira, março 12, 2008

Aforismos sobre a felicidade

Aproveitar o momento. Aproveitar? - Carpe diem! O importante é aproveitar o momento. Mas o que é aproveitar? Usar algo de forma eficaz para atingir um fim que se tem em mente. Para o aluno ginasial em risco de recuperação e que queira passar de ano, ter ficado a véspera da prova inteira no boliche com seus amigos não foi um bom aproveitamento do tempo. Para outro, que queria se integrar melhor com os colegas de classe, foi. Só sabemos quem aproveitou seu tempo se conhecemos suas finalidades.
.......Quem diz “carpe diem!” pensa em uma finalidade (aliás, costumam pensar sempre na mesma!); resta saber se ela deve ser perseguida; e, se não, qual outra em seu lugar?

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A felicidade NÃO é o caminho - “Depois de muito procurar a felicidade, descobri que ela não é destinação; é o caminho”. É claro que o caminho importa; todo mundo prefere chegar ao topo da colina por uma trilha na natureza em companhia dos amigos do que sozinho por um viaduto sujo, lento e pobre. Mas o caminho é bom ou mau apenas à luz do destino final. Mesmo tendo que atravessar São Paulo de ônibus (um passeio não muito agradável), o passageiro vai feliz por saber que se dirige à casa dos avós que não vê faz tempo. Já uma viagem de trem pelo continente europeu é algo lindíssimo; mas se o passageiro é um prisioneiro nazista e seu destino é o campo de Auschwitz, a viagem não será das mais alegres. Quem sabe uma cena de beleza natural ou da vida campestre seja capaz de distraí-lo por uns instantes; dado que seu destino é irremediável, esquecer-se dele enquanto dura a viagem não é má idéia. ..
.......Mas para nós, livres que somos para escolher nosso destino, esquecer-se dele e perder-se nos atrativos do caminho é o caminho para se perder. A qualidade da estrada é importante; mas mais importante é saber aonde ela leva.


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A felicidade de cada um NÃO varia conforme a opinião de cada um - Se uma pessoa alcança tudo aquilo que ela queria para sua vida, ela é feliz? Não necessariamente. Podemos dizer que ela está contente (isto é, contenta-se plenamente com o que tem), mas nem por isso é verdadeiramente feliz.
.......Um homem adulto cujo retardo mental lhe condene a ter, pelo resto da vida, a inteligência de uma criança de 10 anos, é objeto de compaixão, e nunca de inveja, mesmo que esteja plenamente satisfeito. Sabemos que, por mais contente que esteja, não alcança aquela felicidade da qual o homem é capaz. Dois copos de tamanhos diferentes podem ambos estar cheios até a boca; mas um terá muito mais água que o outro; ou ainda mais: pode ser que, ao invés de água, tenha vinho!
.......O homem do exemplo não tem qualquer culpa de sua situação. E todos aqueles que voluntariamente se condenam a vidas e a felicidades muito inferiores àquela que o ser humano poderia almejar? Quantos não deixam de lado a felicidade do homem adulto para procurar, não a da criança, mas a do porco? Em alguma medida, todos nós o fazemos. E já que buscamos a felicidade (a verdadeira felicidade, aquela que não se contenta com o medíocre), cabe perguntar: no que ela consiste, e quais são os meios à nossa disposição para alcançá-la? Aí estão questões que, seja quem for que nelas pense, terá aproveitado seu tempo.

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

O Homem é Necessariamente Egoísta?

Será possível agir com altruísmo? Ou toda ação humana é necessariamente egoísta? Numa faculdade de economia como a minha, muitos saem convencidos não apenas de que o homem é egoísta, mas de que não há como ser de outra maneira. Dado o caráter moralmente destrutivo dessa opinião, é minha intenção aqui questioná-la.

Antes de iniciar a discussão, é necessário ter claro qual o ponto em debate. Muitos afirmam que o homem é, em geral, egoísta; que, na grande maioria das vezes, age pensando principalmente em si mesmo, e só em raros casos especiais visa o bem dos outros. Não discutirei essa tese. O ponto em questão é outro, que vai muito mais longe: toda ação humana é egoísta e é impossível sequer pensar em uma que não o seja. O altruísmo não é apenas uma raridade, mas uma impossibilidade absoluta. Essa posição conta com dois argumentos principais.

