sábado, maio 05, 2012

Caderno de Tradução


Excerto traduzido da Summa Sambologiae de S. Francisco de Holanda, questão 08, artigo 13 [Codex Budapestensis].



13. Pergunta-se:
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela; será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela?

1ª Objeção: E parece que é o chocalho que mexe com ela. Conforme o Terceiro Concílio da Carrapixa [cânone 12], “bate forte o tambor, eu quero é tique-tique-tique-tique-tá”. Tique-tá diz respeito ao remelexo do corpo, como fica claro adiante: “É nessa dança que meu boi balança”. Conforme a glosa, o boi significa o corpo humano, pois o homem, no que ele tem de corpóreo, partilha da mesma natureza das criaturas não-racionais. Ora, o tambor e o chocalho pertencem ao mesmo gênero, i.e., a percussão, diferindo apenas na espécie. Portanto, da mesma forma que é devido ao tambor que o boi balança, é o chocalho que mexe com a morena de Angola.

2ª Objeção: Toda dança é determinada por um objeto que a especifica e age sobre o dançarino como um motor sobre o movido, conforme diz Frei Luís de Lavavila [De Clunibus 1,1] “Conheci uma menina que veio do Sul; pra dançar o Tchan e dança do Tchu-Tchu. Deu em cima deu embaixo na dança do Tchaco, e na garrafinha deu uma raladinha.” Ora, a Angola está localizada na parte Sul do Globo, na qual predomina o elemento quente e úmido, que debilita a potência geradora do sêmen, de modo que os homens lá gerados são demasiadamente carnais. O carnal é aquele em que preponderam os apetites, e não a razão. E é próprio dos apetites serem movidos, e não moverem. Logo, a dança da morena de Angola é determinada por um objeto, i. e., o chocalho, que a mexe segundo diversos modos, i.e., o Tchan, o Tchaco e o Tchu-Tchu.

3ª Objeção: Segundo Cajetanus em De Potestas 2,1: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval”. Exercer o poder é causar o movimento a outro, o que é próprio do homem qua animal racional. o carnaval é o domínio da carne sobre o intelecto. E é próprio da carne, assim como de todo corpo, ser movida. Portanto, dos entes listados, apenas os homens movem e os outros são movidos. Ora, a morena de Angola é mulher e é negra. Logo, é duplamente certo que é o chocalho que mexe com ela.

4ª objeção: O coração é o princípio material e eficiente do movimento do ser animado. E o coração é significado pelo tambor, conforme José Miguel de Polônia: “Meu coração bateu tambor aflito, tambor aflito e tonto de bater” [De Nomini Angelorum, 2]. Conforme dito acima, tambor e chocalho pertencem ao mesmo gênero; logo, chocalho e coração pertencem ao mesmo gênero. Ora, a morena de Angola é um ente animado. Logo, o princípio do seu movimento é o chocalho.

Em contrário: Diz o Letrista em De Siti Fameque: “A gente não quer só comida; a gente quer comida, diversão, ballet”. Comida e diversão denominam gêneros; logo, conclui-se que “ballet” também denomine um gênero, i. e., a dança. O Letrista menciona apenas a espécie ballet por ser a espécie mais perfeita do gênero, e portanto inclui todas as outras. “A gente quer” diz respeito ao ato da vontade humana. Assim, o ato da vontade precede a dança. Ora, o chocalho é chacoalhado pela dança. Portanto é a morena de Angola que, rebolando, mexe o chocalho.

Respondo: A mexeção pode se dar de duas maneiras. Diretamente quando um corpo ativo move a outro que é passivo, e nesse caso é evidente que é a morena de Angola que mexe o chocalho, pelo ato de sua vontade de remexer o corpo, que por sua vez mexe o chocalho, que é material e passivo, e portanto não inicia movimento. Indiretamente, no entanto, um corpo menor e passivo, ou mesmo uma espécie sensível, pode mover um corpo maior e ativo. Assim devem ser entendidas as palavras do Pensador [Frangit Cap. 11] ao relatar a atração exercida pela festa da música tupiniquim, que tá rolando aqui na rua Antônio Carlos Jobim. Do mesmo modo, poderes ocultos de certos sons imprimem sua forma ao intelecto passivo, causando o movimento do corpo, especialmente dos membros inferiores e do baixo ventre. Logo, o chocalho, cuja operação natural é regida pelo corpo celeste, pode mexer, indiretamente, com a morena de Angola.

Resposta à 1ª objeção: o Concílio se referia a tais efeitos ocultos do som sobre o intelecto aludidos na resposta.

Resposta à 2ª objeção: Ainda que haja tal efeito sobre o sêmen, ele não é tal que impeça a operação da potência intelectiva do homem. E portanto também a morena de Angola é capaz de iniciar, por um ato da vontade, seu rebolado, e com ele mexer o chocalho. Ocorre que certas pessoas, devido a seus vícios, são como que escravos das paixões. Assim, a menina que veio do Sul, ao ver a boca da garrafa, não agüenta e vai ralar. Nesse sentido, concede-se que o chocalho mexa com a morena de Angola, conforme dissemos, de forma indireta e secundária. Isso basta para a terceira objeção.

