sexta-feira, maio 16, 2008

Nossa Amiga Desigualdade Social

Os 10% mais ricos detêm 75% da riqueza nacional. Essa é a realidade da nossa “distribuição da riqueza” (em breve explico as aspas). Ou seja, há poucos ricos e muitos pobres. Ao mesmo tempo, os pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos. Ninguém deve gostar desse quadro social, pintado há séculos e nunca modificado. No entanto, parece-me que a discussão sobre desigualdade social (e tributação, que caminha junto), partindo de alguns erros conceituais, e seguindo por caminhos totalmente equivocados, chega a propostas desastrosas. Quem perde com isso é a sociedade toda; principalmente quem está longe daqueles poderosos 10%.

Para começar, um choque: a desigualdade social, em si, não é um problema. No mercado, ela apenas reflete as diferentes contribuições dos diversos participantes em satisfazer os desejos dos demais. Claro, no caso brasileiro, parte dela se explica por intervenções do governo; e aí sim é maléfica, pois alguns ganham mais do que produzem, e outros produzem mais do que ganham. Mas não nos iludamos: a desigualdade não se deve principalmente à ação do governo. O mercado realmente promove a desigualdade, na medida em que as contribuições são desiguais.

Pensa-se em produção e distribuição como realidades diferentes. Primeiro os bens são produzidos, e só depois repartidos entre a população. É nessa repartição que moraria a injustiça, pois muito é alocado a poucos. Nada mais distante da realidade. A distinção entre produção e distribuição é puramente conceitual. Na realidade do processo de mercado, produzir e ter são apenas dois jeitos de ver uma mesma coisa. Quem produz algo de maior valor, tem algo de maior valor. Não existe nenhuma “distribuição”. Por isso as aspas.

É essencial para nossa vida que seja assim. É por meio da diferença de renda que sabemos quais serviços são mais demandados pela sociedade. Se faltam pães, o salário dos padeiros sobe. Isso gera um incentivo para atrair mais padeiros. É por isso que temos pão quentinho de manhã cedo. Talvez o padeiro preferisse grafitar as paredes da cidade; mas se ele quiser ter quatro paredes para morar, é melhor oferecer algo de valor aos outros. Portanto, ao forno!

Não fosse pela desigualdade de renda, não haveria incentivo para se dedicar a atividades que satisfaçam melhor as demandas da sociedade. “Faltam eletricistas; só que eu gosto mesmo é de tocar violão em bar. Minha renda seria a mesma nos dois casos; mudar por quê?”. Mas o problema vai mais fundo: sem desigualdade de renda, nem sequer saberíamos quais atividades estão em falta e quais em excesso. Só sabemos isso porque podemos comparar as diferentes remunerações. Talvez as pessoas queiram mais e melhores instalações elétricas, ou talvez queiram ouvir mais músicas batidas do Djavan no bar da moda; como saber, se a conta de um é fixada no mesmo valor do couvert artístico do outro? A igualdade de renda levaria rapidamente ao caos produtivo.

Portanto, a desigualdade de renda (e de riqueza) é boa. É nossa aliada, nossa amiga, no combate à verdadeira vilã: a pobreza. Ainda assim, note-se: a pobreza que hoje nos choca seria riqueza 200 anos atrás. Daqui a 1000 anos, quem sabe, o padrão de vida do Abílio Diniz qualificará para o bolsa-família. Esse progresso é fruto única e exclusivamente da organização e da cooperação humanas por meio do processo de mercado. Tentar trapaceá-lo, procurar atalhos redistributivos para a riqueza geral, põe em risco o processo todo.

O que nos traz ao segundo ponto: o sistema tributário. Parte-se da premissa inquestionável que uma das funções do sistema tributário é promover a igualdade. Como se tirar mais dos ricos ajudasse os pobres; antes, os prejudica. Se os fazendeiros pagam mais imposto, os alimentos encarecem. Os pobres terão ainda mais dificuldade para comprar comida; e aumentamos os necessitados do bolsa-família, o que requererá mais impostos... Cobrar alíquotas maiores de quem tem renda mais alta é, efetivamente, punir a produtividade. É minar as próprias bases de qualquer desenvolvimento econômico possível no país.

A única função do sistema tributário deve ser arrecadar dinheiro para os gastos públicos da forma menos custosa à população. O bem-estar de um depende do bem-estar dos demais. Se punirmos os produtores, ou os poupadores, com impostos mais altos, é óbvio que teremos menos produtos e menos poupança.