O primeiro é assim: toda ação visa uma finalidade, ou seja, um valor, um interesse do agente. Esse interesse pode ser comprar um carro ou ajudar um parente, não importa; em ambos os casos, trata-se de um interesse. O egoísta é aquele que age para satisfazer seus interesses. Portanto, toda ação humana, sem exceção, é egoísta.

Não há do que se discordar na lógica do argumento. De fato, toda ação visa um interesse. Mesmo o homem sob a coerção de uma arma age tendo em vista seus interesses (seja escolhendo se render ao agressor ou mantendo-se firme e aceitando a morte). Nesse sentido, toda ação é egoísta. O problema é que esse sentido é radicalmente diferente do usual.

Em geral, o termo “egoísta” caracteriza aquela pessoa cujos interesses estejam todos centrados nela mesma, com pouca ou nenhuma consideração aos outros. O que o argumento chama de “egoísmo”, contudo, é a mera existência de interesses. Quando chamamos alguém de egoísta, não queremos dizer que age de acordo com seus interesses ou valores (isso ocorre sempre, necessariamente), mas sim que seus interesses voltam-se apenas para si mesmo, à exclusão das outras pessoas. Já o altruísta é aquele cujos interesses incluem, de forma especial, o bem dos outros. O “egoísmo” que o argumento prova existir não tem nenhuma relação com o desvio ético ao qual costumamos dar esse nome.

O segundo argumento não muda o sentido dos termos; ele aceita o sentido usual de “egoísmo”, e faz uma afirmação psicológica: sim, há pessoas que agem tendo em vista o bem dos outros; por exemplo, alguém que visite um idoso num asilo. Ao fazer isso, ela se sente bem, tem uma espécie de prazer. A ação dela, portanto, tem como finalidade o prazer que ela sente, e é, assim, egoísta; ela ajuda os outros apenas porque isso lhe dá prazer. E não tem como ser diferente: mesmo quando fazemos algo que nos causa dor física (por exemplo, pular na frente de um carro para salvar uma menina), sentimos algum tipo de recompensa psicológica por realizar com sucesso aquilo visávamos.

É verdade que, se atingimos uma meta, sentimos algum tipo de prazer (se “prazer” for definido da forma mais abrangente possível, incluindo até a mera convicção de que se agiu bem). Mas é um erro afirmar que o prazer seja a causa da ação; erro que, como mostrarei, torna essa mesma ação ininteligível.

Muitas ações poderiam dar prazer. Algumas pessoas sentem-se bem ao ajudar um estranho; outras, ao ludibriar um estranho. O prazer não explica nenhuma das duas, pois ele poderia advir de ambas. É preciso algum outro elemento, que não o prazer, para explicar porque uma pessoa faz uma e não a outra. Assim, a não ser nos casos em que o prazer se siga independentemente das crenças de quem age (como é o caso de comer, beber, aquecer-se, fazer sexo, etc), não é possível apontar o prazer como finalidade da ação.

Quem ajuda os pobres não o faz porque isso lhe dá prazer. A verdade é o exato oposto: é apenas porque ele valoriza o bem das pessoas ao seu redor que ele sente prazer ao ajudá-las. Se deixasse de valorizar o bem dos outros, essa ação deixaria de ser prazerosa. O prazer não constitui a finalidade da ação; ele depende e deriva dela.

Isso não quer dizer que toda ação externamente caridosa seja verdadeiramente altruísta. Bem sabemos que alguém que doa dinheiro à caridade pode estar mais preocupado em melhorar sua imagem do que em ajudar os necessitados. Também nesse caso, o prazer de se realizar a ação com sucesso não é sua finalidade (a finalidade é a auto-imagem do doador), e sim uma conseqüência de se tê-la alcançado. O prazer depende dos valores do agente, e não vice-versa, e são esses valores que determinam se o agente é egoísta ou altruísta.

Assim, ambos os argumentos mostram-se deficientes. O primeiro, apesar de correto, usa o termo “egoísta” num sentido totalmente diferente do sentido usual, de caráter ético, que atribuímos a ele. O segundo inverte, erroneamente, a relação entre o prazer e a finalidade da ação. Isso não prova que o homem seja altruísta; é bem verdade que, muitas vezes, ele não é. O que se prova é que, ainda que raro, o altruísmo é possível.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Impressões da Europa

A Europa não vai bem. Muitos elogios se tecem ao “modelo europeu”. Mas também temos que falar do podre. Não tenho em mente modelos políticos e econômicos, embora creia que eles expliquem parte do problema apontado. Os incentivos por eles criados exacerbam as deficiências espirituais e morais da sociedade, que são a principal causa da crise atual e o foco do meu texto.