Resposta à 4ª objeção: Nem a morena de Angola, nem a menina que veio do Sul, nem com todos os chocalhos do mundo, nem com todos os tambores, e nem com a garrafinha seriam capazes de remexer ao som de um sambinha do Wisnik. [Nota do tradutor: na seção anterior, ainda não traduzida, Francisco de Holanda apresentara as quatro vias para a existência do Motor Imovente, que são, sinteticamente: o DNA caucasiano, o fetiche da brasilidade, o intelectualismo uspiano e a Vila Madalena.]

quarta-feira, junho 29, 2011

As Moralistas da Slutwalk

Se passeio na Cracolândia à noite com um relógio de ouro à mostra falando no meu iPhone 5, há uma boa probabilidade de ser roubado. Se eu for roubado, a culpa é do assaltante, e não minha. Contudo, quem negará que a minha conduta aumentou a probabilidade de um roubo acontecer? Só alguém cego de ideologia.

Cego como as partidárias da slut walk (e alguns partidários, se bem que o apoio desses costuma ser faca de dois gumes: de um lado, o direito das mulheres; do outro, ver gatinhas com pouca roupa), incapazes de fazer essa simples distinção: uma coisa é ser moralmente culpado de algo; outra é aumentar ou diminuir a probabilidade que esse algo aconteça. Vestir-se de maneira a atiçar o desejo sexual masculino (por exemplo, com um decotão bem grande para mostrar os peitos, com nanossaias, tatuagens à mostra que direcionem a visão para a genitália, dizeres sugestivos na camiseta e atrás da calça como “bitch” ou “fuck me”; e outras puritanices do gênero), bem, isso atiça o desejo sexual masculino. Também há certos locais ou circunstâncias em que os homens ficam naturalmente mais propensos a desejar sexualmente e de forma indiscriminada qualquer mulher que se lhe apareça na frente. Um baile de funk carioca (dos quais resultam não poucas gravidezes), uma balada com muitas drogas e dançarinas sensuais, etc.

Infelizmente, alguns homens (por culpa própria, salvo em casos de doença mental) dão vazão a seus desejos sexuais sem se importar em saber se a mulher que será alvo de suas investidas deseja ou não tal honra. Alguns se limitam a comentários ofensivos e dirty talk em geral – o que já é aviltante -, outros buscam um contato físico indesejado e alguns outros estão dispostos até mesmo à violação sexual forçada, que é dos piores crimes possíveis. Devemos fazer todo o possível para que os homens não fiquem assim, e punir severamente aqueles que perpetuam qualquer violência sexual. A culpa é deles.

Contudo, sabendo dessa realidade, as mulheres podem agir prudencialmente, por exemplo não usando roupas que incentivem os homens a vê-las como objetos sexuais; vestindo-se de forma a realçar sua humanidade. Talvez a maioria das mulheres ignore o quanto é fácil para um homem olhá-las como um mero objeto sexual e nada mais. Há, infelizmente, algo de desordenado na natureza humana, e essa desordem mexe também com nossa sexualidade. Cabe a cada um educar, domar e, quando a porca torce o rabo, barrar seus ímpetos mais descontrolados (sejam ligados à violência, à comida, ao sexo, etc.). Por isso a culpa do estupro é sempre do estuprador, e não da vítima. Contudo, a vítima pode agir de maneira a diminuir a probabilidade do estupro. Ao se vestir de forma provocante, a mulher aumenta a chance que ela provoque algum homem sexualmente; o homem sexualmente excitado está mais propenso a praticar alguma forma de violência sexual.

As manifestantes da slut walk parecem querer, ao mesmo tempo, atiçar o desejo sexual masculino e não sofrer violência sexual. Infelizmente, embora no plano das idéias as duas coisas pareçam perfeitamente distintas, no mundo real elas frequentemente caminham juntas. Isso não quer dizer que a culpa do estupro seja das mulheres; mas elas têm à disposição algumas condutas fáceis para diminuir a probabilidade do estupro (embora nada possa garantir a segurança total).

Quando você sai na rua, não procura, se possível, deixar celulares e objetos de valor fora da visão de todos? Não olha para os dois lados antes de atravessar, e se vê um carro desloucado à toda velocidade, não espera ele passar antes? Tanto no roubo quanto no atropelamento, a culpa é de quem rouba e atropela. Mas o celular é seu, e a vida é sua; trate de não facilitar! Por que no estupro o pensamento mais “iluminado” ignora isso? Mulheres, há dentro de cada homem heterossexual um forte desejo sexual pelo corpo feminino; esse desejo pode se manifestar de maneira sadia e positiva, que enfatize ao invés de negar a humanidade da mulher; ele pode também, contudo, se expressar de maneira bestial e violenta. Quando essa segunda opção lamentavelmente ocorre, a culpa é sempre do homem. Mas não a facilitem!