Focar-se na desigualdade como um problema a ser corrigido pelo Estado é perder de vista o que realmente importa: a melhora na qualidade de vida das pessoas. Só com uma mudança radical de foco conseguiremos, quem sabe, formular medidas que ajudem nossa população a sair da pobreza. E quando isso acontecer, mesmo que 10% continuem a concentrar 75% da riqueza, estaremos todos muito melhor.

12 comentários:

Djalma Rocha disse...

O mercado na minha opinião não promove a desigualdade . Ela apenas reflete este problema como você mesmo demontrou depois .
Mais mesmo assim gostei do artigo .

Joel Pinheiro disse...

Obrigado, Djalma.

A questão é: seria um problema que as pessoas tenham capacidades diferentes e as utilizem de formas diferentes? A mim parece-me que não. Muito pelo contrário, essas diferenças (que se refletem em desigualdades de todos os tipos, inclusive sociais e econômicas) ajudam-nos a viver melhor e a tornar a existência humana mais rica e interessante.

Anônimo disse...

Joel, fiz um texto sobre o assunto no Ação Humana. Abraços.

Jether disse...
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Jether disse...
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Anônimo disse...

Talvez o que exista seja uma interpretação errada do termo "desiguladade social". Quando nos referimos à pobreza, acabamos tratando como desigualdade. Nesse aspecto, parece fazer sentido, já que são comparadas as pessoas dos 10% com as pessoas pobres. Então fica o equívoco, que não reflete a realidade referente ao termo "desigualdade", muito bem defendido no texto.

Guilherme Franco disse...

