domingo, outubro 07, 2007

Tropa de Elite - Resenha

Acabei de ver Tropa de Elite. Como a Internet ferve com comentários sobre ele, aqui vai minha resenha.

Cinematograficamente, deixa a desejar. Depende excessivamente da narração em off para explicar a história e explicitar os pontos que as cenas deveriam estabelecer por si mesmas (um vício de todo o cinema nacional, aliás). Outro ponto fraco são os diversos elementos dramáticos extrínsecos à trama adicionados só para se obter um efeito sentimental, sem a articulação necessária com o resto da história (o bebê a nascer, o policial corrupto que serve de alívio cômico, etc). No quesito propriamente estético, outras falhas: diversas cenas são marcadas por um artificialismo claro; chamo atenção à aula de filosofia na faculdade (as opiniões e material ministrado estão corretas; mas quem está na faculdade sabe que aula de filosofia não tem aquela naturalidade e espontaneidade). O jeito de filmar e de contar a história não têm nenhuma inovação, e não se destacam por nenhum feito estético. Como filme, não há dúvidas de que Cidade de Deus foi superior.

No entanto, o conjunto é competente, e se não tem grandes méritos, também não é um obstáculo ao conteúdo, que é, no final das contas, o motivo da sua notoriedade. A grande sacada do filme é mudar o ponto de vista: Cidade de Deus tomava o ponto de vista da favela e seus moradores, com os quais o espectador logo se acostuma e identifica; o policial é sempre um personagem externo e distante, que entra na narrativa apenas quando entra na favela, e assim que deixa o morro deixa também o filme. Já em Tropa de Elite, o foco narrativo está nos policiais; é a favela que constitui o ambiente hostil e caótico (um verdadeiro campo de guerra) no qual eles e nós, que os acompanhamos, temos que entrar inúmeras vezes e do qual, assim que saímos, sentimo-nos aliviados.

Dessa mudança de ponto de vista decorre uma mudança de perspectiva moral. Se em Cidade de Deus e similares deparamo-nos com uma justificativa dos traficantes, que são no fundo pessoas que, sem qualquer perspectiva de vida, viram-se forçados a seguir por um caminho desastroso, agora encontramos uma justificativa da brutalidade policial: ou os poucos policiais bons torturam e executam, desprezando a lei positiva e convenções morais, ou a luta contra o tráfico será inútil.

A corrupção dentro da PM é onipresente; os policiais, mal-treinados e mal pagos, fazem acordos com traficantes para viver em paz e lucrar algo. Se um policial honesto tenta, pelos meios legítimos e institucionais, fazer o bem, é barrado pelo descaso da burocracia interna, toda ela corrompida. Se burla essas regras e frustra os esquemas de seus colegas, é logo eliminado. Sua única opção é integrar-se à tropa de elite, o BOPE, que une treinamento intensivo de guerra e zelo total em combater os traficantes.

Os policiais do BOPE têm duas opções: torturar e matar ou deixar o tráfico impune. Eles fazem sua escolha. Por mais que respeite os policiais e entenda sua situação, não posso compactuar com ações que os tornam pouco diferentes daqueles que eles combatem.

Muitos dos entusiastas do filme gostam de ver a execução de traficantes na tela. Dada a impunidade reinante e, pior, a defesa da criminalidade pelos intelectuais e ricos “conscientizados” em geral (cuja ridicularização é o ponto alto do filme), simpatizo com esse sentimento. Mas traficante também é ser humano; e a frieza e sadismo com que o BOPE tortura e mata são injustificados. Não é que os traficantes não mereçam morrer; é justo que muitos deles morram, por seus crimes hediondos; mas não é justo que os policiais os matem (fora de combate, claro). O próprio filme reconhece que há algo de errado; quando uma mãe, que perdeu o único filho, “fogueteiro” do tráfico, vem exigir ao capitão Nascimento que ele lhe entregue o corpo para que possa enterrá-lo, lembramo-nos que traficante também tem mãe, e que, por pior que tenha sido, ainda conserva sua dignidade humana. Comemoramos sua morte porque a sociedade agora está mais segura, e a justiça foi feita; mas, acima disso, lamentamo-la, pois é um homem que foi muito menos do que poderia ter sido, e de certa forma falhamos em ajudá-lo.