Já falei que a culpa do estupro é do estuprador? Repito-o agora: a culpa do estupro é sempre do estuprador e nenhuma mulher merece ser estuprada.

Assim, espero que as respostas fujam do usual “CULPANDOAVÍTIMACULPANDOAVÍTIMACULPANDOAVÍTIMA!!!!!111um”.

quinta-feira, maio 26, 2011

A Moeda Perdida

Pão de queijo - R$ 1,10. As últimas moedas dos cinqüenta Reais que o pai dera na semana anterior iriam agora, não fosse a estranha falta de dez centavos. Só podia ter sido o Tonhão. Logo que bateu o sinal, algum do grupinho dele pegou a carteira e jogaram bobinho, Lucas no meio pra variar. Acabaram devolvendo e foram pro futebol, só que faltava uma moeda. Naquele momento o Tonhão já devia estar contando vantagem no campinho e todo mundo rindo do idiota do “Luquinhas”; imaginava e ficava vermelho. Era a gota d’água.

Quase todos os meninos da turma jogavam futebol. Lucas era dos menores, e a pré-adolescência aumentara a distância, não só de altura. Como de costume, passaria o recreio andando pelos corredores e jardins com o Milton. Hoje, sem lanche: para a Coca não teria dinheiro mesmo, e o pão de queijo o Tonhão roubara.

Não saía de sua cabeça a zoada do mesmo dia na aula de Português. Foi pedido um exemplo de estrangeirismo; sua mão era sempre das primeiras, para a inveja – dizia sua mãe – dos colegas. “Videogame”. Acontece que, na sexta série, por algum motivo que ele ainda não entendia, gostar abertamente de videogame já não pegava muito bem. A tirada do Tonhão era idiota, sem qualquer graça: “Que nerd!”, mas todo mundo riu. Até quem não viu graça se sentiu na obrigação. Até a Helena.

“Nerd.” Em poucos anos aquilo seria uma besteira, um nada. Mas na sexta série era muito. E por enquanto não ia melhorar. Numa festa-baile ele vira o Tonhão e a Helena se beijando. Não foi que nem nos filmes: não era importante, era só um amasso num canto, no pano de fundo, e ninguém parava para ver. Ainda que Lucas não estivesse exatamente louco de vontade de roçar sua língua na de alguma menina da série – com uma possível exceção – esse próprio não querer era sinal de algo cada vez mais vergonhoso, mas que ele não sabia bem o que era. O fato é que o Tonhão já ficava e ele não tinha nem uma amiga.

“Eu odeio o Tonhão! Ele é um idiota.”

“O que a gente vai fazer?” Os dois já tinham planejado pequenas vinganças antes; Milton não era alvo freqüente de gozação, só de desprezo silencioso. “E se a gente roubar o material da mochila dele e jogar fora de novo?” Ele adorava o jogo.

“Não vai adiantar. Da outra vez ele nem reparou. Tem que ser pior: o Tonhão é um bosta!”

“E se a gente pegar o celular novo da Ju P. e botar na mala dele?” Tonhão já tinha tido duas “conversas” com a orientadora naquele semestre; uma vez por ter xingado a professora e outra por cabular aula para trocar figurinhas da Copa com uns colegiais. A diretoria sabia que ele era um mau elemento, só que sem o dinheiro que protegia outros similares a ele. Mãe professora de inglês, pai divorciado ausente. Entrara no colégio com bolsa, e por algum motivo o menino modelo tinha, desde a quarta série, desandado. A seqüência de fatos era previsível: recuperação atrás de recuperação, repetir um ano, namoro, sexo, maconha, briga. Mas o que eles podiam fazer? Mandar embora ou cortar a bolsa seria cruel, fora que a mãe ia dar um jeito de reverter na Justiça. Restava esperar que alguma das violações legais que o rapaz certamente cometeria no futuro fosse flagrada dentro dos muros da escola. Daí era fim de papo.

Lucas lembrava da festinha da primeira série do colega agora odiado. A casa simples, os salgados feitos pela mãe e pela empregada, o videogame antigo. Mesmo assim, sentiu que uma mera suspensão não bastaria. “Tem que ser sério, Caio. A Regina não vai fazer nada; tem que ser pior do que ela.”

Nessa confabulação os dois passaram na frente da capela da escola, e foi então que veio uma luz. Lucas se lembrou das aulas de catequese do ano anterior, com o padre Aurélio (uma inexplicável relíquia de rígida ortodoxia catequética num colégio há muito apostatado). O curso terminara na Primeira Comunhão, e desde então a lembrança das aulas enfraquecia. Conforme andavam adiante, contudo, algumas fagulhas da aula de religião acenderam na mente do garoto. O que é mesmo que a catequese tinha ensinado sobre a vingança?