Um teólogo inglês resumiu bem a cultura atual de seu país: supermercados e esportes. O mesmo poderia ser dito sobre outras nações. Tem-se a impressão de que as pessoas não têm uma razão maior de viver. Jovens e velhos, todos vivem em função do prazer (exceto os muito jovens e os muito velhos; esses vivem cada vez menos). As aspirações não ultrapassam baladas e viagens. O interesse não vai além da última fofoca sobre o Beckham. Poucas pessoas querem filhos, e as famílias não duram. Muitas crianças e adolescentes já têm como dado que se casarão mais de uma vez.

Essa vida não leva o homem à felicidade. Os níveis de alcoolismo entre jovens são alarmantes, e os adultos estão afundados até o pescoço em dívidas. Depressão, distúrbios psicológicos e suicídio não são incomuns. Muitos percebem que há algo errado, mas não vão à raiz do problema: o desejo de lutar por algo melhor pára no protesto político ou no efeito estufa.

Claro, isso é um recorte muito parcial. Nenhuma pessoa é tão simples ou superficial assim. As aspirações humanas nunca são totalmente apagadas; amizades continuam a ser feitas, encontros felizes acontecem, planos bons ainda vingam. Quem estiver disposto encontra lá os meios para obter a melhor formação espiritual e cultural do mundo. Sem falar que são incontáveis as virtudes que os europeus poderiam nos ensinar: o trabalho realizado com perfeição, a honestidade, o senso de dever cívico. Mas mesmo isso vai se perdendo aos poucos. Escândalos políticos, a nós tão familiares, estão deixando de ser raridade por lá.

Os europeus perderam o sentido de transcendência; perderam sua identidade cristã. Quiseram construir um paraíso na terra, pensando apenas no homem e na vida presente. Mas se esqueceram de que o homem está profundamente desregulado. Que, sem algum auxílio externo, sua tendência é piorar. Pensaram ser possível manter o patrimônio cultural de séculos desprezando sua base espiritual. Enganaram-se.

No século XVIII, por exemplo, havia muitos ateus e deístas; alguns deles geniais, com profunda capacidade de entender a alma humana, e senso estético muito refinado. Contudo, ao se basear em suas idéias, a sociedade tornou-se incapaz de produzir homens da mesma qualidade. Do primado da razão, da sociedade de homens livres e educados, passou-se ao primado da ciência e da técnica e à sociedade planejada nos moldes da física. O que falar dos ateus de hoje, então? A própria distinção entre verdadeiro e falso, bem e mal, belo e feio, não é aceita. Nessas condições, que tipo de aspiração é possível?

Não é questão de culpar ateus ou qualquer outro grupo. Eles são apenas um sintoma radicalizado (e, ao mesmo tempo, parte da causa) de algo que perpassa toda a sociedade. Ao abandonar os valores de base de nossa civilização em prol de um sonho ilusório, não só deixamos de lado nossa real finalidade como não alcançamos este novo sonho e, para completar, tolhemos nossa própria capacidade de sonhar. A vida vai se tornando cada vez mais medíocre, e a concepção de um mundo melhor cada vez mais mesquinha e pequena.

É essa a impressão que a Europa me passa hoje em dia. Um povo que procura desesperadamente a felicidade onde ela não pode ser encontrada, e ao fazer isso mina as bases de sua própria civilização. Os prédios são magníficos, os museus inestimáveis, as bibliotecas verdadeiros universos; mas as pessoas que lá moram seriam incapazes de produzir, hoje em dia, algo semelhante.

Não sou pessimista. Acho que o pior já passou, e sinais de mudança já podem ser vistos. Mas o caminho é longo e árduo. Agora já está mais claro que há escolhas a serem feitas, lados a se tomar. Isso significará mais conflitos, mais debates e menos consenso, o que é bom. Pois ou os europeus acordam de seus devaneios, ou se extinguem; e há quem esteja pronto para tomar seu lugar. O arcebispo anglicano de Canterbury já considera tribunais para aplicar a lei sharia algo inescapável; um cartoon ou um vídeo são o bastante para provocar mortes; o sentimento de revolta e frustração nas grandes periferias é profundo e incontrolável. A Europa passa por uma fase decisiva de sua história, que poderá ser seu fim ou um novo começo.