Ao mesmo tempo, os próprios policiais do BOPE transformam-se em pessoas muito piores do que eram. Matias, que estudava para se tornar advogado, acaba selando seu destino com uma execução sumária, destituído de todos os traços de caráter que antes faziam dele um ótimo ser humano. Já não é mais o amor à justiça que o move, mas o simples ódio aos injustos, dos quais ele, sem perceber, passa a fazer parte. Já o capitão Nascimento, incapaz de conciliar a vida na tropa com a vida familiar, vê sua própria saúde mental e sua família desmoronarem. O filme reconhece todas essas realidades decorrentes da vida no BOPE, mas ainda assim aceita-as como o preço pago para se fazer justiça.

E cabe o juízo: os meios empregados pelos policiais do BOPE atingem seus objetivos? A sociedade fica mais segura com seus ataques? Parece que não. Um traficante a menos não significa nada. Enquanto existir a demanda pelas drogas, o tráfico vai existir. E enquanto ele for proibido, vão existir as gangues (assim como existia a máfia americana com as bebidas). Não tenho nada além de desprezo por quem procura justificar o banditismo ou ainda demonizar a polícia, baseando-se em lamentáveis filosofias da moda (Nietzsche, Deleuze, Foucault eram os temas das aulas na faculdade de ricos no filme – tristes bases para se formar opiniões). Mas abdicar de toda a preocupação ética e aderir a um pragmatismo desumano em busca de resultados também não é a saída. Não são as condições sociais que obrigam os homens a cometer crimes; criminoso não é coitadinho. Mas nem por isso deixa de ser gente.

18 comentários:

Fábio Vanzo disse...

Vi o link num post seu na comuna do (eca!) OdeC (sim, sou um "hater"). Mas concordo 90% com seu post – gosto de Nietzsche e Foucault não li Deleuze –, inclusive defendi posições semelhantes lá na comunidade oficial (a de vocês é a para-oficial hehehe). Abrazzos!

Anônimo disse...

Joel, aquilo nem é aula de filosofia.

Joel Pinheiro disse...

Era sim, Adriano, no melhor estilo FFLCHiano dos seminários. A única diferença é que os alunos eram todos gente bonita e simpática, interessados e sem vergonha de dar seus comentários e opiniões.

Era, digamos, a soma da FFLCH com o Colégio da "Malhação".

Anônimo disse...

Acho que v. não prestou muita atenção no filme, já que o tempo todo estava claro que era aula do curso de direito.

Ficou agarrando a pobre menininha ao lado, né? Só porque ela ficou assustadinha... se aproveitou, lamentável. d:

Joel Pinheiro disse...

Curso de Direito, aula de Filosofia.

Dionísio disse...

Nietzsche justificando bandidagem?

Anônimo disse...

Nietzsche, não, Foucault — «Vigiar e Punir».

Ainda duvido que aquilo fosse aula de filosofia, Joel; acho mesmo que era de sociologia. Mesmo porque aulas de sociologia são daquele jeito.

Joel Pinheiro disse...

Ok, ok; sociologia.

Anônimo disse...

A aula era de sociologia. Fica bem claro quando o Matias entra na sala e pergunta "É aqui a aula de sociologia?"...

Anônimo disse...

Até concordo com o post, o justo acaba virando injusto por sede de justiça.
Mas na sociedade atual anda muito difícil separar o joio do trigo.

Joel Pinheiro disse...

Hah, obrigado pela observação da aula, Leandro; ela fecha a discussão.

A não ser que os próprios alunos, tão drogados que estavam, não soubessem o nome correto de sua própria aula....

Por mais difícil que seja dizer quem é bom e quem é mau, quem é justo e injusto, acho que podemos todos concordar que certos comportamentos são maus e não devem ser aceitos.
Entrar na favela "para meter bala", por mais que tenha uma justficativa por trás, é errado!

Anônimo disse...

Joel, em vigiar e punir Foucault não justifica o bantismo ou demoniza a polícia. Ele simplesmente analisa as instituições de repressão e as penas. O que os alunos fazem na aula é expor o ponto de vista deles.
Estava muito bom até vc chamar de lamentáveis filosofias da moda. E eu nem sou pós moderna hein!

Unknown disse...

Oi Joelzinho, sou eu Gaby, amei sua resenha.