“Já sei!” Ele parou junto da velha árvore que servia de pics no esconde-esconde do primário; o amigo parou também. “O Tonhão tem 12 anos, né? Ele tá entrando na puberdade. Ce já viu o sovaco dele? Então, os hormônios tão crescendo.” – Isso, é claro, não veio da catequese, mas das aulas de “Conscientização para uma Sexualidade Segura e Saudável”, curso que perpassava todo o Ensino Fundamental II, dado pela Ísis, psicóloga e pedagoga, e pelo Tadeu, o professor de ciências. “E como ele é grande, as meninas vão querer transar com ele. Eu vi ele beijando na festa da Lu S. Ele vai ter uma namorada. E ele vai transar ano que vem no máximo. Se for a Helena, ainda esse ano com certeza. A Ju K. vai dar a festa dela e os pais dela vão viajar. Vai ser em novembro. E ela já falou que vai liberar o quarto. Então a gente faz assim: a gente vai na festa e um de nós dá um jeito de deixar a Helena bem bêbada; lembra da aula de sexo? O Tonhão você não deixa ficar bêbado, senão não funciona. Daí quando eles forem para o quarto eu vou ficar escondido no armário com o meu canivete. E quando o Tonhão for chegar no orgasmo eu saio do armário e meto o canivete na jugular dele. Ele vai se virar e saber que fui eu que matei ele e eu vou rir da cara de coitado dele! Daí os últimos momentos da vida dele vão ser de vergonha porque ele vai estar de calça abaixada chorando na frente da Helena. Só que o melhor não é isso. Lembra da aula de catequese? Sexo é pecado mortal. O Tonhão cabulou um monte de aula e não vai lembrar de se arrepender. E daí depois que ele morrer ele vai direto pro inferno. E ele vai ser assado que nem um porco enterrado na merda do buraco mais fundo do inferno! E um diabo imundo vai estuprar ele para sempre sem nenhuma chance de escapar. Ele vai implorar por perdão e não vai ter, e eu vou rir pra ela!”

Milton arregalou os olhos. Lucas esboçava um sorrisinho satisfeito quando sua mão, que remexia dentro do bolso, sentiu uma pequena saliência dura numa dobra interna. Era a moeda que faltava; o pão de queijo estava salvo! Houve júbilo e regozijo.

sexta-feira, janeiro 07, 2011

A Filosofia no Esquadrão da Moda

Andei vendo uns reality shows de moda. Não me julguem; há jeitos piores de se passar uma noite. Funcionam assim: apresenta-se uma mulher que definitivamente não sabe se vestir; um bagaço desalinhado, enfim, a mess. Acontece que, em geral, ela já está conformada a feiúra e cheia de inseguranças quanto a seus defeitos, embora não saiba o que fazer.

Entram os experts em moda, reviram o guarda-roupas dela, ensinam-lhe o que vestir e como se apresentar, levam-na para umas comprinhas por conta da produção (o atrativo do programa para quem participa é exatamente esse) e, no final das contas, voilà, o bagaço virou mulher, em geral bonita.

O melhor desses programas é o do Tim Gunn, designer que basicamente eleva a moda ao patamar de ciência. Analisando o tipo físico da mulher, é capaz de mostrar a ela os efeitos que diferentes tipos de roupa têm sobre seu físico, o que ela deve evitar e o que deve usar. Um corpo mais cheinho e baixo não vai bem de calça capri, que cria a ilusão de ser ainda menor; as “back-flaps” pouco atraentes são causadas pelo tipo de sutiã usado; um modelo diferente elimina o problema. Enfim, cada mulher tem pontos relativamente mais fortes ou fracos, e a boa roupa é aquela que sabe usar os bons e atenuar os fracos.

Claro que minha apreciação desse tipo de entretenimento é puramente filosófica. O que um programa como esses grita com todos os pulmões? Uma mensagem, olhem só, conservadora: a beleza é objetiva; gosto se discute; há acertos e erros em se tratando de roupa. A feia do começo sempre tem algumas justificativas para o atual estado deplorável: “É o meu estilo; não sigo a moda”; “Sou assim e não tem jeito; não existem roupas para o meu tipo físico”; pseudo-justificativas, que mal e mal escondem profundas inseguranças acerca da própria aparência e de auto-estima.

A própria mulher, inicialmente relutante (depende do caso; algumas estão cientes de seus problemas desde o início), reconhece o progresso e vê como suas justificativas, seus flertes com um relativismo estético, eram espúrias. Vestir-se mal não é estilo; é falta dele.

No final das contas, não há mulher que não possa ser bonita. Claro, existem aquelas com deformidades muito gritantes; fora essas, todo mundo tem um potencial a ser explorado e que pode chegar a bons patamares de beleza. O que ajuda, inclusive, a viverem melhor, ao melhorar a auto-estima da pessoa (que não é gabar-se de méritos inexistentes, mas reconhcer em si um potencial para grandes coisas). O resultado é entretenimento enriquecedor e que ainda oferece algo de sabedoria prática que pode ser utilizado na própria vida (há versões masculinas dos programas, mas em menor número e menos memoráveis; pois a diferença entre o homem desleixado e o alinhado, embora grande, é minúscula se comparada à que existe entre a mulher-bagaço e a elegante.