Creio que quando se questiona a desigualdade econômica, erroneamente chamada de social, aquilo a que mais se apela, aquilo que está no fundo da idéia, é que, por um lado para a maioria não há condições de liberdade (o sujeito se inserirá como conseguir, com o pouco de investimento que foi nele feito), mesmo assim, aquilo que se faz não é da ordem estrita da necessidade. Nossa sociedade há muito transcendeu o que produtivamente é necessário, pouco mais do que alimentação, saúde e higiene. Deste modo, grande parte do que nossa sociedade procura produzir são vantagens e conforto.
Não é problema intrinsecamente buscar o dinheiro. Talvez seja problema aquilo que fazemos para consegui-lo, exatamente porque questionamos pouco os efeitos coletivos do que estamos fazendo, para se importar muito com a sobrevivência (dentro de um sistema de organização irrisório) e com o benefício próprio (aquilo que alguns ingenuamente vão chamar de qualidade de vida – que está longe de ser conseguir comprar um carro ou uma tv). O verdadeiro problema é a dimensão esquecida do afeto humano...
Dizer que as pessoas acabam por produzir aquilo que os outros valorizam é uma grande verdade. Porém o que subjaz aí, não só como verdade mas também como valoroso altruísmo, é a idéia de que aquilo que os outros valorizam é realmente o melhor. Para além disso, o problema não é tanto de distribuição, mas de circulação, porque a camada mais rica se retroalimenta produtivamente excluindo a mais pobre. Isto é, o pobre não tem o que oferecer para o rico, porque, com razão, as coisas de melhor qualidade se dão ao luxo de serem mais caras, e o que o rico vai consumir é a qualidade. Desse modo, o rico vai a restaurantes ricos (porque caros), usa meios de transporte caros (porque a qualidade aumenta o custo), só fazendo assim o seu dinheiro circular por pessoas que possam proporcionar serviços de qualidade razoável. Embora eu concorde que a desigualdade seja, até certo ponto, benéfica, e, portanto, convém que seja, até determinado nível, mantida, há algo de enganoso no argumento apresentado: uma melhor renda não é o atrativo pelo qual um violonista deixaria de fazer o que gosta para ser eletricista (o que em si é uma idéia terrivelmente desumana)... se a renda fosse hoje em nossa sociedade um estímulo e não um instrumento de poder, as rendas mais altas não estariam com os trabalhos mais gratificantes e confortáveis, e sim com os mais degradantes e sacrificiosos. É muito mais importante ser um lixeiro que um jogador de futebol, no entanto, a sociedade premia um talento estéril em termos de organização social, enquanto castiga aquele de quem depende, sob a aparência de que está o ajudando (porque a pessoa que tem um trabalho penoso e de pouca renda realmente não o escolheu, mas simplesmente o aceitou porque era o melhor dentre suas possibilidades, então aos olhos da fria sociedade, cada um está fazendo sua parte com o mérito que merece). Se não houvesse uma instituição como o Estado para regular a circulação, trabalhos como o do lixeiro nunca sofreriam valorização, pois a maioria da sociedade continuaria à margem do sistema rico de produção e tendo então que aceitar qualquer condição que lhes ofereça um mínimo que para eles é quase um máximo.
Quando se fala em desigualdade econômica, não se está falando que todo mundo vai ter a mesma renda, apenas que um não ganhe 300 reais enquanto outro ganha 20 mil. Sabe, eu não acho seja interessante que o governo dê de graça as coisas, é realmente contraproducente. Ele deve dar na medida em que as pessoas satisfaçam o que se espera delas. Mais do que ninguém o Estado deve ser educador. É ridículo que um encarcerado não provenha, através do próprio trabalho, o seu sustento; que se incentive as pessoas a estar na escola mas não a escola, isto é, que ela melhore como instituição e comece a, no mínimo, ser funcional, proporcionar saber útil e aplicável no cotidiano. Mas para retomar meu principal argumento, penso que nos convém considerar a ética, para como indivíduos decidirmos a conveniência de nossos valores e comportamentos, e, enquanto coletividade ou Estado, regular isso de forma mais abrangente. É uma maravilha que em relações mercantis satisfaçamos os desejos do outro. Isso não implica, porém, que o desejo do outro deva ser respeitado tal qual é, e que seja impassível de questionamento. A democracia é a própria negociação dos desejos, e é vital para uma sociedade, para seus próprios fins de sobrevivência, que ela, além de propiciar tal negociação de desejos individuais, enquanto unidade face ao ambiente também defenda o ambiente como condição necessária à existência. Só considerando esse segundo aspecto é que teria legitimidade para lidar com questões como a dos inescrupulosos madeireiros, que não bastasse estarem chamando a si direitos que não convém nem a eles próprios, ainda atuam violentamente na repressão das forças que visam defender um patrimônio tão essencial, e ainda ilegalmente, incodizentes com a ordem social. Vide casos de assassinato de índios [http://www.cimi.org.br/?action=read&eid=274&id=2810&system=news],queimadas financiadas indiretamente pelo próprio governo [http://vejaonline.abril.com.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=1&pageCode=1269&textCode=90046], em terras que em alguns anos serão abandonadas devido à improdutividade causada pela corrupção do solo. Enquanto isso, pouco se percebe a maravilha que estamos perdendo [http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u404957.shtml]: espécies estão sendo perdidas, num prejuízo incalculável, dado que uma forma de vida, um modo de existência é algo único e inestimável que, uma vez perdido, é irrecuperável. Aqui vemos bem o quanto as coisas que realmente importam para uma vida digna, bonita, alegre e saudável são desprezadas por nós enquanto indivíduos ou sociedade, em todos aspectos, inclusive a renda. Existem outros modos de perceber o quanto uma coisa é importante, que não pelo quanto dinheiro ela rende. Inclusive, o valor monetário de um produto ou serviço é um dos menos importantes deles. Cabe a nós decidirmos o quanto cada coisa vale intimamente, e não pelo valor monetário que já vem determinado; inclusive bem cabe que redeterminemos tal valor mediante nossas considerações.
Creio que seria enriquecedor fazer filosofia ao mar, bem como fazer economia em um deserto... aí se mostrariam os verdadeiros valores que a segurança e abundância da terra mascaram com aparência de legitimidade.

Joel Pinheiro disse...

Oi Luciana! De fato, acho que muita gente usa o termo desigualdade para falar de pobreza, e isso gera uma confusão.

Mas há também a visão de que, de alguma forma, seria melhor se não houvesse desigualdade; que a desigualdade é injusta ou, ao menos, algo socialmente problemático.

Guilherme
Obrigado por seu comentário! Em breve o responderei.

Joel Pinheiro disse...

Guilherme, vamos por partes:

Em primeiro lugar, concordo que, não é só porque a sociedade como um todo valoriza algo, que esse algo deva ser valorizado. Às vezes mesmo a maioria das pessoas pode fazer juízos equivocados.
Mas note: o valor monetário de algo reflete o quanto as pessoas, de um modo geral, valorizam aquele bem. Não é nada além disso que determina o preço de algo.

Quanto à sua afirmação de que os pobres nada têm a oferecer aos ricos, ela é falsa. Quase todo ser humano é capaz de oferecer a força do próprio trabalho, que é um insumo necessário a todos os ramos produtivos e um dos recursos mais escassos.