Anônimo disse...

vc força a barra cara... impressionante o seu liberalismo para o tema: "Enquanto existir a demanda pelas drogas, o tráfico vai existir."

são, tb, fraquinhas as suas críticas. Coma mais feijão

Anônimo disse...

Haha, que jeca esse aí de cima. É óbvio que "Enquanto existir a demanda pelas drogas, o tráfico vai existir." Ninguém trafica droga pra enfiar em partes baixas, trafica pra vender. Se não tiver pra quem vender, não trafica.

Sei disso desde o jardim de infância.

Joel Pinheiro disse...

Anônimo,

Você discorda que o tráfico de drogas só é lucrativo porque há consumidores?

Suponho que você deve passar longe das drogas, e nada queira com elas. Sugiro, então, que usemos um exemplo mais próximo do seu gosto: o feijão.

Você, fortinho como é, come muito feijão! Há dentro de você um apetite gigantesco, sempre em busca de satisfação.

Ora, seu desejo de comer feijão é tal que você estaria disposto a dar coisas de valor em troca de um prato de feijões.

E você não é o único. Muitas outras pessoas gostariam de comer feijão, dentre as quais até mesmo eu estou incluído (embora não com a sua voracidade!).

Ora, isso cria uma ótima oportunidade para muitas pessoas: se elas produzirem feijão, poderão oferecer ao resto da população e ganhar, em troca, coisas que satisfaçam os seus próprios desejos.

Assim, você trabalha e ganha seu salário. Oferece a força do seu braço e recebe, em troca, o dinheiro, e a maior parte deste vai para a compra do feijão. Feijão esse vendido por um sujeito que, tendo produzido o que agora foi para sua pança, ficou com o dinheiro. Esse produtor agora pode gastar esse dinheiro com o que julgar melhor.

Você vê como a sua demanda, ou seja, seus desejos, por feijão, criam um incentivo para que o feijão seja produzido?

Agora termine seu prato e, durante a longa digestão, sugiro que reconstrua o mesmo raciocínio com drogas no lugar do feijão. Dessa forma, produzirá não apenas os desagradáveis subprodutos habituais do intestino, como também adquirirá um entendimento mais profundo de uma pequena parte do funcionamento da sociedade humana.

Se surgirem dúvidas ou até contra-argumentos ao que eu disse, por favor, traga-os à esfera pública. Quanto aos demais produtos que eventualmente apareçam nesse processo, restrinja-os à privada.

Unknown disse...

O Anônimo ja cagou sendo Anônimo, na sociedade existe o tipo covarde e o tipo que peita, na internet existe o tipo que fica a baixo do covarde, o Anônimo.
Ainda mais portando essa opinião ai fraca.

a resenha esta muito boa, a bianca que me indicou, achei genial, parabéns, achei legal vc partir da edição do filme para a realidade, eu no meu caso só falaria do filme ( minha especialidade ) mas adorei, esta de parabéns.

e acho que esta havendo uma espécie de superestimação nesse filme, muitas pessoas metiam o pau na policia antes, o bope nem era de conhecimento de alguns, hoje em dia o povo ja muda a idéia completamente, estão atacando maconheiros e todo mundo que não se sente satisfeito com a segurança oferecida pela policia, sera possível, 1 hora e alguns minutos de película ja fazem alguns conceitos que pareciam tão concretos se transformarem totalmente? estranho.

ps: metade da minha familia ta na policia e são tudo trabalhadores honestos, conheço um por um, não concordo com algumas generalizações feitas contra a policia, mas também não sou alienado, sei que a corporação esta precisando de um monitoramento melhor.

Joffe disse...

"Fascista, não!"

Está certo. O Padilha e o Wagner Moura têm razão de estar chateados com essa história de serem chamados de fascistas. Isso foi uma grande injustiça. O filme não é fascista. De jeito nenhum. Só quem ignora completamente o que foi o fascismo poderia fazer tal confusão.

O fascismo significa, antes de tudo, uma contra-ofensiva militar das classes dominantes contra os trabalhadores e seus aliados: as nacionalidades, etnias e culturas oprimidas.

A ascensão de Mussolini, Hitler ou Franco significava simplesmente uma reviravolta tática dos setores desfavorecidos do imperialismo europeu visando quebrar a coluna vertebral do proletariado de seus países, preparando assim circunstâncias favoráveis para a deflagração da Segunda Guerra Mundial.