As meninas da FFLCH poderiam se beneficiar muito da consultoria de um Tim Gunn. Algumas são muito bonitas, de forma que nem as roupas velhas e rasgadas, o cabelo ensebado, as sobrancelhas selvagens e o pé sujo conseguem enfeiar. Outras, coitadas, dão tristeza à vista. Bastaria um olhar externo de alguém que entende do assunto para, com alguns toques determinados, ajudá-las imensamente. Quem sabe até a ideologia venenosa que alimenta e é alimentada pela feiúra do ambiente enfraquecesse um pouco…

segunda-feira, janeiro 03, 2011

O que Hernán Cortés Tem a nos Ensinar

Em 2010 uma serpente emplumada me mordeu e fui tomado de um interesse febril pelos povos meso-americanos. O foco desse interesse estava no primeiro encontro deles com os europeus, que é sem dúvida um momento capital da história universal. Ao mesmo tempo, resultou numa das maiores tragédias da história que foi a destruição dos povos, civilizações e culturas que aqui viviam antes de chegarem as caravelas. A febre já passou, provavelmente para nunca mais voltar. A cura se deu quando cheguei a uma conclusão óbvia, já sabida por muitos, e mesmo por mim, de antemão, mas agora vista com clareza. Deixe-me traçar brevemente o itinerário que percorri.

Nunca fui daqueles que vêem os conquistadores como grandes vilões e os nativos como astrônomos hippies amantes da natureza. Contudo, aprendi que igualmente falsa é a representação do mundo asteca como um reino de horror idolátrico e bestial em níveis dignos de Lovecraft. A história real é bem mais interessante. E uma boa fonte, pela qual comecei, é ler o relato de Bernal Diaz del Castillo, um dos soldados de Hernán Cortés (soldado ralé, o que lhe deixava relativamente isento dos interesses dos poderosos) na expedição que culminou na tomada de Tenochitlán. O que dali emerge é, em primeiro lugar, uma história contingente, acidental, que poderia ter sido muito diferente. Em nenhum momento há um plano consciente de dominação; há oportunidades que são agarradas no calor do momento; há tentativas de amizade e paz, enganações e armadilhas dos dois lados. Durou pouco a impressão de que os espanhóis fossem deuses, embora o apelido tenha permanecido; durou pouco também o horror aos cavalos, que logo estavam sendo sacrificados, junto com soldados capturados, à vista do acampamento espanhol para lhes meter medo. Em um episódio dramático, os conquistadores foram quase dizimados e tiveram que fugir desesperados cada um por si. A varíola chegou casualmente, trazida por um escravo negro; Bernal nota o contágio estranhamente forte entre os indios. Acima de tudo, é uma história de personagens singulares, como Gerónimo de Aguilar, padre franciscano que precedera os conquistadores e que vivera por anos como prisioneiro numa cidade nativa até ser resgatado e tornar-se intérprete de maia do grupo (outro sobrevivente, numa vila próxima, atingiu condição de proeminência e preferiu a nova vida a juntar-se aos espanhóis); La Malinche, a nativa de Tabasco que, além de entender tanto nahuatl quanto maia, tornou-se amante de Cortés e deu-lhe seu primeiro filho homem, considerado o “primeiro mestiço”; Montezuma, o rei asteca, alternadamente astuto e pueril, que embora feito refém pelos conquistadores tornou-se amigo de todos, levando os raptores a chorarem sua morte acidental numa escaramuça (e maldizerem o frade que ainda não o tinha catequizado devidamente).

Dentre todas as figuras notáveis, entretanto, uma se eleva sobre as demais, particularmente forte e enigmática: o próprio Hernán Cortés. Movido ao mesmo tempo por sede de poder e pela lealdade para com seu imperador e colegas, colecionador de amantes e defensor zeloso do Catolicismo, Cortés é um daqueles personagens tão singulares que se pode dizer que, tivesse não existido, o rumo de nossa história teria sido outro. Nada o explica perfeitamente. Sua campanha ia contra os desejos das autoridades espanholas estabelecidas na América, e num momento decisivo ele teve que convencer exércitos espanhóis que vinham combatê-lo a se juntar a ele. Suas cartas, outra leitura indispensável, são um incessante jogo de tecer relações favoráveis com as autoridades locais e com o Imperador para que ninguém entrasse em seu caminho. Ao chegar numa cidade nova, tratava de estabelecer um trato amigável com os chefes, o que lhe seria útil mais à frente. Ao mesmo tempo, fazia questão de instituir o Cristianismo à força, mesmo que de forma tão desastrada e turrona que lhe prejudicasse a estratégia de conquista. Havia um frade no grupo (além de Aguilar, o tradutor resgatado), que, talvez devido a sua experiência com a fraqueza e inconstância humanas, aconselhava uma conduta prudente e tolerante: deixe os nativos com seus ídolos e vícios, evangelizemo-os aos poucos, de forma que eles possam entender a religião e queiram se converter. Cortés não queria nem saber; chegava à nova cidade, queimava os ídolos, erguia uma cruz e um altar à Virgem e ordenava que práticas pagãs (sacrifícios humanos, canibalismo) cessassem imediatamente sob ameaça de guerra. Talvez mais que a sede de poder, guiava-o o desejo da aventura e do heroísmo. Era ele, então, o resultado concreto de séculos de romances de cavalaria, cuja era de sonhos ingênuos chegava ao fim.