Se os ricos só trocassem entre si, a não ser que houvesse super-homens entre eles, empobreceriam rapidamente. Afinal, um punhado de ricos não consegue, sozinho, produzir casas e helicópteros. Esses bens só são produzidos porque a divisão do trabalho se estende por um vasto contingente populacional, que inclui ricos e pobres.

Quanto aos salários: o que determina um salário é exatamente o valor daquela função. Mas veja bem: o valor marginal, ou seja, o valor adicionado por mais uma pessoa que queira trabalhar com aquilo.
É verdade: considerado em absoluto, a função lixeiro valeria mais para a maioria das pessoas do que a função craque da seleção. O problema é que existem muitos lixeiros, e muitas pessoas com a capacidade de ser lixeiros; quanto a craques, existem alguns poucos. Se uma pessoa deixasse de ser lixeira, nem perceberíamos. Se um craque desaparecer, o entretenimento de muitos fãs de futebol sairá prejudicado.

O mesmo ocorre com bens. Água, em si mesmo, vale mais do que diamante para nós. Mas temos tanta água ao nosso redor, que um litro da água, se fosse perdido, não faria grande falta. Já no deserto, onde falta água, o litro valeria mais do que o diamante. Pois os desejos satisfeitos por um litro d'água lá são mais importantes do que os desejos satisfeitos por um diamante.

Outro ponto: é claro que a renda esperada é sim um grande incentivo na hora de escolher a profissão. E pode ter certeza que tem muito técnico profissional por aí que preferiria se dedicar ao violão, se a renda fosse boa.

Ainda bem que vivemos num livre mercado, onde cada um é remunerado conforme satisfaça os desejos dos outros.

Concordo com os perigos do desmatamento. Acho, contudo, que a solução desse problema passa por mais mercado e propriedade privada, e não por mais regulamentação estatal.

Em suma, estamos de acordo no que diz respeito aos valores; não é só porque o preço alto (ou seja, que as pessoas como um todo valorizam algo - é importante nunca perder essa relação!) que algo seja realmente valioso.
Mas no seu entendimento de como o mercado funciona persistem, na minha opinião, alguns erros que viciam seus juízos finais.

Guilherme Franco disse...

Que um cavalo aceite ser cavalgado, isso não significa que se esteja numa democracia. Os pobres têm o que oferecer aos ricos, havia sido hiperbólico: o seu suor barato. Eles se encontram num ciclo vicioso onde trabalham mais e mais pesado e recebem menos. Neste sentido é que disse que o dinheiro não circulava: uma empregada doméstica ganha um salário mínimo, mas para comprar um mísero refrigerante, que nem é tão caro, já vai 0.5% da sua renda. Muitos não arrendam nem isso que chamam de mínimo.

Ora, que um negócio seja interessante para as duas partes pouco quer dizer! Água em um deserto para um sedento é essencial à sobrevivência, porém pode lhe custar a própria vida! O que obrigaria um homem rico, para quem não é difícil conseguir água potável, a não pedir a própria vida deste que a está perdendo, mesmo que sua água lhe custe pouco? Assim seria se o valor de algo é determinado pelo mercado; abuso de poder para quem pode, porque pode e lhe faz bem.

Não falei em craques... qualquer sarrafeiro ganha milhares de reais por mês. A questão com os craques é que ganham centenas de milhares de reais. Nem sabem o que fazer com o dinheiro - logo, fazem qualquer coisa. Nada poderia ser mais despropositado (o que em termos sociais significa desorganização). Aqui entra o problema geral dos seres humanos: somos um montinho de carne narcisista em busca de prazer fácil e conforto. Não há motivo plausível para valorizarmos mais o futebol do que o nosso próprio excesso (e, neste sentido, desperdício) como produtores-consumidores. Futebol é apenas entretenimento, não é atividade que traga qualidade de vida para a sociedade. Não estou dizendo que não podemos nos divertir, apenas que à diversão deve ser dado um contexto adequadamente definido. Isso, é claro, se quisermos deixar de ser idiotas, ainda que idolatrados ou reconhecidos em nossa idiotia. Vale reiterar que não estou falando mal de jogadores ou de torcedores, apenas que convém que o valor que damos às coisas sejam determinado pelo benefício com que elas nos retornam, tanto individualmente quanto coletivamente. É neste sentido que o valor de algo, sendo determinado pela quantidade disponível que há desse algo, desvirtua o seu próprio valor, que não vem, em primeira instância, da sua quantidade, mas da sua própria utilidade. É como você mesmo diz: o valor de um bem se encontra intrinsecamente na relação entre este bem e os seres que somos. Reinventar este valor pode trazer graves prejuízos para o ser, tal como ele se concebe, como de fato tem trazido. A lei da oferta e da procura pode exercer seu diferencial, mas não convém que seja o principal critério ou mesmo único na definição do valor de um bem. Água é mais importante que diamantes, lá ou aqui.