Hitler necessitava subjugar a classe operária alemã, expurgar a tradição socialista do movimento operário mais bem organizado do mundo, difundir o ódio racial, preconceitos étnicos, disseminar o terror, promover o holocausto…

Para quê? Para que a indústria alemã pudesse escoar suas mercadorias para o mundo semicolonial e para os mercados europeus, dominados pelos imperialismos "democráticos": EUA,
Inglaterra e França.

Para que a técnica e a cultura mais desenvolvidas da Europa pudessem encontrar expressão no mundo dominado segundo a partilha feita na Primeira Guerra Mundial, Hitler necessitou converter os trabalhadores alemães em uma máquina de guerra.

A dominação econômica dos mercados consumidores e das fontes de matéria-prima "alheios"
requeria sua prévia dominação militar. Para isso, era preciso convencer a nação alemã a entrar numa guerra infernal, a sacrificar-se de corpo e alma numa guerra insana, a aceitar sua completa desumanização, a crer em sua superioridade racial, ou em qualquer outro tipo de superioridade (a ideologia racial foi apenas uma variante). Não foi fácil. Custou dez anos de esforços estatais intensivos, propaganda, terror, persuasão. Custou a reintrodução do trabalho escravo e o extermínio de milhões de seres humanos em campos de concentração.

Isso era o fascismo, na sua forma mais decidida e resoluta: o nazismo.

Quando as circunstâncias tornaram-se favoráveis, os capitais bancários e industriais alemães decidiram afogar a Europa no sangue das suas classes trabalhadoras. E conseguiram. E ganharam muito dinheiro com isso, sem dúvida. A Wolkswagen, BMW, Siemens, Basf, Bayer, Bosh, entre outras, testemunham.

Isso era o fascismo.

Coitado do Padilha.

É possível que ele tenha alguma coisa a ver com essa história? Claro que não!

Mesmo o fascismo terceiro-mundista, caricatura militar e econômica, naturalmente, do europeu, não poderia ser associado com a temática abordada em "Tropa de Elite". As ditaduras militares latino-americanas visavam frear a onda de revoluções de libertação nacional que abalou o mundo semicolonial do pós-Segunda Guerra, ao mesmo tempo que ofereciam resistência ao ascenso continental urbano favorecido pelo triunfo da revolução socialista em Cuba. É verdade que o BOPE foi instituído pela ditadura. Também é verdade que, naquela época, ele não tinha nada a ver com o suposto "combate ao narcotráfico". Suas funções eram muito menos "nobres". Mas, atualmente, o BOPE tem pouca coisa a ver com os "porões da ditadura".

O filme não é fascista. Tampouco é justo dizer que faça apologia da tortura. Ele simplesmente mostra que a tortura existe, e que ela é sistematicamente usada pelas forças de coerção estatais, isto é, a tortura continua sendo um método sistemático adotado pelas forças policiais no Brasil. Outra coisa que o filme mostra é que, no Brasil, a pena de morte existe. Caveira! Morreu. Já eras. Execução sumária. Tiro na cara. Sem julgamento, sem direitos, sem nada. Pena de morte. Isso existe no Brasil. E foi isso que o filme do Padilha mostrou. No Brasil, a pena de morte e a tortura são métodos sistemáticos e preferenciais usados pelas forças de repressão do Estado.

Mas o Padilha não faz apologia da tortura? Claro que não. O Padilha faz apologia da justiça, isso sim.

Qual a razão do sucesso de "Tropa de Elite"? Muito simples: as pessoas ficam felizes por ver um pouco de justiça, mesmo que seja falsamente retratada. O Capitão Nascimento, do modo como foi retratado, é um justo. E os brasileiros são justos. Os brasileiros adoraram o Capitão Nascimento. O Capitão Nascimento faz justiça num país sem justiça, onde os dirigentes da nação são porcos corruptos, onde todas as instituições do Estado estão podres e corrompidas.

O Capitão Nascimento mata e tortura. Mas, aos olhos do povo sofrido, acuado pelas privações, pela fome, pelos indizíveis sofrimentos, isso é justiça. Matar vagabundo, matar traficante. Caveira! Pega ele, Capitão Nascimento!

O trabalhador brasileiro trabalha 44 horas semanais em penosas condições. Ganha salário mínimo. O filho é drogado. A esposa, doméstica. A filha, desempregada. O trabalhador brasileiro sofre. Então, vem o Capitão Nascimento e diz: "A polícia é corrupta. A polícia é sócia do narcotráfico. Não tem solução. Tem que matar. Caveira!"