Até aqui olhamos o lado espanhol. Para navegar pelas águas desconhecidas do lado asteca só com um bom guia, e quem desempenhou essa função no meu caso foi Miguel León-Portilla, uma das maiores autoridades mexicanas sobre os nahua. Li dois livros seus: um deles é Broken Spears, compilação de relatos astecas da conquista e suas conseqüências (contados a frades espanhóis ou escrito por astecas alfabetizados nos primeiros anos de contato). A devastação da varíola nos momentos mais tensos do combate, o golpe de Estado que os nobres astecas tramavam contra o rei que virara refém subserviente dos invasores; o trauma da queda de Tenochitlán e as humilhações pelas quais os espanhóis os fizeram passar. O outro foi Aztec Thought and Culture, um mergulho nos pilares espirituais e filosóficos da cultura nahuatl. Como fontes primárias, longas folheadas pelo monumental Historia Generale de las cosas de Nueva España do frade Bernardino de Sahagun, cujos esforços em conversar com os sábios do mundo asteca (os tlamatinime, mestres das academias) e de tudo catalogar constituem a principal fonte de nosso conhecimento do povo de Tenochitlán; sobre os maias, a Relación de las cosas de Yucatan do bispo Diego de Landa, o responsável por quase tudo o que sabemos deles e, ao mesmo tempo, pela destruição de tudo aquilo que poderíamos ter (como a imensa maioria dos livros maias), num zelo tirânico à la Savonarola repreendido até pela Coroa espanhola. Para completar minha imersão, adquiri uma edição restaurada do Códice Bórgia, um códice asteca pré-colombiano com calendários astrológicos e representações de deuses, de sacrifícios e do lugar do homem no mundo espiritual.

A cultura nahuatl chama a atenção principalmente por suas artes decorativas e desenhos altamente estilizados. Quem vai ao México nota como tudo é impregnado pelas cores vibrantes e padrões geométricos dos antigos astecas; sem falar de sua culinária flamejante, cujos principais ingredientes, a tortilla, o abacate, o tomate, os feijões, a pimenta ainda são a base da cozinha nacional. Indo um passo além da primeira impressão preconceituosa, desintegra-se a idéia de que se tratavam de selvagens lunáticos perdidos em cultos idolátricos. Quem imaginaria os psicopatas sanguinários de Apocalypto de Mel Gibson compondo versos, cultivando um fino artesanato e indagando sobre a condição humana? Pois faziam justamente isso, e se não chegaram a desenvolver uma filosofia com argumentos racionais rigorosos, o embate de diferentes concepções de vida e de universo (questões ligadas à vida após a morte, aos deuses, a como ser feliz) ocorria por meio da poesia transmitida oralmente, e que foi finalmente escrita com a incorporação do alfabeto latino. Por trás do politeísmo da superfície a visão de mundo asteca era monoteísta, tendo em Ometeotl – uma divindade dual – o senhor de, e que dá a vida a, todas as coisas. Não tinham escrita, é verdade, e eles próprios se viam como existindo à sombra dos toltecas, cultura anterior cujo nome virara elogio. Era por desenhos que representavam a história, os rituais, os calendários, os modos de vida. Há beleza nessa simbologia pictográfica, a começar pelo usos das cores (o preto e o vermelho, por exemplo, eram usados para tratar de temas sagrados) e no desenho estilizado de figuras humanas e divindades. E nem por carecer de escrita era sua língua pouco sofisticada.

A língua nahuatl prestava-se naturalmente à poesia. Fazia, por exemplo, amplo uso de difrasismos, união de dois termos com significado metafórico único (o nosso “caras e bocas” seria um possível exemplo, embora o sentido da expressão seja próximo demais do dos termos empregados), como “vermelho e negro” para o que se refere ao sagrado, “rosto e coração” para a totalidade do ser humano (exterior e interior juntos), “flor e canto” para a poesia, “noite e vento” para tudo o que é abstrato. Revirando um pouco a poesia filosófica deles (deixei León-Portilla fazê-lo por mim), encontra-se um embate entre epicuristas e religiosos, louvores à arte como máxima manifestação do potencial humano, diferentes teses sobre a origem do mundo, cosmogonias e cosmologias.

