segunda-feira, novembro 03, 2008

Um novo tipo de democracia

A grande vantagem da democracia sobre outras formas de governo é que ela permite a transição pacífica de poder quando as idéias e os valores da maioria da população mudam. No longo prazo, qualquer governante precisa do apoio ideológico (ainda que tácito) da população. Mesmo um tirano sanguinário precisa do consentimento do povo para reinar. Não é ele que fisicamente obriga seus ministros e generais a obedecer suas ordens; e esses, por sua vez, também não têm poder físico coercitivo sobre aqueles que comandam. Esse poder depende de que os generais aceitem a autoridade do tirano, que os soldados aceitem a autoridade dos generais, e assim por diante.

A ordem social está baseada, antes de tudo, em crenças, nas quais o poder coercitivo se baseia para punir detratores minoritários. Se, amanhã, os generais deixarem de obedecer ao presidente, ou os soldados deixarem de obedecer aos generais e os policiais a seus superiores, a ordem política do país é imediatamente extinta. O mesmo se dará se a maioria da população deixar de aceitar a autoridade do governo e se revoltar contra ela. Os laços de poder dependem sempre da aceitação voluntária da autoridade dos superiores por grande parte dos subordinados.

Assim, se houver uma mudança radical na mentalidade da população, de forma que ela não mais tolere o jugo dos governantes atuais, a queda destes é inevitável. Outros governantes, que representem idéias, valores ou condutas diferentes virão substituir os antigos. Se o governo for monárquico, o rei será deposto, o que raramente se dá sem violência (a não ser que ele deixe o trono de bom grado, como ocorreu no Brasil). Na democracia, essa transição ocorrerá por meio das urnas, pacificamente, e isso é uma grande vantagem.

No entanto, se a democracia assegura a paz, ela o faz ao custo de tornar cada cidadão um pequeno dono do Estado. Cada um vota com seus interesses em mente, esperando conseguir do governo aquilo que ele quer. Todos tentam viver às custas de todos, tirando uns dos outros, pelo braço armado do Estado, os bens almejados. O resultado final dessa situação é a piora geral; se todo mundo quer tirar, e ninguém quer produzir, não restará nada a ser tirado. Na esfera pública (governamental), o auto-interesse de cada um leva à piora geral.

Como fugir dessa conseqüência nefasta da democracia? Num passado não muito remoto, isso era feito por meio do voto censitário. O governo servia para proteger a propriedade; assim, votava quem tinha propriedade a ser protegida. No entanto, se naquela época isso já permitia abusos e clientelismo, esse sistema seria ainda mais distorcido hoje em dia, visto que grande parte dos empreendimentos são financiados pelo Estado e é ele que remunera o grande capital.

Muito mais relevante do que a distinção entre pobres e ricos é a distinção entre quem paga e quem recebe impostos. Um trabalhador privado que utilize poucos serviços públicos e pague seus impostos dá mais dinheiro ao Estado do que recebe em serviços assistenciais. Já um funcionário público recebe impostos (seu salário é integralmente constituído deles). O mesmo vale para um empresário cujo negócio é financiado pelo banco estatal; ou para o usuário contumaz da saúde pública; ou para quem recebe renda de títulos públicos. A matemática é simples: se há gente que, liquidamente, recebe mais do Estado do que paga a ele, então há gente que paga mais do que recebe. A proposta política também é simples: só vota quem sustenta o Estado, isto é, quem paga mais do que recebe.

É bem possível que as pessoas continuem votando de acordo com seus interesses pessoais. Mas a partir do momento que o eleitor deixa de ser explorado pelo Estado e se torna um explorador, ele deixa de ser eleitor. Um político pode se eleger com o voto agrário, prometendo vastos subsídios agrícolas. Se o plano for colocado em prática, sua base eleitoral, os agricultores, não votará nas próximas eleições. Votarão aqueles que tiveram de pagar pelo subsídio e nada receberam em troca.

O grande problema dessa idéia seria sua implementação. Como medir o quanto cada um paga e recebe do governo? Certamente a tecnologia informática atual permite contabilizar os impostos pagos e a maior parte dos serviços recebidos. Um cadastro digital nacional seria necessário. Se esse cadastro substituir a papelada que inexplicavelmente ainda se requer dos cidadãos, ele poderia ser feito sem aumentar a burocracia estatal. Quem sabe é esse modelo de democracia que pode nos levar a um governo limitado e eficiente sem, com isso, perder a estabilidade pacífica da ordem democrática e nem eliminar do eleitorado permanentemente qualquer setor da população.

2 comentários:

Lucas Mendes disse...

Joel, interessante teu pensamento. Sua proposta parece ser mais eficaz no combate ao clientelismo do que o degradante sistema ora vigente.

Mas noto o seguinte, quando vc diz:

"A proposta política também é simples: só vota quem sustenta o Estado, isto é, quem paga mais do que recebe."

Eu coloco a seguinte questão: supondo que aqueles que são beneficiários do Estado possam fazer campanha política para que os eleitores votem em suas demandas, já que os eleitores atuais supoe-se que podem viver sem a tutela estatal e poderiam livremente votar para o Estado continuar dando assistência as desvalidos.

O sentimento de justiça, caso sejam as pessoas menos favorecidas que estejam recebendo benefícios de saúde e assistência social, pode prevalecer na hora dos eleitores votarem.

Se isto for possível, o desafio parece ser evitar que esta turma de recebedores de fundos do Estado não se transforme numa nova classe de sugadores tiranos.

Também pensei no plano da abstração, já que esta história de legitimar o Estado para explicitamente ser um canal de beneficio com recursos alheios é bem perigosa.

Mas fica aí a minha inquietação.

Abraço e parebéns pelo texto provocador!
Lucas

Joel Pinheiro disse...

Olá Lucas, e obrigado pelo comentário!

De fato, se as pessoas que votam quiserem manter auxílios e benefícios à classe dos que não votam, eles permanecerão.

Só não vejo como isso tornaria essa classe de beneficiados um grupo de tiranos. Afinal, os benefícios deles são resultado da escolha de pessoas que não eles. O máximo que eles podem fazer é usar da persuasão para manter seus benefícios, e nada mais. E isso é bem diferente da tirania.

O principal problema dessa proposta, a meu ver, e que se não for solucionado torna-a inaplicável, é como medir.

Calcular impostos diretos e transferências diretas é fácil. Mas e transferências entre pessoas (ganho renda do governo e dou para meus filhos; eles votam?)? E impostos indiretos sobre vendas e produtos, que são desiguais? E quem se beneficia de leis de controle da competição, regulamentações, etc?