Outro ponto: para você cada um é remunerado de acordo com a maneira pela qual satisfaz os desejos dos outros. Mas o que é um desejo? Por que haveria ele de ser tão respeitado? Nada me garante que seja bom satisfazer um desejo. Existem tantos, e tão descuidados! Os próprios desejos, isso nos convém, sejam educados; a menos que queiramos que eles signifiquem quase nada, que sejam apenas caprichos, como de uma criança, birrenta e apaixonada.
Onde este capitalismo peca, é sobretudo ao privatizar bens e chamá-los de propriedades. É essa operação que produz a riqueza, ao gerar, por outro lado, a pobreza e a exploração. Ora, o que é privar? O que significa privado? Significa excluído do uso dos outros. Primeiro você pega algo e diz que é de alguém, que outro não pode usar (conhecimento, terra, qualquer coisa). Depois você já tem alguém rico e alguém pobre, porque um possui algo e outro não. Então só basta que o que possui ofereça um pouco do que tem ao que tinha quase nada, estamos prontos: você tem alguém que colhe o seu feijão para você. Você fica mais rico e mantém o outro nesta situação onde pode tirar proveito. Nem importa muito como um e outro chegou nesta situação diante do fato de que, sem intervenção, a menos que o destino seja muito displicentemente generoso, a situação continuará assim. Você ainda quer deixar o bem-estar de todos na mão de alguns? Todos os problemas ecológicos que nosso planeta tem enfrentado são uma questão global, e a responsabilidade por ele deve cair sobre todos nós, e não em meia dúzia de empresas, que, por serem poucas, deterão o poder e poderão mais facilmente fazer o que bem entendem. Para mim, é muita ingenuidade confiar no egocentrismo (satisfaz-se os desejos do outro na medida em que se quer que os próprios desejos sejam satisfeitos - princípio da sedução), ou nesse disfarce de altruísmo, nesse "olha, deixa que eu cuido pra você; olha, estou satisfazendo o seu desejo" (sendo um extremo agravante que o próprio desejo já foi expropriado, e é apenas mais uma engrenagem no fluxo perfeito e ignorante da gorda máquina de fabricar gordura queimando ossos, músculos e toda espécie de tecidos). Ninguém é mais perigoso que aquele que satisfaz nossos desejos. Bem o sabem os apaixonados. É aquele que mais pode nos trair. Sem contar que é aquele que mais tem o poder de nos controlar, de determinar nosso comportamento.

Talvez agora possamos conversar sobre os erros que vês no meu entendimento. Não sei quais são, achava que eram diferenças de perspectiva. Mas juízos finais realmente não tenho, eu sou um homem de princípios. Um bobo, na linguagem vulgar.

Que se satisfaça o desejo do outro!, quase invariavelmente o desejo é o desejo do outro (labirinto do labirinto)- e Lacan escreveu outro com maisúcula porque não falava do próximo, mas do grande outro, do big brother, daquele que detém o poder. Porém, quem, hoje em dia, detém o poder? Somos todos carrascos e vítimas das próprias paixões que com tanto ardor cultivamos. Somos quase ninguém, fazendo o necessário para manter uma existência medíocre e autopiedosa, autocomiserativa com seus pequenos prazeres pequeno-burgueses (que maior pequeno prazer pequeno-burguês autocomiserativo do que consumir refrigerante depois do árduo dia laboral? Ou alegria a entorpecentes goles etílicos. Diga-me o que compras, e eu lhe direi para quem vendeu seu desejo. Somos castas sobre castas, cada qual trabalhando em prol da sua superior; à medida em que é mais superior, mais vive ao seu bel-prazer: e pouco poderia ser tão pernicioso socialmente quanto esse despreocupado modelo de vida perpetrado pela casta dominante. De um jeito ou de outro, todas as castas são párias). O destino, que é um cara com pequeno senso de humor, nos reserva essa finíssima ironia: mal conseguimos esbofetear o próximo com a luva da verdade ou da utilidade... não lhe sabemos o rosto, ignoramos o nome, somos todos impessoais na burocracia de sobreviver aos inimigos, cada vez mais próximos, tão próximos, se é que se pode dizer que alguém é próximo daquele que não se reconhece no espelho... Seremos tolos, tão tolos quanto Alice, se dissermos que o invisível não existe...

Jether disse...

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