Aos poucos, contudo, gota a gota, uma percepção clara foi se depositando nas fronteiras da minha consciência até penetrá-la. No princípio tapei os ouvidos, quis atribuir tudo à carência de fontes, ao meu desconhecimento, ao fato de não ter ido ainda às outras fontes primárias (frade Motolinia, José de Acosta e muitos outros); mas não deu, tive de finalmente admitir: o povo que construiu as pirâmides de Tenochitlán estava longe, muito longe, de escrever um Don Quijote, ou uma Suma Teológica, e nele não apareceriam um Shakespeare ou um Velázquez tão cedo. León-Portilla estica cada verso da poesia asteca ao limite das possibilidades interpretativas e mesmo assim parece pouco se comparado, digamos, a qualquer diálogo de Platão; sei que muito foi destruído ou perdido, mas não é provável que o que tenhamos, que inclui informação tirada das maiores autoridades astecas sobre sua própria cultura, seja muito diferente, e substancialmente pior, do que aquilo que se perdeu. Havia impedimentos internos a essas culturas que não foram superados. Os maias, por exemplo, tinham uma escrita muito elaborada, e o que os poucos códices que sobraram nos dizem? Como tantos outros povos antigos, excetuando relatos históricos que são sempre interessantes, seus maiores esforços intelectuais iam para elaborar grandes sistemas mágicos e astrológicos. O calendário maia é um feito impressionante; mas a que se presta? A teses completamente errôneas sobre o universo. O Códice Bórgia é lindo; mas o que retrata? Datas astrológicas, deuses, sacrifícios, enfim, cosmovisões maravilhosamente falsas. É o sonho academicista: um sistema complexo recheado de minúcias internas sem nenhuma relação com a realidade que originalmente buscara explicar. Dá boas dissertações, mas como cultura é fraco.

O que o Ocidente (o nome é ruim, pois geograficamente o México é mais ocidental que a Europa) tem, e já tinha na época, que o permitiu superar tais esforços estéreis? Poderíamos estar até hoje fazendo astrologia, alquimia e criando epiciclos para manter as aparências do geocentrismo. Por que não estamos? Porque temos uma cultura de valorização da razão e na qual o indivíduo não é constantemente obrigado a se conformar à massa, à autoridade e à tradição. Na Europa o súdito não era propriedade do rei, nem de corpo e muito menos de espírito. Hoje não parece, mas um Tomás de Aquino em sua época propunha uma inovação sem precedentes, rompendo com muito da tradição neo-platônica (sem deixar de lado seus melhores elementos); igualmente inovadora foi a rejeição bem-vinda de grande parte da ciência aristotélica alguns séculos mais tarde; amigos de Aristóteles, mas mais amigos da realidade. O rompimento com a tradição exige coragem de indivíduos que não têm vergonha de propor coisas novas. Essa postura está em última análise ligado ao Cristianismo? Suspeito que sim. Seja como for, é algo que o Ocidente tem e o resto do mundo, até recentemente, não tinha; e explica muita coisa, e permite, no campo prático, figuras como Hernán Cortés. Foi a Espanha que chegou à América, e não vice-versa. Os astecas não tinham caravelas, e muito menos navegadores audazes para se lançar em busca de novos mundos (e de fato, é a existência de tal espírito que cria a demanda por caravelas). Está certo que esses mesmos descobridores eram capazes de barbaridades, mas são precisas muitas virtudes para que um vício tenha efeitos devastadores.

E não pensem que as atrocidades da conquista fossem monopólio nosso; na história asteca, por exemplo, uma das figuras mais importantes foi Tlacaelel, conselheiro do rei em meados do século XV d.C., que militarizou a sociedade e intensificou os sacrifícios humanos; dentre as suas políticas estava a destruição sistemática de livros em que Huitzilopochtli, o deus da guerra, não fosse apresentado como a divindade suprema. O tratamento que esse império dava às cidades vizinhas era brutal. Quiçá o estrago humano e cultural teria sido ainda pior se os papéis fossem trocados. Mas um erro não justifica o outro. A escravização, dizimação e destruição cultural dos povos pré-colombianos foi um crime sim, uma mácula histórica que o Ocidente nunca poderá apagar. Só que isso também não apaga um brilho do qual temos motivo de orgulho; o autor do crime é, apesar do crime, culturalmente superior. Não me dá prazer afirmá-lo – minha tendência natural é multi-cultural, sincrética e pluralista; vejo valor em cada penacho folclórico – mas o fato grita a qualquer um que queira ouvir. Começo 2011 com a alegria de redescobrir o que sempre fora meu; um legado que se preserva não por ser tradicional, mas por ser bom. Posso estar completamente errado? É possível. Em 2012 saberemos.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Não se deve duvidar de tudo

Três argumentos: o ético, o filosófico, e o econômico.

Por duvidar quero dizer negar assentimento a uma proposição e procurar razões pelas quais ela possa não ser verdadeira.

O ético: crenças (e aqui falo no sentido mais amplo: afirmações sobre a realidade assentidas pelo indivíduo) levam a ações. Ações podem ser boas ou más. Assim, duvidar de uma crença qualquer pode fazer com que não mais façamos uma boa ação, ou com que façamos uma má ação. Se um abolicionista potencial duvidasse de que negros são seres humanos, a causa abolicionista perderia muita importância para ele. A máxima de Hume “Daring in thought, conservative in action” até funciona para impedir atrocidades, mas falha para nos convencer a agir bem (para além da mediocridade esperada) quando esse agir bem depende de crenças das quais duvidamos.