E o trabalhador brasileiro fica imensamente comovido! Porque, além de tudo, o Capitão Nascimento toma água num copinho americano. E a mulher dele esquenta água para o café numa humilde panelinha. O trabalhador brasileiro tem pena do Capitão Nascimento, porque o Capitão Nascimento também sofre. Ele também é explorado e humilhado no serviço! Ele também passa privações, sofrimentos, angústias. O Capitão Nascimento tem até problema de família, igual ao trabalhador brasileiro!

Aos olhos do povo, o suposto batalhão incorruptível de justiceiros humildes e bem intencionados representou um alívio. Viram? Existem pessoas justas nesse país. Existem pessoas como nós, que fazem das tripas coração. Que dão o sangue e o suor num trabalho honesto. Que são justas. O Capitão Nascimento é um justo, um sofredor. Um brasileiro. Por isso nós gostamos dele. Pega ele, Capitão Nascimento! Pega ele!

Essa é a receita do sucesso. Além, é claro, do preço: só custou R$ 5,00. Para a maioria, oportunidade única de ver um filme assim, em primeira mão, ou, se preferirmos, de mão em mão.

Não se trata de fascismo, de maneira alguma.

Mas de um falso retrato da justiça, encomendado por um Estado corrupto, podre, incapaz.

O Padilha fez o que a Secretaria de Segurança Pública do Rio e a Rede Globo jamais fariam: criou a ilusão de justiça, criou a ilusão de honestidade.

Agora, o povo pobre, humilde e espoliado das favelas do Rio será vítima do terror, dos bárbaros assassinatos, das balas de fuzil perdidas, das torturas, das humilhações; porém, na TV, no Jornal Nacional, os assassinos torturadores serão reverenciados! A opinião pública será favorável ao terror!

Quando o Caveirão, o blindado assassino do BOPE, entrar nas favelas atirando nos miseráveis, nos desvalidos, atirando nos herdeiros da escravidão, a classe média gritará "Caveira!" em seus lares confortáveis.

Além disso, o Estado não tem mais nada a ver com o narcotráfico. Não são os juízes, promotores, deputados, senadores, prefeitos, governadores, delegados os responsáveis pela proliferação do narcotráfico. O Estado não é mais cúmplice da indústria das drogas. A partir de agora, os cúmplices do narcotráfico são… os filhinhos de papai da classe média, que fumam
maconha e cheiram cocaína! Bate neles, Capitão Nascimento! Surra eles! Eles financiam o tráfico! As multinacionais, os grandes bancos, os acionistas das grandes indústrias, os sócios da "multinacional do pó" não têm nada a ver com o tráfico! A culpa é dos maconheiros! Pega ele! Caveira nele! Caveira nele, Capitão Nascimento!

Quando, finalmente, as armas do BOPE forem apontadas para a cabeça do trabalhador brasileiro, acuado num bequinho da favela, não adiantará clamar por piedade. "Piedade, Capitão Nascimento! Não mata, por favor, tenho filhos pequenos, sou trabalhador, honesto.
Sou preto porque nasci preto, sou pobre porque nasci pobre! Mata, não, Capitão Nascimento! Mata, não!"

Não adiantará.

O Capitão Nascimento é apenas uma marionete numa Tropa da Elite. A Elite mata. A Elite quer matar. A Elite não gosta de "preto". A Elite não gosta de pobre. Pouco importa que sejam trabalhadores ou traficantes. Pouco importa. A Elite quer gozar o seu Paraíso Tropical. A Elite cansou de ser açoitada nos semáforos. A Elite não quer mais ser ameaçada por assaltantes por causa de relógios. A Elite cansou de levar bala na cabeça em seus veículos blindados. A Elite está cansada e horrorizada com a proliferação da miséria e da violência.

Olho, trabalhador brasileiro!

A Tropa da Elite vem aí. E vai pegar você.

Aí vem tortura e pena de morte.

Olho, trabalhador brasileiro!

O Capitão Nascimento não existe.

Na vida real, eles vão matar você, não o traficante rico.

Olho, trabalhador brasileiro!

***

José Luís dos Santos
São Paulo, outubro de 2007

PS.: José Luís dos Santos é jornalista desempregado.