Aula de Filosofia. Matéria: teoria crítica (“Lá vem...” - calma, algo bom sairá daí!). Discute-se o conceito de “democracia deliberativa”. Tudo muito vago e abstrato; repetição dos textos ao invés de entendimento. Mas a intervenção de um aluno, membro da chapa recém-eleita do C.A., trouxe o mundo real à aula. Acontece que a chapa vencedora teve 80 votos. Mais de mil alunos na faculdade; 80 votos.
A realidade da faculdade é essa. Grande parte das pessoas simplesmente não se interessa. Outra parte, também considerável, se interessa, mas sabe que isso de nada adianta. As chapas, as assembléias, enfim, as “estruturas de poder” dos estudantes estão tomadas por pequenos grupos. Um deles, em particular, cujos membros se dizem parte da Quarta Internacional Trotskista, faz questão de ir a todas as reuniões e não deixar ninguém mais falar. As assembléias são intermináveis; vota-se inclusive se determinado ponto deve ou não ir a votação, e os resultados são sabidos de antemão. Assim, mesmo os bons se desinteressam e se distanciam cada vez mais da política universitária e da esfera pública em geral, minimizando o desgaste que teriam em lutas infrutíferas. Cada um vai para seu canto, estudar para sua prova. A suposta democracia se resume ao ato de votar; ação pontual que, isolada de um debate mais amplo, perde todo o sentido. Assim é a faculdade, é assim é, infelizmente, o mundo fora dela também.
Poderia ser diferente. O professor Ricardo Terra propôs a idéia: imaginemos que, dos mil alunos, a metade deles, quinhentos, adotasse uma postura ativa e participativa com relação à faculdade. Quinhentas pessoas dedicadas a pensar e discutir idéias, ler coisas de seu interesse, escrever textos, organizar grupos de estudo, produzir obras de arte, propor e elaborar projetos que envolvam os outros estudantes, etc. Nesse caso, seria possível, por exemplo, criar e consolidar um jornal dos alunos, no qual fossem discutidas, com total liberdade, todas as idéias e pontos de vista (o próprio Terra sugeriu, para o jornal hipotético, uma questão provocadora: “por que nenhuma boa universidade do mundo tem eleições diretas para reitor?”). A vida universitária seria outra. Haveria razão para se interessar e participar dos grupos estudantis. As votações seriam a culminação das discussões e debates que ocorreriam o tempo todo por toda a faculdade, para aquelas questões de ordem prática que exigem uma solução única; e não o princípio e o fim de toda a política. Isso é democracia deliberativa. E é um ideal verdadeiramente apaixonante.
E por que não se concretiza? Por um lado, como já foi mencionado, há o forte obstáculo à participação criado pela organização atual das entidades e assembléias. Por outro, todo mundo precisa estudar para passar de semestre, e muitos precisam trabalhar; não têm tempo para mais nada. Isso é o que foi alegado em sala, e no qual custo a acreditar. Sim, de fato a estrutura oficial desanima qualquer um; mas novas iniciativas não têm que, necessariamente, passar por ela. Também é verdade que é preciso estudar, e muitos estudam e trabalham; mas o mesmo valia no passado, quando existia uma vida universitária mais rica. Será crível que um aluno da Filosofia, que cursa de duas a três matérias por semestre (o que significa ir à faculdade dois ou três dias da semana), não tenha tempo?
O tempo sempre foi curto; não vivemos em uma época especial nesse sentido. O que falta é vontade e a disposição de agir. Em outra matéria deste semestre estudamos o Contrato Social de Rousseau (“Agora já passou dos limites!” - sem revoltas; aqui também há uma boa lição). Ele observava, em seu tempo, essa mesma passividade que se vê agora. Homens adultos, para não arcar com a responsabilidade de suas ações, o que envolve correr riscos, passar desconfortos e ocasionalmente falhar, abrem mão da própria condição de agentes. Preferem delegar suas responsabilidades para outros, e pagar-lhes para que ajam em seu lugar. Para Rousseau, a causa disso era o desejo de bem-estar material. Hoje em dia, mesmo a busca do bem-estar material é delegada; espera-se do governo que ele forneça a cada homem todas as necessidades da vida; até mesmo a educação e o cuidado dos próprios filhos são vistos como incumbência do Estado, e não dos pais. Não é preciso dizer que essa estratégia é frustrada; mesmo o bem-estar material piora em conseqüência dela.
Tal piora, no entanto, é pequena se comparada à degeneração moral e espiritual que decorre de uma existência passiva. Todos os sonhos e aspirações nobres são deixados de lado para se garantir o pouco (e é cada vez menos) que se tem. Deixa-se de perseguir a felicidade para evitar o sofrimento. O homem deixa de ser um agente e passa a ser uma vítima; vítima da sociedade, do capitalismo, dos políticos; vítima de seus pais, de seus genes, de seu corpo; vítima de um universo mau que não se dobra para satisfazer cada capricho seu. A conseqüência é que todos passam a exigir seus direitos (“direito” hoje em dia nada mais é do que obrigar outras pessoas a prover aquilo do qual se carece), e cada vez mais fogem de sua contrapartida necessária: as responsabilidades. As conseqüências são sentidas em todos os âmbitos da vida individual e social.
Enquanto essa atitude espiritual de fundo não mudar, as instituições políticas não mudarão; ela é sintoma, e não causa, do problema (embora, como em quase tudo na ação humana, o sintoma reforce a causa). Como mudá-la? Não sei ao certo, mas acho que a universidade, e especialmente a faculdade de Filosofia, deveria ter um papel aí.