Esse argumento, contudo, tem uma grande falha que é submeter crenças à moralidade, que incentiva antes a suposição de contos de fada coloridos para preservar certas boas ações do que a procura da verdade acima de tudo e, como conseqüência dela, a descoberta de uma ética baseada na realidade. Ainda assim, em casos pontuais parece-me uma consideração legítima; há vezes em que é melhor não duvidar.

O filosófico: mesmo para se formular uma dúvida é preciso aceitar alguns pressupostos (por exemplo, que há tal coisa como verdade e falsidade). Portanto, é impossível duvidar de tudo de uma vez só. Seria, contudo, possível duvidar de tudo uma coisa de cada vez? Tampouco, pois há certos princípios (o mencionado acima é um deles) que devem estar presentes em todo e qualquer ato de duvidar; e mais, em todo e qualquer ato de pensar. Não é possível ser e não ser, uma coisa é o que ela é, etc. Dessas não podemos duvidar, pois ao duvidarmos estaremos aceitando-as. Se se trata de uma conseqüência da estrutura da mente (e portanto sem relação com a realidade em si) ou de uma percepção básica e inescapável da realidade vai do feitio filosófico de cada um.

O econômico (e favorito): A vida humana é finita e os recursos são escassos. Não temos nem tempo nem capacidade de fazer tudo o que gostaríamos; devemos priorizar o que se nos apresenta como sendo o melhor. Algumas dúvidas levam-nos a questões interessantes e a trabalhos intelectuais altamente proveitosos; outras são estéreis e contribuem muito pouco para nossa busca da verdade (que é a finalidade de toda e qualquer dúvida real). Duvidar demanda tempo. Portanto, é preciso priorizar aquelas dúvidas que têm o maior benefício esperado (do nosso ponto de vista) e deixar de lado outras que, embora possam até guardar um certo interesse, não parecem muito relevantes.

Portanto, ao contrário do que se diz por aí, não se deve duvidar de tudo. Ofereço uma alternativa que me parece superior: deve-se estar disposto a duvidar de qualquer coisa caso haja bons motivos para tanto.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Para que Serve a Filosofia?

Um amigo meu diz que no dia em que lhe apresentarem uma utilidade para a filosofia ele deixa de estudá-la. Em certo sentido, concordo plenamente: não dá para colocar uma finalidade externa à filosofia como tantos tentam fazer para justificar sua atividade.

Ganhar dinheiro, por exemplo, certamente não deveria ser o que motiva alguém a estudá-la. E se for, pobre dele. Agora, outras coisas mais bonitinhas também não podem ser de forma alguma: tornar o mundo um lugar melhor. Eu até entendo que é isso que motiva um estudante de geografia ou ciências sociais (um erro, mas um erro possível); mas se você está na filosofia, o que você lê e estuda é tão distante do espaço urbano opressivo das periferias, da fome da África e do aquecimento global que é impossível mantê-la como meio para tais fins. Só uma ginástica mental muito grave o permitiria. Claro, filósofos mudam o mundo para melhor (ao menos os bons). Platão e Aristóteles são mais importantes para a humanidade do que Mandela e Bono Vox. São consequências de suas ações, e não os fins. Um tratado pode mudar o mundo; mas quem acorde querendo mudar o mundo dificilmente quererá escrever um tratado. Todo mundo que estuda filosofia afirma, pelas suas ações, que considera uma questão abstrata a ser considerada solitariamente algo mais importante para si do que a pobreza e fome de uma boa parcela da humanidade.

Tornar-se uma pessoa melhor também não pode ser o objetivo do estudo de filosofia. Não que a filosofia não nos torne melhores. Mas ter isso como o objetivo quase certamente desvirtua a atividade filosófica, pois você colocará de antemão uma restrição extrínseca à sua própria razão quanto ao tipo de questão e posições que estará disposto a considerar. Além disso, embora possa ajudar o caráter, a filosofia (e mesmo a boa filosofia) é compatível com uma grande dose de vícios.

Mas tem uma finalidade que o estudo da filosofia tem que ter: o interesse intrínseco pela questão estudada. Se o cara estuda a crítica que Kant fez à metafísica, então ele tem que se interessar muito pelo que está em jogo nessa questão: a possibilidade de uma metafísica que fale da realidade em si, os limites do conhecimento humano, etc. Para quem se interessa pelas grandes questões do homem e do universo estudar filosofia é, portanto, muito útil. Se nem essa utilidade tiver, então está só perdendo seu tempo, ou pior: sob o pretexto “superior” da ausência de fins, está submetendo sua mente a fins muito inferiores, como a escalada de uma hierarquia de poder mesquinho da universidade ou exercitando sua vaidade para mostrar aos outros (ou a si mesmo) a própria inteligência e capacidade de dominar enormes sistemas intelectuais sem em nenhum momento preocupar-se com a realidade, que é o que motivou sua construção.