A realidade da faculdade é essa. Grande parte das pessoas simplesmente não se interessa. Outra parte, também considerável, se interessa, mas sabe que isso de nada adianta. As chapas, as assembléias, enfim, as “estruturas de poder” dos estudantes estão tomadas por pequenos grupos. Um deles, em particular, cujos membros se dizem parte da Quarta Internacional Trotskista, faz questão de ir a todas as reuniões e não deixar ninguém mais falar. As assembléias são intermináveis; vota-se inclusive se determinado ponto deve ou não ir a votação, e os resultados são sabidos de antemão. Assim, mesmo os bons se desinteressam e se distanciam cada vez mais da política universitária e da esfera pública em geral, minimizando o desgaste que teriam em lutas infrutíferas. Cada um vai para seu canto, estudar para sua prova. A suposta democracia se resume ao ato de votar; ação pontual que, isolada de um debate mais amplo, perde todo o sentido. Assim é a faculdade, é assim é, infelizmente, o mundo fora dela também.
Poderia ser diferente. O professor Ricardo Terra propôs a idéia: imaginemos que, dos mil alunos, a metade deles, quinhentos, adotasse uma postura ativa e participativa com relação à faculdade. Quinhentas pessoas dedicadas a pensar e discutir idéias, ler coisas de seu interesse, escrever textos, organizar grupos de estudo, produzir obras de arte, propor e elaborar projetos que envolvam os outros estudantes, etc. Nesse caso, seria possível, por exemplo, criar e consolidar um jornal dos alunos, no qual fossem discutidas, com total liberdade, todas as idéias e pontos de vista (o próprio Terra sugeriu, para o jornal hipotético, uma questão provocadora: “por que nenhuma boa universidade do mundo tem eleições diretas para reitor?”). A vida universitária seria outra. Haveria razão para se interessar e participar dos grupos estudantis. As votações seriam a culminação das discussões e debates que ocorreriam o tempo todo por toda a faculdade, para aquelas questões de ordem prática que exigem uma solução única; e não o princípio e o fim de toda a política. Isso é democracia deliberativa. E é um ideal verdadeiramente apaixonante.
E por que não se concretiza? Por um lado, como já foi mencionado, há o forte obstáculo à participação criado pela organização atual das entidades e assembléias. Por outro, todo mundo precisa estudar para passar de semestre, e muitos precisam trabalhar; não têm tempo para mais nada. Isso é o que foi alegado em sala, e no qual custo a acreditar. Sim, de fato a estrutura oficial desanima qualquer um; mas novas iniciativas não têm que, necessariamente, passar por ela. Também é verdade que é preciso estudar, e muitos estudam e trabalham; mas o mesmo valia no passado, quando existia uma vida universitária mais rica. Será crível que um aluno da Filosofia, que cursa de duas a três matérias por semestre (o que significa ir à faculdade dois ou três dias da semana), não tenha tempo?
O tempo sempre foi curto; não vivemos em uma época especial nesse sentido. O que falta é vontade e a disposição de agir. Em outra matéria deste semestre estudamos o Contrato Social de Rousseau (“Agora já passou dos limites!” - sem revoltas; aqui também há uma boa lição). Ele observava, em seu tempo, essa mesma passividade que se vê agora. Homens adultos, para não arcar com a responsabilidade de suas ações, o que envolve correr riscos, passar desconfortos e ocasionalmente falhar, abrem mão da própria condição de agentes. Preferem delegar suas responsabilidades para outros, e pagar-lhes para que ajam em seu lugar. Para Rousseau, a causa disso era o desejo de bem-estar material. Hoje em dia, mesmo a busca do bem-estar material é delegada; espera-se do governo que ele forneça a cada homem todas as necessidades da vida; até mesmo a educação e o cuidado dos próprios filhos são vistos como incumbência do Estado, e não dos pais. Não é preciso dizer que essa estratégia é frustrada; mesmo o bem-estar material piora em conseqüência dela.
Tal piora, no entanto, é pequena se comparada à degeneração moral e espiritual que decorre de uma existência passiva. Todos os sonhos e aspirações nobres são deixados de lado para se garantir o pouco (e é cada vez menos) que se tem. Deixa-se de perseguir a felicidade para evitar o sofrimento. O homem deixa de ser um agente e passa a ser uma vítima; vítima da sociedade, do capitalismo, dos políticos; vítima de seus pais, de seus genes, de seu corpo; vítima de um universo mau que não se dobra para satisfazer cada capricho seu. A conseqüência é que todos passam a exigir seus direitos (“direito” hoje em dia nada mais é do que obrigar outras pessoas a prover aquilo do qual se carece), e cada vez mais fogem de sua contrapartida necessária: as responsabilidades. As conseqüências são sentidas em todos os âmbitos da vida individual e social.
Enquanto essa atitude espiritual de fundo não mudar, as instituições políticas não mudarão; ela é sintoma, e não causa, do problema (embora, como em quase tudo na ação humana, o sintoma reforce a causa). Como mudá-la? Não sei ao certo, mas acho que a universidade, e especialmente a faculdade de Filosofia, deveria ter um papel aí.
Um comentário:
"Deixa-se de perseguir a felicidade para evitar o sofrimento."
Você conseguiu expressar isso de uma maneira perfeitamente exata. Ótimo post. E um abraço.
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